São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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A TERRA REENCANTADA

por Maria Sylvia Carvalho Franco

Eis o mestre incontestável do onírico, o poeta dos grandes sonhos cósmicos, o pintor das paisagens fabulosas, onde o universo se faz música e cor, onde o eu se perde voluptuosamente nos espaços infinitos. (...) A todo instante apaga-se a fronteira entre o sonho e a realidade (...), uma estranha comunicação, ao mesmo tempo concreta e imaterial, se estabelece entre as flores e os insetos cá de baixo e os espetáculos radiosos das viagens no azul celestial. O luxo das imagens da terra, plantas, pérolas, lágrimas, luzes, intercambia seus símbolos fugidios e múltiplos com a esplêndida visão do paraíso e suas promessas eternas" (1).
Essas frases pertencem ao estudo de Albert Beguin que sistematiza pontos-chave do romantismo alemão: elas visam ao [escritor" Jean Paul, em cujos romances, "o mundo desses grandes sonhos tem seu clima e suas cores, sua vegetação e seus habitantes (...). A passagem da vigília ao sonho, a volta do sonho à vigília fazem-se insensivelmente e os elementos de cada um desses estados de consciência agem sobre a outra metade da vida". Nos interstícios dessas duas esferas aloja-se a temática edênica (2).
"Poder-se-ia desenhar toda uma geografia do País dos Sonhos (...). Estas províncias do paraíso são como transfigurações das províncias terrestres, operadas pela luz: Éden de êxtase, leveza, imensidão, rios deliciosos onde brotam vinho e mel, bosques infinitos, estranhas florações, vales semeados de jóias, borboletas e flores aladas (...). Toda uma vertigem de sensações apodera-se dos sentidos. Luxuriantes sinfonias de cores se desenrolam, mutáveis e magníficas, nesse país de esplendor (...). Tudo é animado, vivo, sonoro (...). Os pensamentos do sonhador são suficientes para mudar toda a paisagem (...). Assiste-se a um perpétuo nascimento de formas, a um estremecer criador (...). O paraíso da maioria dessas visões é um paraíso nascente, novo em seu brilho matinal, a aurora do mundo apenas criado (...)" (3).
"(...) A esplêndida visão do Paraíso". Essa frase de Beguin, autor cuja importância para Sérgio Buarque de Holanda tem passado despercebida, espelha o título e o tratamento dado, pelo último, à expansão portuguesa.
Seu livro acolhe um programa romântico similar ao exposto pelo crítico citado, cujo trabalho contextualiza teórica e historicamente temas centrais, explorados na "Visão do Paraíso", em torno da sacralização do mundo e da miragem paradisíaca. Já de início, no quadro reconstruído por Sérgio Buarque, o reino mineral aparece idealizado: não basta o apetite utilitário para atrair os colonizadores; a impulsionar seus atos e falas, a romper caminhos, está a maravilha de um cosmo intacto -serras resplandecentes, rios cintilantes de ouro, campos de gemas preciosas e multicores, cristais luzidios, fantásticas lagoas e cavernas-, um mundo mágico, envolto em halo religioso. Nesse cenário ativam-se a fantasia aventurosa, a exaltação imaginativa, os mistérios, o mito, a sacralidade.
Não estamos longe dos sonhos do poeta Heinrich von Ofterdingen, de sua viagem aos arcanos da terra, com seu mestre minerador, até atingirem um núcleo místico. As trilhas de Sérgio Buarque penetram um espaço fabuloso, na glória dos espetáculos oferecidos pela terra, na fluidez e magia dos seres que a povoam, no turvo limite entre o onírico e o efetivo. Esse percurso alcança, com suas figuras, luzes e cores, a visão do paraíso. A poesia romântica oferece um contraponto para seu livro, inclusive pelo virtuosismo com que foi construído.
