São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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TESTEMUNHA OCULAR

por Maria Odila Leite da Silva Dias

A partir dos 19 anos, como jovem estudante de direito no Rio de Janeiro, Sérgio Buarque de Holanda se inseriu em todas as brechas possíveis do mundo jornalístico carioca. Participou ao mesmo tempo de pequenas revistas literárias da vanguarda modernista, que surgiam e desapareciam na sua precariedade improvisada, e simultaneamente sobrevivia como livre atirador ou free-lancer em muitas das grandes redações, como as de "O Jornal", "Revista do Brasil" e "Jornal do Brasil".
A imprensa carioca se transformava, surgiam as grandes empresas do noticiário internacional. Assis Chateaubriand começava a construir seu império jornalístico e as redações se abriam para o convívio com as agências internacionais de notícias, como a United Press, Havas e depois a Associated Press. O jornalismo se profissionalizava e passava a ser uma alternativa para as repartições públicas, que até então acolhiam grande parte da intelectualidade carioca.
Eminentemente sociável, Sérgio Buarque convivia com gente variada. Eram seus amigos poetas de vanguarda e jovens jornalistas da turma da pesada (no dizer de Francisco de Assis Barbosa), como Múcio Leão, Austregésilo de Athayde e Ribeiro Couto. Vivia com eles a sociabilidade das livrarias, dos restaurantes, dos bares, dos passeios a pé, das discussões engajadas.
Era uma sociabilidade de gente séria que sabia rir. Configurava uma forma peculiar de convívio intelectual. Reunia gerações espaçadas, pois intelectuais de envergadura conviviam com jovens promissores. Anos mais tarde, lembrava-se da alternância do trabalho e das rodas de boemia, quando passava as noites na companhia de sambistas da importância de Donga, Pixinguinha e Patrício Teixeira. Foi colega de Ari Barroso, na Faculdade de Direito.
Outro companheiro da faculdade, Afonso Arinos de Melo Franco o apresentou a Rodrigo de Melo Franco, que assumia em 1924 o posto de redator-chefe incumbido de dar novo formato à "Revista do Brasil". Sérgio Buarque passou a escrever regularmente crônicas para a revista nessa sua nova fase.
Também por intermédio de Afonso Arinos, começou a escrever para "O Jornal", veículo de oposição, recentemente comprado, então, por Assis Chateaubriand. À noite, trabalhava na sede da agência Havas, que se instalara na redação de "O Jornal". Graças aos bons conhecimentos de inglês que tinha e ao fato de ser exímio datilógrafo, traduzia com rapidez os telegramas que chegavam com notícias do exterior.
Em meio a essas atividades diversificadas, viveu intensamente o ano de 1924, quando as autoridades políticas viviam em estado de alerta, temendo um novo levante dos militares. Graça Aranha, que acabava de romper com a Academia Brasileira de Letras, gostava de brincar com os jovens, revivendo veleidades anarquistas de sua juventude. Uma dessas brincadeiras o levou à prisão. No café Globo, em frente à agência Havas, na avenida Rio Branco, escreveu com o auxílio de Sérgio Buarque um telegrama cifrado, que enviou a Antonio Prado, chefe das oposições em São Paulo, anunciando a iminência de uma manifestação política importante: "Tumor mole vem a furo esta noite". O telegrama foi interceptado e a polícia tomou providências sem demora. Sérgio Buarque não separava em ambientes estanques suas atividades de jornalista das atividades de militância modernista. Era seu modo de combater elites corruptas e valores ultrapassados. Provocador e brincalhão, em meio a dissabores de desentendimento entre os amigos modernistas, escreveu duas crônicas na "Revista do Brasil", que assinou com os pseudônimos de Gomes Sampaio e de Esmeraldino Olímpio, inventando boatos sobre novas tendências modernistas, encabeçadas pelos "novos do Piauí", que suscitou muitos comentários. Gilberto Freyre chegou de Recife, e Sérgio Buarque o apresentou num bar como Gomes Sampaio. As blagues faziam parte da sua militância modernista. Em 1925, ao ser entrevistado com Prudente de Morais, lembrava que o modernismo não era uma escola literária: era uma "atitude de espírito". Como jovem jornalista, entrevistou personalidades que visitavam o Rio de Janeiro. Para Blaise Cendrars, apresentou-se como autor de um livro imaginário chamado "L'Automobile au Bois Dormant". Além desses, tinha outros livros que supostamente estava escrevendo, como "Ypissilone, o Magnífico" e "Rui Barbosa Nunca Existiu". Todos esses livros, anunciava nas rodas literárias, seriam reunidos num só volume chamado "Títulos ao Portador".


