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O cineasta e ensaísta americano Donald Richie, radicado em Tóquio desde os anos 40, fala sobre sua amizade com o diretor Nagisa Oshima e da contribuição do cinema japonês ao Ocidente
O Oriente imaginado
Carlos Adriano
especial para a Folha
Erudito e apaixonado do cinema, Donald Richie é um americano em Tóquio
desde os anos 40. Descobriu uma cultura, adotou o Japão como pátria e revelou
filmes japoneses ao mundo.
Autor de mais de 40 livros sobre o país,
escreveu livros clássicos sobre Akira Kurosawa (1910-1998) e Yasujiro Ozu (1903-1963), coletâneas de ensaios ("Visão Lateral"), além de ter adaptado seu romance "O Mar Interior" para as telas. A "Time" chamou-o "deão da crítica de arte
do Japão", e Susan Sontag elogia a "acuidade e espírito de seu olhar sobre as coisas japonesas".
Colaborador do "The Japan Times" e
do "International Herald Tribune", crítico e historiador de cinema, ele se exercitou em pintura, música e fez no Japão filmes experimentais deflagradores, que
encantaram o diretor Nagisa Oshima e o
escritor Yukio Mishima (1925-1970). São
curtas impregnados de imaginário homoerótico doce e hardcore, como "Garoto com um Gato", "Juventude Morta"
e "Cinco Fábulas Filosóficas" (67). Este e
"Cybele" (68) radicalizam o teor da
transgressão, celebrando rituais perversos e sublimes.
Atualmente prepara dois livros. O primeiro é uma nova e gigantesca história
do cinema japonês (das origens ao fim
do século), encomendada pela Columbia
University Press. Já o outro, para a editora Kodansha, é uma breve versão do
mesmo tema, com filmografia completa
e atual sobre o que há em VHS, "laser-disc" e DVD. No último Festival de Roterdã, na Holanda, quando proferiu a palestra "Imaginando o Japão" e
exibiu seus filmes, Richie (1924) concedeu esta entrevista exclusiva à Folha, da qual participou também o curador de programação, Bernardo Vorobow.
Quando e como o sr. se interessou por cinema japonês?
Primeiro eu me interessei por cinema, pois sou de
uma geração de americanos que passou a infância
nas trevas. Todos íamos ao cinema no final dos anos
20 e início dos anos 30. Quando era criança, frequentemente me colocavam no cinema para me manter
quieto e assim eu via tudo que vinha à cidadezinha
em que vivia, no Estado de Ohio (EUA). Os que trabalharíamos na área e muitos outros tiveram esse tipo de educação. O que víamos no cinema tornava-se
a realidade e os filmes viraram um estalo preparatório para a realidade em casa. Assim Johnny Weissmuller era mais real para mim do que o meu pai, e
Norma Shearer, mais do que minha mãe. E eu preferi o cinema. Eu ainda prefiro o cinema à vida.
Cheguei a Tóquio em 1947, como jornalista do
"Stars and Stripes". Mas é claro que,
sendo o cinema meu interesse principal na vida, eu queria saber mais sobre cinema japonês. Comecei a estudar filmes simplesmente porque estava no Japão e não sabia nada sobre filmes japoneses. No início era difícil:
não conhecia a língua e éramos impedidos de ir aos cinemas -era a ocupação militar (logo que cheguei, vi
avisos nos muros, como "proibido
fraternizar-se com o pessoal nativo",
o que significava que não podíamos
ter amigos japoneses). Mas é claro
que quebrávamos essa lei o tempo todo. Eu costumava esgueirar-me para
dentro dos cinemas.
E como foi essa primeira percepção?
Às vezes ajuda muito não saber a língua, pois, se você não conhece a língua do filme, você olha para outras
coisas: como os espaços são usados,
como o tempo é tratado e não se distrai com a história ou os diálogos. Não
sei sueco, por exemplo, e vi Bergman
pela primeira vez no Japão. Meu japonês era o.k., mas não lia tão rápido.
Aprendi imensamente sobre Bergman apenas olhando como ele movia
a câmera, usava o espaço e a luz.
Como um animal, observando a tela, me aproximei do cinema japonês.
Não aprendi a língua então (1947-49).
Fui à Universidade Columbia e me
formei. Percebi que queria passar minha vida no Japão. Voltei em 1953.
Em 54, "Os Sete Samurais", de Kurosawa, estreou. Eu não entendi algumas partes, mas pouco a pouco consegui mais. Assim me interessei pelo
cinema japonês -por meio do cinema no Japão.
Qual a contribuição principal do cinema japonês para o
mundo?
Meu primeiro grande livro, "O Cinema Japonês: Arte e Indústria" (59, com Joseph Anderson), trata disso. Se o cinema americano é definido em geral pela
ação e o cinema europeu é definido principalmente
por meio do estudo de personagem, então a contribuição japonesa é uma enorme, detalhada e inacreditável atenção à atmosfera, à relação entre a pessoa
e seu ambiente.