Sérgio Buarque endossa, no leque romântico, os nexos contínuos entre Medievo e Renascimento, sobretudo no tangente à fé e ao século. Atribui à herança medieval as raízes do mito renascentista: "Sabe-se que para os teólogos da Idade Média não representava o Paraíso Terreal apenas um mundo inatingível (...)". Afanosamente buscado, "pareceu descortinar-se, enfim, aos primeiros contactos dos brancos com o novo continente (...), esteve continuamente na imaginação de navegadores, exploradores e povoadores do hemisfério ocidental" (4). Na montagem dessa consciência coletiva não há fissura entre os ícones teológicos e o imaginário aventureiro movido pela cobiça devota. Ressalta, nessa reconstituição, o teor religioso que sustentava as interpretações do Renascimento dominantes na época em que Sérgio Buarque escreveu.
Em seu projeto, ele recusa o culto ao passado e a figura do taumaturgo, alheios ao ofício de historiador, contrapondo-lhe o exorcista, que, interessado em seu tempo, esconjura "do presente os demônios da história" (5).
Apesar dessa cautela, se levarmos a sério o seu intento -dar peso à linguagem metafórica e às formas simbólicas-, a oposição através da qual ele se autodefine torna-se elucidativa: taumaturgo e exorcista permanecem no plano da religiosidade, elemento que vitalizou o horizonte do romantismo, sem marcos límpidos entre céu e terra. Por faz ou por nefas, o tino do historiador permanece no registro sobrenatural: "Visão do Paraíso" não expõe a secularização de princípios e valores sagrados; ao contrário, trata do reencantamento das próprias fontes renascentistas, garantindo a sua essência piedosa contra a razão que bane ou limita a divindade. Com esse foco, o agenciamento dos textos, por Sérgio Buarque, apanha de relance os traços laicos e ilumina plenamente as cogitações mítico-religiosas.


TENDÊNCIA IDEALIZANTE LEVOU "VISÃO DO PARAÍSO" A PRIVILEGIAR O MARAVILHOSO, MAS A REBAIXAR AS OPERAÇÕES RACIONAIS E O PRAGMATISMO DO COLONIZADOR PORTUGUÊS


Certo, a via romântica não implica em monopólio do imaginário e do irracional. Mesmo o poeta, figura de sortilégio, não é somente uma presa do entusiasmo. Klingsohr, o sábio rapsodo que [o poeta" Novalis identifica a Goethe, ensina: "Uma coisa é a natureza para nosso prazer e nosso sentimento, outra é a natureza para o nosso intelecto, para a nossa faculdade de conduzir nossas forças temporais. É preciso guardar-se de esquecer uma em favor da outra. (...) O entusiasmo sem inteligência é fútil e perigoso (...)" (6). Essa intuição intelectiva, aliada ao esforço para apreender nexos causais efetivos, ponto focal de Klingsohr e de Sérgio Buarque, não os tolhe de transitar, num claro-escuro, pela natureza animada e por misteriosas simpatias, milagres, mitos, aparições feéricas, paraísos terrestres. Fontes luzidias, cristais radiosos, rios transbordantes de gemas preciosas, montanhas resplandecentes de ouro e prata, tesouros escondidos, cavernas e lagoas fantásticas, criaturas gigantescas, jardins deliciosos, pássaros loquazes, serpentes benfazejas, árvores milagrosas e bichos moralizantes constituem "topoi" da historiografia e poética românticas. Em ambas, comerciantes, peregrinos, mineradores, naturalistas, religiosos banham-se na atmosfera de ilusão sacralizada, por espaços encantados, cuja luminosidade esmaece as divisões do intelecto e recolhe a fluidez de formas e sentidos, refletindo o concerto e continuidade universais. Nosso historiador afasta meticulosamente a maravilha e o espanto para lograr melhor produzi-los. A poesia romântica oferece um contraponto para seu livro, inclusive pelo virtuosismo com que foi construído. Esse olhar permite discernir, próximo a Sérgio Buarque, outro personagem de Novalis, o contemplativo Hohenzollern, o qual é também herói de guerra. Através dos séculos, fé e violência se entrelaçam, estetizadas: "A guerra me parece, em geral, obra de poesia, diz Ofterdingen (...). Na guerra, responde Klingshor, borbulham as águas originais. É preciso que nasçam as novas partes do mundo e raças novas se cristalizem, surgidas dessa grande dissolução. A verdadeira guerra é a de religião, que vai direto à ruína, e o delírio dos homens aparece em sua forma acabada. Muitas guerras, em especial as que nascem de ódios nacionais, pertencem a essa categoria e são verdadeiros poemas. Aqui, estão em casa os verdadeiros heróis, as mais nobres contrapartidas dos poetas, forças cósmicas involuntariamente atravessadas pela poesia. Um poeta-herói é bem um mensageiro divino (...)" (7). As consequências políticas dessa ética impregnada de aspirações bélicas, nacionalistas, religiosas, são dilacerantes: poeta e herói, criadores, atuam mediante a violência revestida de encanto.