JORNALISTA NOS ANOS 20, CONVIVEU NO RIO COM JOVENS INTELECTUAIS COMO GRAÇA ARANHA E JOÃO RIBEIRO E MÚSICOS COMO PIXINGUINHA, ALÉM DE TER PRESENCIADO EM BERLIM O SURGIMENTO DO CINEMA FALADO E A ASCENSÃO DOS NAZISTAS


Em 1926, escreveu na "Revista do Brasil" um de seus artigos mais polêmicos: "O Lado Oposto e Outros Lados". Expunha um aspecto corajoso e combativo de sua personalidade. Rompia com Graça Aranha, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida. As brigas com os companheiros o levaram a passar, em 1927, por uma profunda crise existencial. Partiu para Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, onde permaneceu cerca de um ano dirigindo o pequeno jornal local chamado "O Progresso". Em 1928, retomou a tradução de notícias do estrangeiro, dessa vez para a United Press. Múcio Leão levou-o ao "Jornal do Brasil", onde passou a escrever uma crônica diária e sem assinatura intitulada "O Dia dos Senadores". Ali conviveu com Barbosa Lima Sobrinho, Aníbal Freire e João Ribeiro, pelo qual tinha imensa admiração. Entrevistou personalidades literárias de vanguarda, como Blaise Cendrars, Pirandello e Marinetti. Em 1929, como correspondente dos "Diários Associados" em Berlim, publicou uma conversa com Thomas Mann. Também realizou entrevistas com figuras do mundo político, como Henri Guibeaux -militante comunista refugiado na Alemanha em virtude de resistência à perseguição de Stálin contra Trótski- que acabava de publicar um livro sobre Lênin. Como correspondente internacional de "O Jornal", escreveu reportagens sobre as perspectivas do comércio do café brasileiro no mercado alemão. Visitou a exposição de Poznam, incumbido como jornalista de explorar as possibilidades de o Brasil manter relações comerciais com a Polônia, que ressurgia como país.

Crítico da cultura
Em julho de 1930, assistiu em Berlim à chegada do zepelim pilotado pelo problemático e desbocado dr. Hugo Eckener, com quem fez uma entrevista tumultuada. "A cidade blasée por excelência foi sacudida por um desses frêmitos de emoção quase convulsiva, que estamos habituados a conhecer em nossas terras latinas e tropicais", escreveu em "O Jornal" (18/7/1930). Estava em Berlim quando os nazistas ganharam pela primeira vez as eleições, em setembro de 1930. Fez diversas reportagens sobre a crise financeira que o país atravessava.
As atividades de sobrevivência também se impuseram a Sérgio Buarque em Berlim, onde logo foi obrigado a procurar bicos e trabalhos extras para se manter. Um desses bicos consistia em traduzir as legendas de filmes alemães para o português. Foi assim que traduziu o "Anjo Azul" (1930), do diretor Joseph von Sternberg, com Marlene Dietrich.
Outro trabalho que assumiu foi o de redator da revista bilíngue "Duco", que se especializava em matérias sobre o comércio entre a Alemanha e o Brasil. Não deixou de comentar a crise ocasionada, logo após sua chegada a Berlim, pela introdução do cinema falado, em 1929. As bases técnicas e financeiras para a fabricação do "ton-film" eram tão precárias na Alemanha que o cinema nacional entrou na maior crise.
Ao primeiro impacto da chegada na Alemanha, o jornalista se transformava em crítico da cultura. Sentira o desafio cultural da terra estranha. "Seria preciso alcançar a virtude admirável do silêncio, tão difícil entre os povos de estilo latino, amigos de criticar e de sorrir" ("O Jornal", 15/9/1929). Não subestimava a diversidade histórica do país, que via dividido em temporalidades muito diferenciadas. "Munique, muito 1875, Hamburgo e os centros hanseáticos, muito 1900, e Berlim, muito, mas muito 1920 ("O Jornal", 16/11/1930). Como jornalista, se esforçou por interpretar essas diferenças e suas nuanças.
Em suas reportagens, comparou a diferença entre a visão de mundo dos franceses e a dos alemães. Os latinos se apegavam a construções rígidas e irredutíveis de pensamento, ao passo que os alemães se caracterizavam por uma notável fluidez da cultura, "que se manifestava justamente por uma sensível resistência a qualquer definição, tudo quanto se poderia exprimir pela música, essa flor do espírito germânico".
Muitos anos mais tarde, em 1979, referia-se àquela fase de atividades jornalísticas como o serviço militar graças ao qual pôde adquirir um estilo conciso e razoavelmente espontâneo. Foi por meio dos afazeres de jornalista, escrevia ele, que conseguira uma linguagem mais precisa e expressiva do que propriamente bonita. "Ou, como se prefira, de uma linguagem onde a boniteza da forma, se ocorresse, fosse proveniente apenas da claridade maior introduzida nela pela feliz expressão" ("Tentativas de Mitologia", pág. 20).
Em 1935, recordou num artigo para a "Folha de Minas" a impressão deixada nele pela fisionomia de Thomas Mann e o sentimento que guardou de que as forças de dissonância pressentida em sua fisionomia tinham a ver com o tema da desagregação, que percorria seus romances. Referia-se ao vislumbre de uma dissonância em sua personalidade que chegava a ser tumultuosa e trágica -e que Sérgio Buarque não deixava de associar à sua ascendência brasileira.
O modo como expressava a intuição das forças que permeavam o estilo do romancista alemão já demonstrava cabalmente estar senhor das artes pelas quais batalhara longamente na imprensa.

Maria Odila Leite da Silva Dias é professora do programa de pós-graduação em história da Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo, e autora de "Quotidiano e Poder em São Paulo no Século 19"(ed. Brasiliense).


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