São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


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Ponto de fuga

O artista e sua sombra

Jorge Coli
especial para a Folha

A recente discussão sobre a autoria de uma escultura, atribuída a Aleijadinho (1738-1814) e doada ao Masp pela Pirelli, mostra o caráter espetacular do poder que reside nas atribuições de autoria. É uma velha história. Tem-se uma obra de época tal. Não se sabe nada a seu respeito. Alguém, com autoridade "reconhecida", determina: foi feita por fulano. Outra autoridade vem e nega.
A atribuição é importante para a história das artes; ela permite afinar, chegar perto de um autor, de seu ateliê, de seu círculo. Nesse campo, cortar com nitidez, afirmando, por exemplo, se se trata ou não um Aleijadinho, deixa de ser a inquietação mais importante. Na verdade, o historiador sabe que lida com hipóteses, com imprecisões. Mas dar um nome -ah!, dar um nome!- é uma exigência maior para o mercado das artes. Como uma assinatura num cheque, ela precisa ter fundos. Se for de Aleijadinho, vale US$ 350 mil. Não sendo, vale US$ 80 mil. Isso, de fato, não altera a obra, que continua a mesma. Altera o endosso exigido pelo mercado: pode-se brincar com arte, mas não com dinheiro.
O laudo sobre a escultura do Masp nega a ela as "qualidades habituais do artista que sempre causam impacto no espectador -vida, alma, emoção, unidade, força de comunicação". Não se trata, portanto, de critérios objetivos: é uma subjetividade autorizada que fala. A escultura poderá ser do Aleijadinho segundo uma densidade emotiva. Ou seja: a autoridade acaba parecendo um contador geiger. Se sua refinada emoção aumenta perto da obra, ah! está claro, é um Aleijadinho!
Convenções - Os mais prudentes sabem que os catálogos de certos artistas -isto é, as listas completas de suas obras- são como sanfonas. Podem aumentar ou diminuir, segundo tendências de épocas sucessivas. Os critérios de percepção, em parte objetivos, em parte muito circunstanciais e datados, mudam. O que causa emoção agora, pode muito bem ser indiferente para gerações futuras. Essa consciência põe em sadia dúvida parâmetros hoje convincentes. Mais ainda, permite desconfiar do poder conferido à autoridade competente. Esse poder é imenso; num certo sentido, é o de uma co-autoria. Mas, para tanto, exige-se adesão e confiança, porque ele se baseia, antes de tudo, numa convicção.
2 - Hitchcock foi lembrado, com pertinência, a respeito de "Missão Impossível 2", dirigido por John Woo. Em várias situações, o filme refere-se ao mestre do suspense. Mas há uma outra derivação, vinda do "Arsène Lupin", criado por Jacques Becker em 1957, obra-prima requintada e um pouco secreta. John Woo o cita ao pé da letra: a descoberta da jóia num compartimento secreto do banheiro de um magnata. Mesmo a reviravolta que conclui a sequência -é melhor devolver o colar do que roubá-lo- estava no "Arsène Lupin". Sem contar a multiplicação de máscaras, falsos personagens que caracterizavam também o universo do "ladrão de casaca".
Essas referências concordam com a escolha de John Woo por um cinema à velha moda, feito menos de violência do que de nuances, em que se insere, magnificamente, a dimensão melodramática. Thandie Newton, injetando em si própria o vírus, aguardando pelo antídoto, é como Julieta ao beber seu narcótico. Diante de um penhasco, ela parece além da morte, doente de amor. Woo encontrou um ritmo no qual introduz, sem insistência, suas obsessões: combates em câmara lenta, revoadas de pombas, imagens religiosas. Há uma beleza calmamente erótica, sobretudo nos contatos de pele, escura e clara, dos dois protagonistas.
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Lábios - Anda circulando uma nova cópia de "Ascensor para o Cadafalso" (1957), de Louis Malle (1932-1995). A poesia intensa do filme nasce de uma época na qual, de Antonioni a Walter Hugo Khoury, vivia-se a modernidade como um "spleen" de coisa velha. Jeanne Moreau, então com 29 anos, era divina, errando por Paris, depois do pôr-do-sol.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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