Poesia e história
Amálgama sublime, decisivo na historiografia romântica: "(...) parece-me que um historiador deve ser também (...) um poeta, pois só os poetas compreendem verdadeiramente a arte de encadear os acontecimentos" (8).
Ambos participam da liberdade interior, associada ao saber calmo, refletido, à destreza metódica, apta a proceder com segurança. Conciliar razão e sentimento sintetiza este programa estético, científico, político (9).
Sérgio Buarque delineia contornos e relevos nos registros históricos, a fim de sistematizá-los segundo seus alvos. Desse ângulo, seu trabalho é, dos pressupostos aos resultados, internamente consistente, ágil na montagem e enquadramento de figuras e categorias: nele, o mundo empírico é entretecido à forte luz de uma doutrina competentemente explorada. Se um espírito feérico anima e matiza as fontes recortadas pelo autor, irradiando forças poéticas, de outro lado, uma regularidade metódica orienta e ordena as suas escolhas.
Desde o início essa coerência surge na bateria de conceitos mobilizada: o objeto de estudo surge como universo de representações ideais em que se delineia a imagem edênica presente na imaginação dos navegantes. Seu autor discute o quadro ideal do Novo Mundo forjado pelos europeus, ressaltando o paradigma decorrente. Nesses mitos, o autor privilegia a "lavra castelhana"; entre portugueses eles perdiam o viço originário, tornando-se acessíveis a imaginações "timoratas".
Diante da autonomia conferida ao ideário, Sérgio Buarque procura compensar o ermo resultante na esfera concreta: "Ainda que fazendo cair o acento sobre as idéias ou mitos, não fica excluída (...) uma consideração, ao menos implícita, de seu complemento ou suporte material, daquilo que (...) em linguagem marxista se poderia chamar a infra-estrutura" (10).
Os prosaicos relatos portugueses permitiriam evocar o referido "suporte material", mas as navegações e o trato com terras e gentes estranhas são associados pelo autor, de imediato, ao fascínio pelo Oriente e ao sonho de riquezas fabulosas. As condições exteriores cedem passo à subjetividade: "É possível que para muitos, quase tão fidedignos quanto o simples espetáculo natural, fossem certos partos da fantasia: da fantasia dos outros, porém, não da própria. Mal se esperaria coisa diversa, aliás, de homens em quem a tradição costumava primar sobre a invenção, a credulidade sobre a imaginativa. De qualquer modo, raramente chegavam a transcender em demasia o sensível, ou mesmo a colori-lo, retificá-lo, complicá-lo, simplificá-lo, segundo momentâneas exigências" (11).
Ressalta aí, já pelo campo semântico sublinhado acima, a ênfase na atividade fabuladora de um Eu criador. Nessas assertivas, modela-se uma forma da consciência, privilegiada no poeta, na qual o mundo externo se transfigura; por isso mesmo, ela é absoluta. A estética do romantismo a concebe engendrada por uma demiurgia afetiva, livre, que se rejubila em seus atos criadores. Com sua arte "toda interior" o artista "sabe mover, a seu grado, as forças ocultas em nós e nos dá a compreender, pelas palavras, um mundo esplêndido e desconhecido (...). É um domínio mágico que as sentenças do poeta exercem. Palavras triviais oferecem sonoridade peregrina e embriagam os ouvintes fascinados" (12).
No horizonte desse estilo o "mundo é um tropo universal do espírito, sua imagem simbólica" (13). Apagam-se as fronteiras entre consciência e exterioridade: o mundo efetivo distingue-se, mas é congênito ao homem. "Os órgãos do pensamento são os procriadores do mundo, as partes sexuais da natureza" (14).
