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+ filosofia
Para a ensaísta Camille Paglia, originalidade do pensamento de Marshall McLuhan deriva da fusão entre pragmatismo protestante e valorização romântica da natureza
Uma visionária celebração do ciberespaço
Camille Paglia
especial para "Salon"
Ainda existe uma guerra sobre o
legado dos anos 60. Para muitos
conservadores essa década ressaltou os piores aspectos da cultura contemporânea, da promiscuidade
sexual e a epidemia de divórcios ao abuso de drogas e a decadência do ensino.
O que se esquece é que houve importantes avanços intelectuais nos anos 60,
graças aos autores norte-americanos de
uma geração mais velha. Houve uma
ruptura na continuidade, já que a maioria dos jovens influenciados por esses
avanços não ingressou nas profissões. O
vácuo cultural seria preenchido nos anos
70 pelo pós-estruturalismo cheio de jargão francês e pela Escola de Frankfurt,
que dominaram os departamentos de literatura durante um quarto de século.
A hora do resgate
É hora de um resgate e de uma reavaliação dos pensadores norte-americanos. Marshall McLuhan (1911-1980), Leslie Fiedler e Norman
O. Brown são a tríade que eu trocaria por
Jacques Lacan e Jacques Derrida, cujas
obras pertencem à Europa arrasada do
pós-guerra e cujas idéias se adaptam mal
à tradição anglo-americana. McLuhan,
Fiedler e Brown embeberam-se de literatura, da clássica à moderna. Eles compreenderam a imaginação criativa e estenderam suas descobertas à especulação da história e da sociedade. Sua influência foi positiva e frutífera: eles não
impuseram seu sistema a acólitos, mas
libertaram toda uma geração de estudantes para pensar livremente e descobrir suas próprias vozes.
Sinto-me realmente afortunada por
McLuhan ter publicado sua obra central,
"Understanding Media" (Entendendo a
Mídia), no mesmo ano -1964- em que
entrei na faculdade. "Love and Death in
the American Novel" (O Amor e a Morte
no Romance Americano), de Fiedler, e
"Life against Death" (A Vida contra a
Morte), de Brown, haviam aparecido
apenas cinco anos antes.
A análise pioneira de McLuhan sobre a
revolução desencadeada pelos meios de
comunicação eletrônica na cultura impressa de Gutemberg demonstrou que a
história poderia ser reinterpretada em
termos que interligam a cultura erudita e
a popular. Ele tinha uma visão de alcance
espantoso e uma encantadora aptidão
para exemplos surpreendentes.
A inteligência irreverente e aforística
de McLuhan estava perfeitamente sintonizada com o espírito audaz de minha
geração, com seus "happenings" absurdos e seu gosto por frases estimulantes
-no estilo satírico de Lenny Bruce ou à
maneira gnômica dos sábios zen e dos
gurus indianos.
"Understanding Media", que teve tremendo impacto em um momento crucial de meu desenvolvimento, é um marco na análise cultural. Contém um panorama épico da cultura ocidental: o mito
grego, Shakespeare, William Blake, Pablo Picasso e Margaret Mead se misturam aos irmãos Marx num redemoinho
à "Alice no País das Maravilhas" de relógios, gibis, alfabetos, telefones e máquinas de escrever. Pela forma picaresca e o
tom carnavalesco, "Understanding Media" lembra o "Satiricon", de Petrônio,
com sua vívida pintura da Roma do imperador Nero. McLuhan encontra a chave do nosso ambiente cultural sobrecarregado, e seu ritmo ágil, tom brincalhão e
toque exímio fazem a semiótica acadêmica parecer impostada, pretensiosa e
inutilmente abstrata.
Fusão de idéias
Meu argumento é
que os intelectuais americanos, tipificados por McLuhan, Fiedler e Brown, alcançaram uma nova fusão de idéias
-um pragmatismo sensorial ou um
compromisso com a experiência concreta, enraizada no corpo, e ao mesmo tempo uma celebração visionária do metaespaço artístico-, ou seja, o reino ficcional da arte, da fantasia e da crença projetado pela boa poesia e prefigurando nosso próprio ciberespaço.
Os filósofos americanos desde o final
do século 19 se afastaram das preocupações metafísicas e da visão de mundo
sombria dos pensadores europeus. O
pragmatismo de William James baseava-se em seus estudos de anatomia e fisiologia. O retrato feito por James da consciência como um agente ativo antecipou
a identificação por McLuhan da mídia
moderna como uma "extensão" dos sentidos. As teorias de John Dewey também
se baseavam nos sentidos, e seu enfoque
da reforma educacional prefigurou a
preocupação de McLuhan sobre como
os jovens processam a informação nesta
era saturada de mídia. A fé de Dewey na
democracia compara-se à oposição de
McLuhan ao marxismo, decorrente de
sua constatação de que o capitalismo, ao
criar os meios de comunicação de massa,
reforçou a individualidade e promoveu a
mobilidade social.
