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AUTORES
Desinteressada ou terapêutica, a definição de arte divide a história da filosofia
Para que serve a arte?
ALAIN DE BOTTON
especial para a Folha
Os filósofos frequentemente encararam a arte com um misto de
curiosidade e inveja. Ora, não são
os capítulos finais dos livros de filosofia que fazem as pessoas chorar (exceto os estudantes, que choram de alívio); escultores, músicos
e novelistas conseguem agradar o
nosso eu mais profundo de uma
maneira singular, impossível a
qualquer filósofo. As pessoas podem ter considerado Hegel e Hume inteligentes, mas era com
Byron e Keats que elas queriam
dormir.
Eis o que nos leva a questionar: o
que é arte e por que ela nos domina de modo tão avassalador? Um
dos mais sugestivos pensadores a
se debater com essas questões foi o
filósofo e dramaturgo alemão
Friedrich Schiller (1759-1805). Nas
suas "Cartas sobre a Educação Estética do Homem", Schiller reflete
sobre o sentido da arte. Começa
por distinguir dois lados da natureza humana: o primeiro, que ele
chama de estado sensível, se refere
a uma dimensão espontânea,
emocional, comum a crianças; a
segunda, designada como estado
de razão e frequente em filósofos,
implica uma perspectiva racional,
ordenada e lógica em relação ao
mundo.
Schiller argumenta que a composição psicológica dos seus contemporâneos é fragmentada, sendo-lhes difícil integrar os dois lados de sua natureza. É precisamente aqui que a arte entra em cena: Schiller pensa ser ela a melhor
maneira de fundir o lado natural,
sensível do homem com a sua dimensão racional. A arte poderia
educar as pessoas desprovidas de
um ou outro temperamento a se
tornarem indivíduos mais integrados. Nesse sentido, o pensador argumenta: "Só se transforma em
racional um homem sensível tornando-o primeiramente estético". E complementa: "Apenas a
percepção do belo faz do homem
algo inteiro, porque ela coloca em
harmonia ambos os lados da sua
natureza".
Schiller não foi o primeiro filósofo a polemizar a respeito das dimensões terapêuticas da arte. Em
sua "Poética", Aristóteles
(384-322 a.C.), investigando por
que as pessoas gostam de assistir a
peças trágicas, chega à noção de
catarse. Uma boa tragédia suscita
no público uma mistura de compaixão e temor quanto ao destino
do herói ou heroína. As pessoas
choram e se apavoram ao assistir
"Medéia". Ao mesmo tempo, no
entanto, a peça desencadeia a catarse ou purgação dessas emoções,
de forma que, ao término do espetáculo, o público se sente mais esclarecido e apto a lidar com a realidade que o envolve.
Aristóteles e Schiller influenciaram bastante o primeiro livro de
Nietzsche (1844-1900), "O Nascimento da Tragédia". Aqui o autor
argumenta que a antiga tragédia
grega nasceu de uma conjunção de
dois impulsos da natureza humana. O primeiro, o espírito dionisíaco, é um estado selvagem de
exaltação e embriaguez, enquanto
o segundo, o ordenado e frio espírito apolíneo, se expressa na arte
como beleza formal. O milagre da
arte reside no fato de manter juntos esses dois elementos, unificando ordem e embriaguez.
As perspectivas estéticas de
Nietzsche, Aristóteles e Schiller
são impressionantemente práticas: o que garante o valor à arte são
os seus efeitos benéficos sobre a
psicologia do público. Outros pensadores discordaram dessa concepção, particularmente Immanuel Kant (1724-1804), que, em
sua "Crítica da Faculdade de Julgar", rejeita a idéia de que a arte
tenha qualquer propósito prático.
O filósofo argumenta que nossa
abordagem sobre a arte deve sempre se esforçar para ser "desinteressada". O sentimento que nos
acomete na frente de uma obra de
arte, tal como uma pintura, por
exemplo, deve ser destituído de
quaisquer desejos físicos pelas
pessoas retratadas. Da mesma forma, não devemos nunca ler uma
novela identificando-nos com os
personagens ou esperando que as
nossas vidas possam se assemelhar
às deles.
Nietzsche lançou um olhar sarcástico sobre essa concepção "desinteressada" de arte desenvolvida por Kant: "Sem interesse!