Feitas do mesmo estofo, nenhuma força espiritual ou forma da natureza independe uma da outra, configurando-se um Todo em que o "verdadeiro poeta é onisciente -um mundo efetivo em miniatura" (15). Ele é capaz de atualizar uma idéia, um princípio que constitui e ordena o mundo com seu feixe de sentidos: "O exterior é (...) apenas uma distribuição -um interior traduzido (...)" (16). Sábio e ativo, o artista sintetiza o ideal e o real: "Pensar é dizer. Dizer e agir ou fazer são uma operação apenas modificada. Deus disse "faça-se a luz" e ela se fez" (17). Demiurgo, natureza criadora e poeta são um e o mesmo.


Basta notar que Sérgio Buarque endossa o apagamento dos prismas laicos e racionais da Renascença, acolhendo as interpretações medievalizantes


A esfera da cultura é constitutiva, interna e externamente: "Tudo (...) é e aparece apenas implicando uma pressuposição. Seu fundamento individual, seu Si absoluto, o precede -deve, pelo menos, ser pensado antes dele. Eu preciso, em tudo, pensar antes algo absoluto -pressupor (...). Uma coisa é, ou se torna, tal como eu a ponho, a pressuponho" (18). Compreende-se que os sábios eleitos sejam o poeta e o historiador e que se ampliem, com nuances, os seus dons: a poesia "não é especial, ela é um modo de atividade próprio ao espírito humano. Todo homem não poetiza e fabula a cada minuto?" (19). Marcando a leitura romântica do Renascimento, a "Visão do Paraíso" favorece o sonho e o mito que geram e nutrem as ações, acentua a representação que lhes dá sentido, privilegia o imaginário maravilhoso, admite parcimoniosa dose de intelecto: o pressuposto, aí, é captar consciência e sensibilidade como um Eu constitutivo do mundo. Erguendo sua pesquisa sobre essas bases, com precedência dos processos sensíveis e rebaixamento das operações racionais, Sérgio Buarque só poderia deixar na sombra a expansão do conhecimento e o controle técnico da natureza logrado pelos portugueses, postulando a sua miséria espiritual. No "imenso poema" cósmico o lusitano é menos criador, menos poético e religioso, mais prosaico, mundano, secularizado, que o espanhol. De modo previsível, atrofia interior e inatividade externa associam-se no português: o que, de relance, "pode passar por uma característica moderna (adesão ao real e imediato, capacidade observadora, interesse pragmático) não se relacionaria, ao contrário, com um tipo de mentalidade já arcaizante na sua época, ainda submisso a padrões longamente ultrapassados pelas tendências que governam o pensamento dos humanistas e, em verdade, de todo o Renascimento"? Nessa distinção, o interesse luso pelo empírico e pragmático seria consentâneo com "o pedestre "realismo" e particularismo da arte medieval" (20). Sem discutir tais generalizações, basta notar que o autor endossa o apagamento dos prismas laicos e racionais da Renascença e sua herança na Antiguidade, acolhendo as interpretações medievalizantes, acentuando aspectos religiosos e tradicionalistas. Dessa perspectiva, no Renascimento inexiste cultura secularizada, não há uma "prosa do mundo", apesar da copiosa documentação em contrário. Francis Bacon (protótipo de "mentalidade mágica" nas leituras subscritas por Sérgio Buarque) recolhe teses de pensadores antigos, abre um abismo entre ciência e teologia, desencanta o mundo, não supondo o livro da natureza escrito por Deus, como é assertórico na "Visão do Paraíso", mas elaborado pelo poder cognitivo e pelo discurso humanos: o ABCD da natureza desvenda-se e informa-se através da observação indutiva, do método analítico e sintético, com seus refletidos limites racionais. Bacon ou Montaigne, por exemplo, contrariam frontalmente a tese da sacralização do cosmo. Apesar do saber naturalizado, não raro agnóstico ou mesmo ateu que se firmou na Renascença, Sérgio Buarque inclina-se para o religioso e encantatório: "A instabilidade e evanescência das coisas do tempo se (...) revelam uma natureza criadora até ao milagre, espelho da própria onipotência divina, não deixavam de incluir, como contraparte necessária, a imagem nostálgica de um soberbo ideal de segurança e permanência (...). Fora (...) de um mundo onde tudo não passa de sonho ou vã aparência, é que se tornará realidade a redenção" (21).