No cinema japonês é comum o personagem ser definido por seu meio. Coisas como enquadramentos
que insistem na relevância da atmosfera ou humor
na criação do personagem e da ação. É uma contribuição do Japão que muitos outros países aproveitaram. Michelangelo Antonioni é um exemplo maravilhoso disso. Entretanto isso não é um traço nacional. Eles ofereceram uma espécie de apresentação da
realidade, uma realidade parcial, uma realidade controlada. Então você toma o que tem e arranja, como
no jardim japonês, o movimento das coisas de modo
a criar a natureza. Os filmes são muito assim... Mesmo os novos diretores ainda procedem desse jeito.
Por que o sr. fala de seus filmes como sendo de "interesse
arqueológico"?
Meus filmes foram feitos nos anos 60; já se passaram
muitas noites desde então, eles são realmente velhos.
E o que você consegue ver é um modo de olhar a vida
que era muito corrente nos 60 e que está agora absolutamente morto. A sensibilidade desses filmes é algo que você não encontra mais. Você encontra em
quem me influenciou, o pessoal da vanguarda, como
Maya Deren e Kenneth Anger, ou em Richard Lester.
Você não vê isso nos filmes contemporâneos. Essa é
a razão pela qual digo que meus filmes são principalmente de interesse arqueológico.
E o sr. não dirigiu mais filmes?
O último que fiz foi "Cybele"... Depois fiz um filme
para televisão, sobre Kurosawa.
Por que o sr. parou de fazer filmes?
Uma razão é que o público desse tipo de filme desapareceu. Meus filmes eram muito populares junto à
juventude naquela época. Não tanto nos Estados
Unidos, onde eram considerados muito chocantes
para os americanos. No Japão eram muito liberadores e populares. Jovens diretores viam e gostavam.
Mas não há mais espaço para mostrá-los, pois usávamos pequenas salas de arte, clubes-butiques especializados em vanguarda, mas ninguém mais aparecia.
Outra razão é que eu mesmo financiei todos os filmes. Todos se recuperavam: Stan Brakhage, Maya
Deren faziam assim... porque eram baratos. "Cybele" custou cerca de 600 dólares, quase nada. Agora eu
não poderia produzir nada, eu não posso nem pagar
novas cópias desses filmes, tudo é tão caro no Japão... Entre esses dois motivos, é claro, eu mudei
também. O que quero dizer é que, se eu continuasse
a fazer filmes, eles seriam muito diferentes agora, eu
acho. Gente fantástica me abordou no Japão dizendo: "Oh, vamos fazer filmes", mas nunca pude encontrar um produtor que me deixasse livre. Querem
fazer ou editar de um jeito... Não quero nada disso.
Se eu quero fazer filmes, eu faço para mim mesmo,
não para um público qualquer. O vídeo veio para ser
usado por pessoas que pensam como eu. Eu sou um
amador, essa é a razão. Não sou um profissional.
Como o sr. vê a influência de seus filmes sobre Oshima,
perceptível em "O Império dos Sentidos"? Penso na questão do corpo ritual, da transgressão...
É verdade. O próprio Oshima é quem diz que eu o influenciei. Acho que um pouco do gosto pela violência... Talvez meus filmes tenham sido algo que o encorajou a continuar e ir adiante. Ele disse que eu consegui fazer e escapar impune, abrindo assim um tal
caminho para seu produtor não incomodá-lo. Ele
descobriu um modo de fazê-lo e criar obras-primas.
Seu novo filme, "Gohatto" (Tabu), é maravilhoso.
Ele já conversou com o sr. sobre isso?
Sim. E ele escreveu um ensaio, publicado no programa da cinemateca Sogetsu, em 1989. Influência mais
destacada vê-se no filme de Susumu Hani, que também escreveu sobre isso na mesma brochura. O cenário de "Cybele" é um lugar que usei em 67, e,
quando ele fez o filme "O Inferno do Primeiro
Amor" (68), foi direto para a mesma locação e fez algo parecido: sexo e violência... Isso sempre manteve
a alta abertura do mundo para o cinema experimental. Muitos diretores chamam-me de avatar, alguém
que introduziu esse mundo para outras pessoas, que
dizem ter se beneficiado disso... Hiroshi Teshigahara, Yoshishige Yoshida, Masahiro Shinoda... essa geração da "nouvelle vague" japonesa que se reconhece influenciada por mim.
Seus filmes japoneses têm relações com filmes americanos (Anger, Deren, Ken Jacobs). O sr. acha que eles formaram uma ponte?
Não se ouve muito falar do "underground" japonês,
mas nos anos 60 era bem ativo. Penso que sou um
dos que o apresentaram. Pude mostrar os filmes de
Kenneth Anger, ainda muito cedo, aos japoneses.
Maya Deren é uma grande influência no Japão e eu
fui o primeiro a exibi-la. Assim, acho que pode se dizer que sou a ponte entre o "underground" americano e o "underground" japonês.
E o texto que Mishima escreveu sobre seu filme?
Ele adorava a terceira das "Fábulas Filosóficas", o piquenique canibal da família. Mishima escreveu um
longo ensaio sobre isso: "Um Escândalo Verdadeiramente Elegante", publicado no livreto de programação do cine-teatro Sazoriza, em 1967 ("Escândalo
Elegante - Os Filmes de Donald Richie"). Ele apreciava demais a idéia transgressiva, mostrar a família japonesa em seu máximo ímpeto destrutivo.
Carlos Adriano é mestre em cinema pela USP e autor dos filmes "A
Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha" e "Remanescências".
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