São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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OUSADIA NA POEIRA DOS ARQUIVOS


O HISTORIADOR INGLÊS FALA DA PRIMEIRA VEZ EM QUE ENCONTROU SÉRGIO BUARQUE, NOS ANOS 60, E RELEMBRA SUA IMPORTÂNCIA PARA A ORIENTAÇÃO DE UM ENTÃO JOVEM PESQUISADOR AMERICANO


por Kenneth Maxwell

Uma troca de e-mails com o pesquisador Robert Wegner, autor do interessante livro "A Conquista do Oeste - A Fronteira na Obra de Sérgio Buarque de Holanda" (ed. UFMG, 2000), sobre Sérgio Buarque e seus estudos sobre as bandeiras, as monções e os tropeiros que ajudaram a incorporar as grandes fronteiras interiores do continente sul-americano ao Brasil, levou-me a rever minha antiga correspondência da década de 60. Sérgio Buarque passou um período em 1965 como professor visitante nos Estados Unidos. Durante essa época ele se encontrou em Princeton com o professor Stanley Stein, e eu, recém-chegado da Inglaterra para fazer o meu doutorado sob a orientação de Stein, fui convidado a participar da reunião. Na verdade, Sérgio Buarque foi o primeiro brasileiro que conheci. Em 1966 ele esteve em Yale, convidado pelo Richard Morse. Lá Sérgio Buarque foi apresentado ao melhor e mais promissor aluno de Morse, David Davidson. Quando nos conhecemos no Rio, em 1967, David se tornou meu amigo íntimo. Assim como muitos alunos de Morse, ele era uma pessoa complexa e brilhante. Na verdade muitos deles ficaram tão intimidados pelo brilho excêntrico do próprio Morse que nunca terminaram seus projetos. David, sim. Ele defendeu sua tese de doutorado, "Rivers and Empire - The Madeira Route and the Incorporation of the Brazilian Far West 1737-1808", em Yale, em 1970, ano em que defendi a minha em Princeton (que mais tarde se tornaria o livro "A Devassa da Devassa"). Sérgio Buarque referiu-se à tese de David em 1976 como sendo um "magnífico estudo que ainda espero poder ver impresso e traduzido". David e eu cobrimos mais ou menos o mesmo período cronológico, basicamente o período colonial tardio de cerca de 1750 até os primeiros anos do século 19. Seu enfoque foi sobre o Oeste brasileiro e a Amazônia; eu estudei o Centro-Sul brasileiro e Minas. Nós trabalhamos de maneira próxima e colaborativa; na época supúnhamos inocentemente que todos os historiadores o fizessem. Como jovens acadêmicos, aspirávamos a virar o período pombalino de ponta-cabeça e juntos planejávamos um livro sobre a influência de Pombal no Brasil.

"Pais" brasileiros
Davidson havia escrito carinhosamente sobre seus "pais" brasileiros, Sérgio e Maria Amélia Buarque de Holanda, na casa dos quais havia sido hóspede durante sua estada em São Paulo. Sua tese sobre o desenvolvimento da Amazônia foi inspirada nos "Caminhos e Fronteiras" de Sérgio Buarque. No prefácio à segunda edição de "Monções", Sérgio escreveu sobre David como seu "companheiro de pesquisas na minha última estada em Cuiabá, nossa admirável entrada de 1967, como costuma dizer".
A tese de David nunca foi publicada, assim como ocorreu com muitas teses escritas por jovens entusiastas americanos naquela época, que não encontraram emprego na década de 70 ou foram apanhados entre as pressões da Guerra do Vietnã e os tumultos culturais, sociais e raciais em seu país, como aconteceu com David na Universidade Cornell, onde conseguiu seu primeiro emprego. David deixou a vida acadêmica em 1973.
Encontrei as cartas que recebi de David quando ele trabalhava com Sérgio Buarque em Cuiabá, em 1967. Elas têm o espírito das muitas conversas que eles devem ter tido então, tomando cafezinhos. Acrescento uma carta de David para Sérgio da mesma época em que a pesquisadora Vera Neumann a descobriu trabalhando em um coletânea de cartas de Sérgio.
Essa correspondência comprova quão errada é a afirmação de que há uma incompatibilidade entre amplas abordagens interpretativas e a minuciosa pesquisa arquivológica, ou que os historiadores brasileiros de certa forma evitam a "poeira" dos arquivos, como a revista "Veja" colocou recentemente, interpretando de maneira totalmente errada a dinâmica pessoal daquela época complexa. Sérgio Buarque é a clássica refutação desse antigo mito. Como acadêmico, ele foi um pensador ousado e original, assim como um diligente trabalhador arquivológico. Sua obra vive exatamente por causa dessa feliz combinação.
Sérgio Buarque também foi, como fica claro em sua cordial cooperação com um jovem estudante americano, sempre aberto a compartilhar sua curiosidade histórica através das linhas internacionais. Ambos eram membros fundadores daquele curioso grêmio de praticantes entusiasmados ao descobrir documentos havia muito perdidos.

Kenneth Maxwell é historiador inglês e um dos principais brasilianistas da atualidade. É autor de "A Devassa da Devassa" e "Marquês de Pombal -Paradoxo do Iluminismo" (ambos pela Paz e Terra). Escreve regularmente no Mais!.


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