O colibri e o papagaio
Sem considerar os labirintos cósmicos, emblemas do saber moderno racional e laico através do qual o homem é capaz de orientar-se por suas próprias faculdades cognoscentes, seguindo o fio condutor oferecido pela natureza -criadora sim, mas não milagrosa-, Sérgio Buarque enfatiza as transmutações fantásticas: a natureza do novo mundo "não pareceria, aos seus observadores, uma natureza tão alheia, em muitos casos, à própria ordem natural?".
Expondo o ideário da colônia, Sérgio Buarque explora figuras relativas à concepção de natureza que, "chegada a Deus e vizinha do paraíso" (22), "valia menos pelo que é do que por tudo que significava" (23). Esse contexto projeta unilateralmente sobre o bestiário renascentista as luzes místicas. Assim, o papagaio é sacralizado: progênie de anjos expulsos com Lúcifer, sua fala é vestígio da bem-aventurança edênica; menos pecador, recebeu menor castigo, sendo convertido em pássaro e privado da face divina. Tal imagem do papagaio é alheia a outros interesses que a ave suscitou, derivados do conceito secular da natureza e do saber constituído pela imitação e invenção metódica de seus mecanismos e engenhos, plano em que a solércia dos animais assume relevo inteiramente laico (24).
O reencantamento da natureza ordenada "pelas razões que Deus deixou impressas no grande livro da Criação" (25) compõe o cenário, na "Visão do Paraíso", para as metamorfoses do colibri, símile tropical da fênix (26). No relato de espanhóis, fonte provável dos portugueses, ele "morre todos os anos, ou dorme, de qualquer modo fica imobilizado e sem comer (...) e vai ressuscitar ou despertar quando nascem as flores (...)" (27). Simão de Vasconcelos diz que essa ave, "(...) como só vive de flores, em acabando com estas, acaba ele na maneira seguinte: prega o biquinho no tronco de uma árvore e nela está imóvel como morta, enquanto tornam a brotar as flores (que são seis meses), passado o qual tempo, torna a viver e a voar" (28).
Sérgio Buarque cita Guilherme Piso sobre o aroma desses pássaros quando mortos, registrando que "o naturalista protestante nos previne tacitamente contra qualquer interpretação sobrenatural dessa espécie de odor de santidade, atribuindo o aroma ao sustento de tais pássaros, pois, ao que lhe constava, só se nutriam de flores e do orvalho (...)" (29).
As notícias oferecidas sobre a "hibernação" e o perfume do colibri não ultrapassam o registro da natureza, por insólitas que sejam, mas o comentário de Sérgio Buarque projeta a documentação no coletivo e na transcendência: "Está bem de acordo com a mentalidade do tempo que os encantos do colibri levassem seus admiradores a adorná-lo de um halo de lenda. Na graça aérea e fugitiva dessa criaturinha, onde parecem unir-se todos os mimos da natureza, não se humilhava a realidade ante a fantasia (...)" (30). O nexo com a "mentalidade do tempo" fica inexplicado; projeta-se antes, no colibri e nas fábulas que protagoniza, o tom sentimental do autor. Desviando-se do programa romântico de completar a via da subjetividade com o conhecimento científico da natureza, o historiador tece, de modo livre, associações entre o trivial e o fantástico.
Os relatos que apresenta desvendam uma paisagem em que tudo é esplendoroso, colorido, perfumado, uma festa sensível. Não obstante o historiador prepara o sentido sacralizado que atribui às fontes, elegendo na "criaturinha" os "mimos" naturais, tornando contínua a passagem do profano ao sagrado. Sua graça abre o Éden aos olhos sonhadores: "Explica-se que a ela principalmente se deva esse arrebatamento sugerido a Vasconcelos pelas aves do Brasil", para quem elas "parecem as mesmas dos primitivos ares, antes criadas no mesmo Paraíso da terra: tal a bondade, o número, a variedade de sua formosura: só naquele primeiro Céu terreno podiam pintar-se tão lindas cores" (31).
