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Estudo utiliza instrumental psicologizante
para tratar da biografia e da obra do cineasta Glauber Rocha
O morto sabe esperar
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
A "Apresentação" de Márcio Souza, dirigente da Funarte, instituição patrocinadora do livro, é um
desastre. Ruim demais. Revela
desconhecimento total da obra de Glauber Rocha e da bibliografia escrita sobre
o cineasta, aqui e no exterior. Daí começar a sua apresentação com a frase leviana: "Talvez este seja o livro mais completo sobre Glauber Rocha (...)".
Não é verdade; aliás, numa tese universitária que é biografizante antes de qualquer outra coisa, é injustificável não ser
citada a biografia de 625 páginas feita pelo professor e jornalista João Carlos Teixeira Gomes, "Glauber, Esse Vulcão"
(Nova Fronteira), publicada em 1997. Essa omissão é tudo: omite-se onde está o
alpiste.
Quem leu o livro de João Carlos Teixeira Gomes não encontrará nenhuma informação nova ou interpretação diferente no trabalho apressado de Tereza Ventura, que se desenvolve de modo linear,
resenhando e diluindo o que já foi dito,
seguindo a cronologia da vida e obra, a
despeito do título "A Poética Polytica de
Glauber Rocha"; afinal, por que não a
"Polytica Poética de Glauber Rocha"?
Nem poética nem política
Não temos aí poética nem política, quanto mais
a reflexão sobre uma coisa e a outra. Não
há nenhuma unicidade. Tudo solto e mal
ajambrado. Lendo as 400 e poucas páginas não consegui perceber uma única tese da autora sobre o cineasta, embora à
página 47, ao comentar um roteiro juvenil, depare com a seguinte pérola: "Nesse
pequeno roteiro, o jovem já anuncia uma
problemática que o acompanha por toda
a vida: a interação entre mitos nacionais
e o processo civilizador na consciência
do colonizado". Isso não quer dizer nada; de resto, isso está em todo autor brasileiro, desde Gregório de Matos Guerra,
de sorte que o leitor não fica sabendo a
concepção que Glauber tinha do colonialismo tanto no cinema quanto na sociedade, se é possível separar uma coisa
da outra.
O nacionalismo glauberiano, traço
fundamental de sua visão de mundo, é
apresentado de modo confuso e superficial, como se um autor nacionalista fosse
alheio ou refratário às idéias e aos autores estrangeiros. Referindo-se ao reitor
Edgar Santos, escreve a autora: "O processo cultural promovido pelo reitor não
era partidário de uma visão nacionalista.
O empenho do reitor era o de integrar a
Bahia num concerto cosmopolita, "importar livros e intelectuais". Esse processo foi fundamental para a formação de
Glauber, que partilhava do experimentalismo estético de Koellreuter e Lina Bo
Bardi".
À abordagem perfunctória do nacionalismo, acrescente-se o "tema da dualidade do arcaico e do moderno", o qual
pode fazer parte da sociologia e da sociologia colonizada, enlatada e entreguista,
mas não do universo artístico e conceitual de Glauber Rocha, que tinha verdadeiro ódio da sociologia "made in" USP,
Cebrap, Iuperj e "tutti quanti".
Da ausência de qualquer esforço de interpretação da obra do cineasta
resulta o procedimento
heteróclito e recheado de
anacolutos da autora,
misturando alhos com
bugalhos: "Glauber (...)
não cultivava uma visão
da história como desdobramento técnico-econômico e cultural.
Para ele nenhum evolucionismo poderia
explicar o destino histórico do Terceiro
Mundo".
É como se o Terceiro Mundo glauberiano, lunático e nefelibata, fosse uma
quimera antitecnológica e estivesse fora
de qualquer consideração econômica. É
nessa que às vezes o cineasta aparece retratado pela pincelada caricatural: um
"romântico" bestalhão.
Ambivalência rebelde
Essa mesma ambivalência romântica, rebelde e
bocó está escancarada na infeliz apresentação psicologizante de Márcio Souza,
que é um primor de visão burocrático-carreirista sobre as glórias e desventuras
do "kinema", em que a cultura oficial dá
bandeira na produção de um livro sobre
o cineasta. Márcio Souza, outrora cineclubista amazonense, conheceu Glauber
antes de 1960:
"Para dizer a verdade, quase nunca
concordávamos, especialmente em
questões ideológicas, e eu sempre desconfiava que, por trás da iconoclastia de
Glauber, estava um direitista de plantão.
Paulo Gil Soares me dizia: "Glauber é um
reacionário. Imagina que não deixa
Anecy namorar com ninguém'".
Sacanagem. Perfídia. Má-fé. Da suposta ideologia de direita ao ciúme em relação à irmã, sabendo que esta já morreu e
não vai dizer mais nada. Parece que o
quente era Márcio, revolucionário, enquanto Glauber era um babaca. De resto,
o cineasta foi muito mais iconômano ou
construtivista do que iconoclasta.
"Direitista de plantão" lembra o feio
linguajar weffortiano, de modo que é
preciso eliminar Glauber -outra vez, do
ponto de vista simbólico, um patriarca
"beligerante", por isso incapaz, segundo
Márcio Souza, de privar
do gozo feminino da religião católica, cordial e
acomodatícia. Uau!
Intelectual ateu
Alé
m do fato de incomodar
por ser o antimodelo da
desnacionalizada era feagaciana, Glauber Rocha
ainda é criticado por ter sido intelectual
ateu. O perigo de fazer biografia sem
idéia diretriz na cabeça é descambar para
a vacuidade retórica, conforme se vê no
capítulo acerca da poesia:
"Em Glauber, a arte está sempre preenchida de vida, ou a vida se deixa tocar e
esculpir permanentemente pela arte. Há
a sensibilidade que informa e forma uma
inquietação que quer trazer o ato poético
para a vida no sentido de torná-la possível. Há um cultivo permanente que expressa uma subjetividade em tensão, que
se abre para colher formas externas.
Glauber passa a idéia de uma certa integridade entre algo que existe internamente e algo que está fora".
Dispenso-me de comentar o que a autora escreveu sobre a montagem de "A
Idade da Terra". Uma barbaridade. Sociologia sem cinema.
Glauber e Golbery
Na questão sobre Glauber e os militares, aí a coisa fica
feia, porque existe a afirmação suspeita e
gravíssima de que o cineasta se encontrara pessoalmente com o general Golbery,
que o teria psicanaliticamente apaziguado pela morte da irmã Anecy, assim como liberado dinheiro na Embrafilme para filmar "A Idade da Terra", em troca da
"adesão" ao regime militar. A autora,
contudo, não indica a fonte da fofoca;
aliás, o livro todo é tecido de depoimentos de alguns cineastas, costurados de
modo arbitrário e sem nenhuma referência sobre quem está falando. As aspas
foram abolidas. A isso dá-se o nome de
intertexto pós-moderno universitário.
Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e
Tempo), entre outros.
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