São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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CONEXÃO AMERICANA

"Gordon foi enviado para encorajar o golpe"

especial para a Folha

Charles Maechling Jr. foi diretor do Departamento de Estado para a Defesa Interna dos Estados Unidos e chefe do Grupo Especial de Contra-Insurreição, órgão de nível ministerial na administração do presidente norte-americano John Kennedy.
Com acesso livre à Casa Branca, Maechling era um dos consultores mais requisitados pela Presidência.
Durante o governo Kennedy (1961-1963) e Lyndon Johnson (1963-1969), Maechling e o governo norte-americano estavam com os olhos especialmente voltados para o Brasil, país considerado estratégico e de grande risco.
Maechling e Bob Kennedy, um anticomunista ferrenho, estavam juntos na criação da OPS, que treinou membros da polícia brasileira.
Segundo ele, o treinamento de policiais latino-americanos teve efeitos negativos: "Modernizou a polícia da América Latina e a tornou muito mais eficiente para servir a ditadores militares como nunca acontecera antes".
Na entrevista a seguir, feita por telefone do Canadá, onde passava férias, Maechling afirmou ainda que o embaixador Lincoln Gordon "foi enviado ao Brasil para encorajar o golpe".
(MARCELO RUBENS PAIVA)

Folha - Por que foi criado o programa de treinamento de policiais brasileiros patrocinado pela OPS?
Charles Maechling Jr. -
Estamos falando do tempo da Guerra Fria. A idéia era reviver o antigo programa de assistência do AID (ou Usaid, Agência para o Desenvolvimento Internacional), que teve efeito por um longo tempo. A idéia original, proposta por mim durante a administração Kennedy, e depois Johnson, era baseada na idéia de enviar policiais para outros países e criar conselheiros.
Folha - Quais países?
Maechling -
Todos. Não muito na Ásia, mas bastante na África e nos países latino-americanos. Queríamos ajudar no treinamento de policiais. Foi um programa muito grande. Bob Kennedy estava particularmente envolvido. Foi dele a idéia do programa. Mas foi um programa malsucedido, sem pessoas com conhecimento de outras línguas.
Folha - Quem eram os instrutores?
Maechling -
Você tem que entender que a polícia local dos Estados Unidos é descentralizada. Os chefes de polícia têm programas de aposentadoria precoce. Contrataram às pressas esses policiais e especialistas técnicos para ensinar controle de multidão, comando, operação de rádios, carros, equipamentos eletrônicos etc. no intento de profissionalizar as polícias.
Folha - Havia membros da CIA?
Maechling -
Foi um programa aberto. Deve ter havido alguns agentes da CIA conectados. O que a CIA fez ou estava qualificada a fazer, eu não sei. Sei que eles tinham treinamento de línguas.
Folha - Houve uma deturpação no papel desse programa?
Maechling -
O que sei é que o efeito do programa, especialmente na América do Sul e Central, o equipamento, os rádios e os veículos foram usados com propósitos políticos, como instrumento de repressão.
Folha - Qual o papel do Departamento de Estado norte-americano no movimento militar de 64?
Maechling -
No Brasil, tínhamos um embaixador lá, Lincoln Gordon, que estava bastante envolvido com o golpe militar que depôs o presidente João Goulart. Não sou exatamente da CIA, mas a CIA se reportava a nós. As coisas que sabemos vinham da CIA. Pode-se dizer que tínhamos os olhos vendados.
Folha - A Casa Branca esteve envolvida com o movimento militar de 64?
Maechling -
Claro que esteve. O golpe foi encorajado pelo nosso embaixador Gordon. Bob Kennedy, como procurador-geral, estava envolvido -assim como a maioria das pessoas- com a guerra nuclear, a China, os mísseis, e houve negligência quanto à América Latina. Nixon foi quem mais fez esforços para o envolvimento dos EUA em golpes e foi quem encorajou o golpe do Chile.
Folha - Temos o testemunho de um ex-agente do Dops que afirma ter recebido um curso da CIA, no Brasil, um mês antes do movimento militar. Isso era orientação da Casa Branca?
Maechling -
Eu não questiono isso. O governo americano estava envolvido, particularmente o embaixador Gordon. Normalmente, nossos embaixadores não se envolvem nesse tipo de atividade. Gordon foi escolhido por Lyndon Johnson por suas habilidades políticas, e não diplomáticas. Gordon sabe que a CIA estava no Brasil.
Folha - Qual era o envolvimento da OPS com a CIA?
Maechling -
A OPS não estava envolvida com a CIA. Era parte da AID. As pessoas que foram enviadas para a OPS tinham arquivos pessoais oficiais. Havia uma conexão com a CIA. O primeiro chefe da OPS, Byron Engle, foi da CIA. Havia muitos agentes no programa que foram da CIA. Mas a CIA tem seu próprio pessoal. Existia a parte secreta, claro que existia, mas não era tão grande.
Folha - Existia envolvimento da OPS com a tortura?
Maechling -
A polícia dos EUA não pode ensinar nada de tortura aos policiais da América Latina. Bob Kennedy inaugurou a academia de polícia e fez discursos. Eram cursos de seis semanas. Não havia nada, no currículo, quanto à tortura. Mas os efeitos dos cursos não foram bons.
Folha - Por quê?
Maechling -
Porque modernizou a polícia da América Latina e a tornou muito mais eficiente para servir a ditadores militares como nunca antes.
Folha - Don Mitrione (controvertido agente norte-americano morto em 1971 pelos Tupamaros, organização de esquerda do Uruguai, sob a acusação de ensinar métodos de tortura a policiais brasileiros e uruguaios) foi agente da OPS?
Maechling -
Não sei muito da fase brasileira de Mitrione. Sei das alegações contra ele no período em que esteve no Uruguai. Ele era parte das relações públicas da OPS. Mas não existem documentos sobre ele.



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