A primazia do corpo na tradição intelectual norte-americana é uma de nossas
grandes distinções. A classificação de
McLuhan das diversas eras como "acústica" ou "visual" e sua ênfase para o "tátil" mescla-se maravilhosamente às artes
americanas. A exploração do corpo inspirou a coreografia revolucionária de
Isadora Duncan e Martha Graham; o
"método" stanislavskiano do Actors Studio de Lee Strasberg; os pulsos e respirações orgânicos da escola de poesia Black
Mountain; e os ritmos percussivos de
nossa gloriosa música popular, do ragtime ao rock and roll.
A filosofia européia desmoronou depois de Kierkegaard e Nietzsche. Os pós-estruturalistas, seguindo os niilistas Husserl e Heidegger, eram praticamente
pensadores franceses que lutavam com o
racionalismo do discurso francês. Mas os
americanos que absorveram McLuhan,
Fiedler e Brown não tinham necessidade
do pós-estruturalismo, com sua visão da
realidade saussuriana "mediada" pela
linguagem. Os falantes de inglês possuem sua própria crítica da língua, contida na própria literatura inglesa, do inglês
médio de Chaucer e do inglês protomoderno de Shakespeare aos experimentos
de vanguarda de Joyce, que McLuhan,
um amante da etimologia, estudou detalhadamente.
A tradição intelectual norte-americana
começou, na minha opinião, no encontro do romantismo britânico com o inglês pragmático norte-americano -o
estilo simples protestante, tanto nos Estados Unidos como no Canadá, com
seus sisudos imigrantes escoceses. O autor crucial da transição foi Ralph Waldo
Emerson, o poeta e palestrante aforístico
a quem atribuo a linhagem intelectual de
McLuhan. Os aforismos ousados de
McLuhan, ou, como dizemos hoje, "tiradas", eram sua assinatura pública.
É o respeito romântico pela natureza
que eu defino como característica principal da tradição intelectual americana. O
mundo claustrofóbico do pós-estruturalismo enxerga apenas a sociedade opressiva atuando sobre uma humanidade
passiva e indefesa. A natureza selvagem e
sublime raramente repercute em Paris.
Na América do Norte, porém, com seus
poderosos sistemas climáticos em constante mutação, sua vasta geografia e seus
monumentos naturais, como Niagara
Falls e o Grand Canyon, nós sabemos
que a natureza é a base onipresente para
qualquer pensamento e ação humanos.
A força da paisagem
A largueza da
percepção de McLuhan veio em parte,
como diz o biógrafo Philip Marchand, de
suas origens nas planícies de Alberta
-exatamente o tipo de paisagem, na
verdade, que inspirou o tão influente
"estilo das pradarias" de um gênio americano, o arquiteto Frank Lloyd Wright.
Fiedler ensinou durante 23 anos sob os
amplos céus de Montana e, por 30 anos,
entre as neves de Buffalo. Ele e Brown fizeram o curso secundário no norte de
Wisconsin, onde McLuhan iniciou sua
carreira de professor. Como nativa da região nevada do norte de Nova York, eu
também reivindico a festiva independência dos nortistas. Gosto de dizer que
fui criada respirando o ar frio e limpo do
Canadá.
A síntese norte-americana do pragmático e do visionário em McLuhan, Fiedler
e Brown é perfeitamente adequada para
se analisar as rápidas mudanças atuais
em nossa era tecnológica. A mídia e a comunicação de massa, que foram desenvolvidas e aperfeiçoadas nos Estados
Unidos desde o século 19, com a ascensão dos jornais de grande circulação, não
podem ser totalmente compreendidas
por meio de modelos europeus. Foi
McLuhan quem previu o que minha geração viveu, dos rádios de transistores e
fones de ouvido estereofônicos aos cem
canais a cabo de hoje.
A educação deve ser purgada das fórmulas européias ressequidas que atravancam e incapacitam as mentes estudantis. Devemos recuperar os paradigmas e metáforas norte-americanos, restaurar o idioma norte-americano no discurso acadêmico. A mídia e as comunicações pela Internet são um "fluxo de
consciência" jamesiano e joyciano, fluido e mercurial, e nossos jovens -dos
brilhantes empresários da Web aos engenhosos hackers- ocupam um espaço
mental radicalmente diferente do vale da
morte da Europa pré e pós-guerra. A "aldeia global" de McLuhan aconteceu. Todos os dias a Web está realizando o sonho dos anos 60 -da percepção expandida ou da consciência cósmica.
Em sua palestra "O Acadêmico Americano", de 1837, Emerson dizia: "Já ouvimos demasiado as musas corteses da Europa". Sobre os americanos, ele vaticina:
"Caminharemos com nossos próprios
pés; trabalharemos com nossas próprias
mãos; falaremos com nossas próprias
mentes".
Camille Paglia é ensaísta norte-americana e professora de humanidades na Universidade da Filadélfia. Escreveu, entre outros, "Personas Sexuais"
(Companhia das Letras).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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