São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


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+ imprensa
A arte do artigo, em risco na era da Internet, consiste em falar das coisas que passam como se não fossem passar
A importância do efêmero

Fernando Savater
especial para "El País"

Em certa passagem do "Tao-te King", dão-se conselhos de como fazer política e compara-se esse ofício com a arte de fritar peixes pequenos: é preciso que o fogo não seja tão forte a ponto de estorricá-los nem tão fraco a ponto de ficarem crus. No meu entender, o segredo para escrever bons artigos reside em um equilíbrio parecido. As idéias devem ser tratadas como peixinhos: se você as cozinhar demais, terminarão carbonizadas e indigestas; se apenas as insinuar, o leitor ficará com vontade de saber o que você realmente queria dizer. Uma das realidades fundamentais acerca dos jornais pertence à escola de La Palisse: recebem o nome de diários porque aparecem todos os dias. Nenhum artigo, por melhor ou certeiro que seja, sobrevive muito além do dia em que sai impresso. Pelo menos não é saudável que quem o escreva pense que está cunhando um ditame para os séculos vindouros, devendo contentar-se em se dirigir àqueles que compartilham com ele a luz desse mesmo amanhecer. Isso é uma dificuldade adicional para os aprendizes de filósofo que escrevemos na imprensa, pois todos sonhamos em arengar as gerações futuras. Mas os artigos de jornal não se inscrevem no bronze perene, e sim no transitório e reciclável papel. Tratam não do ser, e sim do passar, como diria Montaigne (que poderia ter sido também um excelente colunista se tivesse nascido um pouco mais tarde). José Bergamín (1897-1983) intitulou "As Coisas Que Não Passam" uma série de colaborações jornalísticas de sua autoria. A arte do articulista com certa aspiração a aprofundar seus temas consiste em falar das coisas que passam como se não fossem passar. É um autêntico desafio, alegre e difícil ao mesmo tempo. Dia após dia, cada qual tenta vencê-lo -e vez por outra o consegue. Mas sempre se fracassa ao pensar que um artigo é capaz de salvar ou condenar o mundo. Não, o melhor artigo, o verdadeiro "bom" artigo não é mais do que um artigo. Nada mais nem nada menos. Quem são os melhores articulistas de jornal que tivemos o gosto e o proveito de ler? É inevitável começar por Mariano José de Larra, que não fez apenas a sátira dos usos de sua época, mas algo parecido a uma metafísica irônica dos costumes: transformou suas caricaturas em esboços do destino humano, como também conseguira Cervantes. Larra reconcilia-me com a opaca literatura espanhola do século 19. Os artigos de Borges para a revista "Sur" ou aqueles aparentemente ainda mais humildes para o semanário "El Hogar" são micromonumentos perfeitos à página leve que a atualidade arrasta. Ele comenta uma leitura, uma moda ou um preconceito com um toque ligeiro e fundo que resulta irresistível: Borges é um dos poucos articulistas que nos proporciona mais prazer quando discordamos dele do que quando exprime uma opinião que compartilhamos. E, claro - acima de todos? - adoro o Chesterton jornalista. Seus artigos são estritamente "mágicos": nada por aqui, nada por ali, e de repente surge uma brevíssima teoria sobre o que quer que seja, em que se concentra mais pensamento e mais sabedoria que em qualquer pesado volume filosófico escrito por alguns dos meus colegas acadêmicos. O título mesmo de uma de suas recopilações de artigos mostra como Chesterton entendia bem em que consiste a genialidade do gênero: "Enormes Minúcias".

Calhamaços e notas
Larra, Borges e Chesterton e também ilustres predecessores, como Montaigne e Voltaire. Costumo lembrá-los quando algum asno solene, desses tão comuns e que tanta veneração suscitam, menospreza a página perfeita e frágil que ele não seria capaz de escrever, dizendo: "Bah, isso é jornalismo!". Para essa escória, nada é mais respeitável que o pedantismo que ocupa calhamaços e vem com notas de rodapé. Ignoram que a tarefa humana, ao menos desde que a modernidade aposentou as "Summas" mais ou menos teológicas, tem consistido basicamente em ler os jornais.
Agora também essa ocupação parece que se tornará obsoleta, por obra da Internet e seus "chats". Continuarão a existir bons artigos na nova era digital? Seja como for, alguns de nós não vão mais poder nem querer prescindir deles: quando chegar a hora fatal, que me enterrem envolto nas páginas de opinião. Afinal, como qualquer artigo, eu também terei durado apenas a brevidade de um dia.


Fernando Savater é filósofo espanhol, autor, entre outros, de "Ética como Amor-Próprio", que acaba de ser lançado pela editora Martins Fontes.


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