São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


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Estudo utiliza instrumental psicologizante para tratar da biografia e da obra do cineasta Glauber Rocha
O morto sabe esperar

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

A "Apresentação" de Márcio Souza, dirigente da Funarte, instituição patrocinadora do livro, é um desastre. Ruim demais. Revela desconhecimento total da obra de Glauber Rocha e da bibliografia escrita sobre o cineasta, aqui e no exterior. Daí começar a sua apresentação com a frase leviana: "Talvez este seja o livro mais completo sobre Glauber Rocha (...)". Não é verdade; aliás, numa tese universitária que é biografizante antes de qualquer outra coisa, é injustificável não ser citada a biografia de 625 páginas feita pelo professor e jornalista João Carlos Teixeira Gomes, "Glauber, Esse Vulcão" (Nova Fronteira), publicada em 1997. Essa omissão é tudo: omite-se onde está o alpiste. Quem leu o livro de João Carlos Teixeira Gomes não encontrará nenhuma informação nova ou interpretação diferente no trabalho apressado de Tereza Ventura, que se desenvolve de modo linear, resenhando e diluindo o que já foi dito, seguindo a cronologia da vida e obra, a despeito do título "A Poética Polytica de Glauber Rocha"; afinal, por que não a "Polytica Poética de Glauber Rocha"?

Nem poética nem política
Não temos aí poética nem política, quanto mais a reflexão sobre uma coisa e a outra. Não há nenhuma unicidade. Tudo solto e mal ajambrado. Lendo as 400 e poucas páginas não consegui perceber uma única tese da autora sobre o cineasta, embora à página 47, ao comentar um roteiro juvenil, depare com a seguinte pérola: "Nesse pequeno roteiro, o jovem já anuncia uma problemática que o acompanha por toda a vida: a interação entre mitos nacionais e o processo civilizador na consciência do colonizado". Isso não quer dizer nada; de resto, isso está em todo autor brasileiro, desde Gregório de Matos Guerra, de sorte que o leitor não fica sabendo a concepção que Glauber tinha do colonialismo tanto no cinema quanto na sociedade, se é possível separar uma coisa da outra.
O nacionalismo glauberiano, traço fundamental de sua visão de mundo, é apresentado de modo confuso e superficial, como se um autor nacionalista fosse alheio ou refratário às idéias e aos autores estrangeiros. Referindo-se ao reitor Edgar Santos, escreve a autora: "O processo cultural promovido pelo reitor não era partidário de uma visão nacionalista. O empenho do reitor era o de integrar a Bahia num concerto cosmopolita, "importar livros e intelectuais". Esse processo foi fundamental para a formação de Glauber, que partilhava do experimentalismo estético de Koellreuter e Lina Bo Bardi".
À abordagem perfunctória do nacionalismo, acrescente-se o "tema da dualidade do arcaico e do moderno", o qual pode fazer parte da sociologia e da sociologia colonizada, enlatada e entreguista, mas não do universo artístico e conceitual de Glauber Rocha, que tinha verdadeiro ódio da sociologia "made in" USP, Cebrap, Iuperj e "tutti quanti".
Da ausência de qualquer esforço de interpretação da obra do cineasta resulta o procedimento heteróclito e recheado de anacolutos da autora, misturando alhos com bugalhos: "Glauber (...) não cultivava uma visão da história como desdobramento técnico-econômico e cultural. Para ele nenhum evolucionismo poderia explicar o destino histórico do Terceiro Mundo". É como se o Terceiro Mundo glauberiano, lunático e nefelibata, fosse uma quimera antitecnológica e estivesse fora de qualquer consideração econômica. É nessa que às vezes o cineasta aparece retratado pela pincelada caricatural: um "romântico" bestalhão.

Ambivalência rebelde
Essa mesma ambivalência romântica, rebelde e bocó está escancarada na infeliz apresentação psicologizante de Márcio Souza, que é um primor de visão burocrático-carreirista sobre as glórias e desventuras do "kinema", em que a cultura oficial dá bandeira na produção de um livro sobre o cineasta. Márcio Souza, outrora cineclubista amazonense, conheceu Glauber antes de 1960: "Para dizer a verdade, quase nunca concordávamos, especialmente em questões ideológicas, e eu sempre desconfiava que, por trás da iconoclastia de Glauber, estava um direitista de plantão. Paulo Gil Soares me dizia: "Glauber é um reacionário. Imagina que não deixa Anecy namorar com ninguém'". Sacanagem. Perfídia. Má-fé. Da suposta ideologia de direita ao ciúme em relação à irmã, sabendo que esta já morreu e não vai dizer mais nada. Parece que o quente era Márcio, revolucionário, enquanto Glauber era um babaca. De resto, o cineasta foi muito mais iconômano ou construtivista do que iconoclasta. "Direitista de plantão" lembra o feio linguajar weffortiano, de modo que é preciso eliminar Glauber -outra vez, do ponto de vista simbólico, um patriarca "beligerante", por isso incapaz, segundo Márcio Souza, de privar do gozo feminino da religião católica, cordial e acomodatícia. Uau!

Intelectual ateu
Alé m do fato de incomodar por ser o antimodelo da desnacionalizada era feagaciana, Glauber Rocha ainda é criticado por ter sido intelectual ateu. O perigo de fazer biografia sem idéia diretriz na cabeça é descambar para a vacuidade retórica, conforme se vê no capítulo acerca da poesia: "Em Glauber, a arte está sempre preenchida de vida, ou a vida se deixa tocar e esculpir permanentemente pela arte. Há a sensibilidade que informa e forma uma inquietação que quer trazer o ato poético para a vida no sentido de torná-la possível. Há um cultivo permanente que expressa uma subjetividade em tensão, que se abre para colher formas externas. Glauber passa a idéia de uma certa integridade entre algo que existe internamente e algo que está fora". Dispenso-me de comentar o que a autora escreveu sobre a montagem de "A Idade da Terra". Uma barbaridade. Sociologia sem cinema.

Glauber e Golbery
Na questão sobre Glauber e os militares, aí a coisa fica feia, porque existe a afirmação suspeita e gravíssima de que o cineasta se encontrara pessoalmente com o general Golbery, que o teria psicanaliticamente apaziguado pela morte da irmã Anecy, assim como liberado dinheiro na Embrafilme para filmar "A Idade da Terra", em troca da "adesão" ao regime militar. A autora, contudo, não indica a fonte da fofoca; aliás, o livro todo é tecido de depoimentos de alguns cineastas, costurados de modo arbitrário e sem nenhuma referência sobre quem está falando. As aspas foram abolidas. A isso dá-se o nome de intertexto pós-moderno universitário.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.


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