São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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CARTAS

Presidente Hotel Cuiabá, Mato Grosso 25 de julho de 1967

Caro Kenneth,
Lembro que durante um de nossos últimos encontros no Rio mencionei minha intenção de escrever algo concreto quando chegasse a Cuiabá. Mal sabia o que me aguardava no grande sertão brasileiro. Cedo às tensões entre vontade e circunstância e devo adiar para outra ocasião até uma tentativa de resumir meu progresso na pesquisa. Minha volta a Goiânia iniciou uma semana bastante caótica, enquanto eu me esforçava para ir de Goiânia a Cuiabá. Descobri que os aviões estavam todos lotados por algum tempo, então decidi pegar um ônibus; uma opção de que me lembrarei por muito tempo. Viajei em três ônibus diferentes, em graus variados de estrago, num espaço de 36 horas através das terras desoladas e nada inspiradoras entre as duas cidades da fronteira. Meu maior consolo na viagem foi que não tive de fazê-la em lombo de mula -um pequeno e precioso benefício da perspectiva histórica.
[...] O verdadeiro tesouro de Cuiabá é seu arquivo. Na verdade o arquivo está dividido em dois prédios, em lados opostos da cidade. A Biblioteca e Arquivo Público do Estado de Mato Grosso têm todos os documentos entre 1776 e 1822, enquanto o Arquivo do Estado de Mato Grosso tem os documentos de 1750 a 1775. Ambos possuem material dos séculos 19 e 20. Os documentos coloniais são guardados em latas de aço, cada uma supostamente correspondente a um ano. Em geral a organização é correta. Em cada lata há entre cem e duzentos documentos individuais, alguns deles dobrados juntos por algum pesquisador inominável, outros em ordem aleatória. Acho que posso dizer com certa segurança que os documentos desses arquivos são tão ricos, ou mais, quanto qualquer coisa que já vi, e eles prometem preencher a maioria dos buracos em minha pesquisa. [...] Tente manter contato, e vamos ver se conseguimos produzir alguma coisa que valha a pena sobre a história do Brasil.
Sinceramente,
David

Avenida Hotel Av. Pres. Vargas Belém, Pará 26 de Outubro de 1967

Meu caro Dr. Sérgio,
Aqui estou na foz do grande rio-mar na antiga Felis Lusitânia, chamada pelos modernos Belém. Já fiz a grande derrota de Villa Bella da Santíssima Trindade de Mato Grosso, seguindo a esteira dos botes do nosso íntimo amigo João de Sousa. Felizmente eu não podia arranjar uma canoa e peguei um dos navios mais confortáveis do SNAPP de Manaus para Belém. O navio fez escalas em vários portos e eu podia ver a vida amazônica de perto. A viagem foi linda.
Faz quase dois meses que estou pesquisando na Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Este arquivo tem uma abundância incrível de documentos realmente preciosos sobre a Amazônia no período colonial, especialmente do século 18. Eu não posso imaginar como Artur Reis [Arthur Cezar Ferreira Reis, governador do Amazonas em 1965], nas suas centenas de livros, pudesse desconhecer tantos manuscritos. Aqui há documentos para estudos detalhados de infinitos temas na história do Norte brasileiro. Se você tiver estudantes com interesse na Amazônia, pode com certeza mandá-los aqui. Animado pelo material, tenho dirigido meus estudos mais para a parte amazônica (do que a parte de Mato Grosso) e agora tenho ajuntado bastante informação sobre a vida das povoações dos índios, a atuação do sistema do diretório, a escravatura e a vida comercial da Amazônia no século 18. Também achei vários documentos inéditos sobre João de Sousa [comerciante, viajante, construtor de canoas, intimamente envolvido na vida dos índios, colonizadores e governantes da Amazônia], inclusive cartas escritas e assinadas por ele. Parece que ele tinha um negócio bem lucrativo de fábrica de canoas -isto é, quase um monopólio na região do rio Madeira, e os governadores e expedições do serviço real geralmente tinham que apelar a ele para conseguir as canoas necessárias à navegação do Madeira, quando suas embarcações afundaram ou receberam danos. Há uma referência que diz que Azevedo ainda estava vivo e morando em Belém em 1777. Não achei informações dele depois daquela data. Acho que ele morreu na década de 1780, mas não estou certo ainda. Nada sobre Joaquim Lopes Poupino. Talvez um dia possamos ajuntar toda nossa informação sobre João de Sousa para um estudo colaborativo.
Pretendo ficar em Belém mais um mês (mais ou menos) e logo voltar para os EEUU para falar com [Richard] Morse. Depois, em janeiro, vou para Lisboa, onde devo ficar até maio ou junho de 1968.
Depois do silêncio de quase seis meses recebi uma carta do meu prezado professor e advisor [sic]. Parece que Morse teve um verão realmente infernal, por causa da longa enfermidade do seu pai. O pai morreu há um mês.
Dê meus cumprimentos a minha mãe brasileira (e cuide das suas alunas -vou voltar).
De V.Ex.a mais humilde e reverente criado,
David



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