Compare esta definição com outra, fornecida por um verdadeiro
artista -Stendhal-, que uma vez
chamou o belo de "promessa de
felicidade'. Quem está certo, Kant
ou Stendhal? Só cabe a nós rir dos
nossos estéticos que nunca se cansam de sustentar, em favor de
Kant, que sob o encanto da beleza
seja possível contemplar "sem interesse' até estátuas femininas
nuas". É lógico que Nietzsche
concordava integralmente com
Stendhal em que a arte e a beleza,
com efeito, exerceriam um papel
fundamental para a nossa felicidade.
Já que os filósofos tradicionalmente estiveram preocupados em
encontrar a verdade e afastar a ilusão, é natural que às vezes tenham
se questionado a respeito do valor
de verdade da arte. Apesar de tudo, muitas obras de arte são
"imaginárias", ou seja, não mantêm qualquer relação com eventos
fatuais. São meros produtos da
imaginação, de forma que não podem reivindicar muito o respeito
dos filósofos, concentrados que
estão na busca da verdade.
O mais famoso filósofo a desprezar a arte como mera ilusão foi
Platão (427-347 a.C.). Para ele, a
arte apenas imita o mundo, produzindo cópias de coisas que já
existem na realidade. Ele aludia a
um pintor grego chamado Zeuxis,
cujo talento de pintar uvas era tamanho que os pássaros frequentemente se aproximavam do quadro
para mordiscá-lo. Segundo Platão,
é possível que Zeuxis tivesse sido
um bom pintor, mas qual o sentido dessa tentativa de reproduzir
habilmente uvas numa tela se elas
já existem no mundo real?
Platão também atacava o impacto emocional da arte. Muitas obras
de arte derivam o seu prazer da representação de pessoas em estados
emocionais extremos. Peças de
teatro repletas de pessoas serenas
e sábias não são bons dramas
-não obstante, segundo Platão, o
bom drama não é aquele que é
bom para a alma, já que deixa o
público agitado e perturbado. Ele
argumentava que a fúria e o sofrimento de "Medéia" não atraem a
grande maioria de nós: a peça "estimula e fortalece um elemento
que ameaça minar a razão".
Geralmente o drama "fomenta
o crescimento de paixões que deveriam poder desaparecer". A
poesia dramática pode ser prazerosa, diz Platão, mas "precisamos
tirar uma lição da história do
amante que renuncia radicalmente a uma paixão que ele pensa não
lhe fazer bem". Já que "a poesia
dramática tem um poder descomunal de corromper até mesmo
homens de caráter elevado", Platão concebia que todos os bons cidadãos deveriam se abster de ler
inclusive Hesíodo e Homero.
Houve duas linhas principais de
respostas à crítica platônica da arte. A primeira foi alegar que a arte
não nos desvia da verdade, mas
que é meramente uma maneira de
nos fazer enxergar certas verdades
impossíveis de serem vistas por
meio da razão (argumentação de
Schiller). Entretanto, talvez tenha
sido Nietzsche o autor da mais interessante resposta ao ataque platônico. Em lugar de defender a arte com base no fundamento de
verdade desta, o pensador alemão
proclamava que o valor da arte reside precisamente no fato de que
ela não é verdade, de que é uma
ilusão.
Para Nietzsche, um mundo sem
arte é um lugar desesperado, e
uma visão de mundo honesta, esclarecida, só poderia nos conduzir
ao suicídio. Eis o porquê do seguinte aforismo: "A razão definitiva da nossa gratidão em relação à
arte: a honestidade traria consigo
desgosto e suicídio. Mas é-nos
possível evitar tais consequências
com a ajuda de um poder que contrabalança com a honestidade: a
arte". O artista transfigura o
mundo, dota-o de sentido e beleza, tornando-o assim passível de
ser vivido: "A arte aparece como
uma fada encantadora que redime
e cura. Ela transforma reflexões
horríveis sobre o terror e a absurdo da existência em representações com as quais os homens podem viver... A arte é essencialmente a afirmação, a bênção e a deificação da existência".
Vem daí a reflexão de Nietzsche,
inscrita certa vez ao acaso nas
margens de um caderno de notas:
"Essencialmente sou bem mais a
favor de artistas do que de qualquer filósofo que tenha aparecido
até agora". Felizmente para ele,
muitos artistas ratificaram esta
perspectiva -e pensamos que,
entre outros, Bernard Shaw, Kafka, Proust, Mann e D.H. Lawrence
assumiram Nietzsche como um de
seus pensadores favoritos.
Alain de Botton é escritor britânico de origem
suíça. É autor, entre outros, de "Ensaios de
Amor" e "O Movimento Romântico" (Rocco). Ele
escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de Fraya Frehse.
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