A hermenêutica do historiador desenvolve-se numa atmosfera mágico-religiosa: passa do prodígio ao milagre, da metamorfose à ressurreição, do gracioso ao sublime, do laico ao religioso, magnificando a fantasia como ato criador e elidindo a racionalidade e agnosticismo presentes no Renascimento.
Baseando-se em teses que derivam a ciência da fé, diz ele que "poderia suspeitar-se, talvez, nessas concepções, quase a antecipação, ainda embrionária e tosca, de um pensamento que só iria amadurecer mais tarde. O pensamento, em particular, que há de levar Goethe, através de seus estudos de biologia, botânica e osteologia, a ir procurar, em harmonia com as idéias de Herder sobre a História Universal, a duração na mutação e a unidade em toda a natureza" (32).
É esse o núcleo das restrições ao racionalismo, sendo exemplares as considerações do autor. Dois são Franciscos, de Salles e Xavier, o "humanismo devoto", na pessoa de L. Richeome, a piedade jansenista e B. de Saint Pierre contribuem para gerar o saber moderno nas entranhas da religião, até definir-se que "a natureza como obra divina é tão digna de amor por si mesma tanto como por alguma verdade sobrenatural que traduza" (33).
Argumentos como "o convite à humildade cristã", a "mortificação da vaidade", motivos dos personagens, confluem para a "lição edificante e sagrada das criaturas irracionais". No caso de Richeome: "A pequenina mosca, por exemplo, é objeto de sua atenção apaixonada e cuidadosa (...). Detém-se em descrever-lhe a feição das asas, as junturas dos membros, os dispositivos internos que ajudam a mover e revirar a cabeça e os olhos, seu jeito especial de conservar-se direita sobre as patinhas tortas ou de passear estas por cima do corpo, ligeiramente corcovado no dorso, como a querer dar precisão ao minúsculo sugadouro e segurança ao vôo, a tal ponto que o escritor renuncia finalmente a traduzir a mensagem espiritual que nela se possa encerrar. Quase se limita à pretensão de valorizar perante os leitores um animalejo constantemente desdenhado e a louvar nele a infinita sabedoria do Criador de todas as coisas" (34).
A piedade bordeja o saber mundano: embora o padre tencionasse tirar lições espirituais em seus escritos, "sucede-lhe, não raro, esquecer ou abandonar o intento", em prol da solicitude para com os bichos, sendo aqueles "sem realce externo, como a lagartixa ou a própria mosca, os que parecem merecer o melhor e sua ternura", em descrição "viva, cantante, enternecida". Com esses métodos, partindo-se de ascese edificante, chega-se ao conhecimento laico, formando o "gosto do concreto e do natural, que se encontra com o gosto da precisão científica, substituindo-se ao reinado do mais ou menos" (35). Nesse uso de Alexandre Koyré [filósofo, 1882-1964], o saber moderno, de sua forma empírica à matemática, nasce da religião e do sentimento.
Do ponto de vista político, também aqui, as teses românticas e seus avatares são prenhes de consequências: no enlace entre religião e ciência apagam-se as terríveis lutas de poder que marcaram a ruptura entre essas duas esferas espirituais. Afinal, por que a grande violência -guerras, cárceres, execuções, exílios, sevícias, mordaças- entranhada nas transformações da cultura, na reorientação da consciência, no choque das forças de dominação social e política?
Sérgio Buarque reconhece a contribuição dos viajantes e colonizadores para o saber secular da fauna e flora americanas, mas adverte que seria enganoso supor nesses ibéricos um "gosto acendrado" pela natureza; prova disso é a rapidez com que assimilaram, agravando-os com suas próprias ferramentas, os métodos predatórios dos índios (36). Não é de admirar, pois se tinham a mesma mentalidade "primitiva"... que, de um lado, se compara à dos tupinambás e guaranis, e, de outro, evolui para Goethe e Herder...

Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e autora de, entre outros, "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (ed. Unesp).

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