São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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LIVROS
Brasil mistura o masoquismo da senzala com a histeria da casa grande
Vanguarda pós-moderna

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Celebridade do marxismo ocidental, o inglês Perry Anderson não escreveu "As Origens da Pós-Modernidade" para nós, brasileiros; mas eu o li de olho no Brasil. Confesso que não consegui até hoje entender que diabo é a tal condição pós-moderna. Para mim significava o que vem depois de alguma coisa. Não ia além desse nível primário. Zurrando.
Finalmente agora tive a compreensão conceitual da pós-modernidade como a ideologia hegemônica do capitalismo videofinanceiro que domina o planeta, isto é, o "american circus", cuja gênese está na década de 50 com o advento da TV e sobretudo com a invenção da TV a cores na década de 70.
O livro de Anderson é uma exegese crítica da obra do marxista Frederic Jameson, enfim o diálogo do melhor marxismo anglo-saxônico, o qual acaba de desfazer a fama, aliás justificável, de que o marxismo-leninismo é avesso à reflexão sobre a imagem (a pós-modernidade é uma gigantesca fábrica de imagens), como se todo marxista fosse um saci-pererê de olho ruim e doente, posto que obcecado com a letra, o livro, o panfleto, o jornal etc.
Estilo de vida e de comportamento, além de coqueluche nos departamentos universitários de ciências humanas, o pós-modernismo traz o atestado de óbito do marxismo, já que a aparelhagem eletrônica e arquitetônica da contemporaneidade parece ter elidido a mais-valia, cancelado a luta de classes e boçalizado o proletariado.
Destarte, uma das vedetes do pós-modernismo, "monsieur" Lyotard, chega a defender a tese libidinocêntrica, por meio do "desejo chamado Marx", de que o operário ejacula de prazer com a exploração do capital, fora e dentro da fábrica. É, digamos assim, o capital Tiazinha trazendo a volúpia da humilhação.
Eis, de acordo com Perry Anderson, as principais características da ideologia pós-moderna: a ausência de distinção entre esquerda e direita, a ciência como mero jogo de linguagem, a informação contando mais do que a produção, a desmaterialização do dinheiro, a verdade confundida com desempenho, o relativismo cultural, o pluralismo e ecletismo doutrinários, a submissão ao Deus mercado, as privatizações, a supremacia do espaço sobre o tempo, o fim da história e da memória, a simulação da economia, o novo-riquismo, a ubiquidade do espetáculo pop, a simbiose entre cultura e comércio, a pornografia de massa e a diminuição do afeto, a recusa das causas e da gênese das coisas, a impotência cívica do voto, o banco dominando a fábrica.
Citemos esta bela formulação de Jameson: "A imagem é a mercadoria atual e é por isso que é inútil esperar dela uma negação da lógica da produção de mercadorias; é por isso, finalmente, que toda beleza hoje é meretriz".
Fico eu aqui a matutar o que diriam Anderson e Jameson se porventura conhecessem o raio de ação holístico da telenovela brasileira, a cocaína dos pobres, o dispositivo por excelência do pós-moderno entre nós. Com o detalhe significativo de que a TV não teve passado modernista: ela nasce com a certidão pós-moderna. A TV nasce nos Estados Unidos. A TV a partir de 1970 torna-se mais verdadeira do que a natureza. Não adianta, porém, cultuar a nostalgia pré-TV. Não adianta dar murro em ponta de faca.
A crítica marxista à pós-modernidade padece da seguinte aporia: a incapacidade de apresentar uma alternativa política a essa situação contemporânea. Em nosso caso, há o agravante grotesco e trágico: o Brasil ingressa na parafernália do pós-modernismo sem ter no entanto passado pela modernidade. Assim, de Collor a FHC ostentamos ao mundo a vanguarda pós-moderna a cores e colorizada, misturando o masoquismo da senzala com a casa grande histérica, tendo como anjo da guarda o capital volátil de mister Soros.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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