São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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CIDADANIA
Filósofa italiana conta como foi feita a nova declaração
Mulheres revêem direitos da humanidade

MARCOS NOBRE
especial para o Folha

O Brasil será o primeiro país no mundo a ouvir a "Declaração Universal dos Direitos Humanos". O texto do qual o Mais! publica um trecho em primeira mão será lido pela filósofa e feminista italiana Gabriella Bonacchi no seminário "Democracia Radical e a Questão dos Direitos", que acontece na Unicamp a partir de amanhã. A declaração é o resultado do trabalho de uma comissão constituída por iniciativa do Ministério para as Oportunidades Iguais da Itália e será proclamada em outubro, em Roma.
Cinquenta anos após a proclamação da "Declaração Universal dos Direitos do Homem" pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a "Declaração Universal dos Direitos Humanos" reforma e emenda o texto de 1948 no sentido de incorporar a ele o ponto de vista das mulheres e de atualizar -para além do simples "politicamente correto"- muitos dos princípios expressos na carta da ONU. As integrantes da comissão que redigiu o documento foram escolhidas de acordo com sua representatividade junto às várias correntes do movimento feminista italiano, o que significa também dizer que contou com a participação tanto de mulheres leigas quanto católicas.
Em entrevista exclusiva à Folha, a militante da esquerda italiana Gabriella Bonacchi relata sua experiência como participante da comissão e reflete sobre as semelhanças e diferenças da "nova declaração" diante do modelo clássico da "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" da Revolução Francesa, modelo seguido de perto pela declaração da ONU.
Para Bonacchi, atualizar o aspecto libertador do modelo clássico francês significa desmascarar o "aparente universalismo" (um universalismo "metafísico", diz a filósofa), um universalismo que é, na verdade, "o ponto de vista muito, muito concreto do macho ocidental adulto, branco e proprietário". A França revolucionária excluiu as mulheres do jogo: hoje, diz Bonacchi, as mulheres não querem mais ficar de fora, "e -diria Lênin- os homens não podem mais excluí-las".

Folha - No seminário "Democracia Radical e a Questão dos Direitos", a sra. foi encarregada de ler em primeira mão a "Declaração Universal dos Direitos Humanos", a ser proclamada em outubro próximo. Gostaria que contasse quais foram os critérios para a escolha das participantes e como se desenrolaram os trabalhos da comissão que redigiu o documento.
Gabriella Bonacchi -
O documento foi elaborado por uma "mesa das mulheres", constituída por iniciativa do Ministério para as Oportunidades Iguais italiano. Ele representa uma novidade absoluta na história do Parlamento italiano e foi criado por iniciativa do governo de centro-esquerda liderado por Romano Prodi, com o apoio das forças políticas da esquerda, leiga e católica. O ministério, na condição de entidade representativa do Estado italiano, está diretamente ligado às instituições semelhantes que existem na Europa. Mas, ao constituir tal ministério, o Estado italiano recuperou a desvantagem anterior em relação às mais antigas e mais sólidas democracias européias: postou-se na vanguarda em relação à França, Alemanha e Grã-Bretanha.
O ministério é liderado por uma mulher, Anna Finocchiaro, do DS (Democratas da Esquerda, ex-Partido Comunista Italiano e ex-Partido Democrático da Esquerda), que trabalha em estreita colaboração com a Comissão Nacional para as Oportunidades Iguais, liderada por uma mulher, Silvia Costa, do Partido Popular (ex-Democracia Cristã). Ministério e comissão escolheram as participantes da "mesa das mulheres" tendo como critério a sua representatividade em relação às principais formas de agremiação política feminina.
Folha - Um dos pontos que chamam a atenção é a participação de religiosas na elaboração do documento. Qual foi o papel desempenhado por elas nesse processo?
Bonacchi -
Pela resposta anterior fica bem evidente o caráter intencionalmente heterogêneo da "mesa", que representa as culturas leiga e católica presentes na Itália. A novidade consiste no fato de que as delegadas pré-selecionadas pelos órgãos governamentais (como o ministério e a comissão) contavam com uma experiência de trabalho comum desenvolvido, espontaneamente, nos anos do movimento feminista, quer como leigas, quer como católicas. Enfim, o governo tomou conhecimento oficial de uma realidade anteriormente construída a partir de baixo, ao invés de impô-la do alto, como quase sempre acontece.
Folha - Chama a atenção também o caráter italiano do evento, sendo importante destacar que a nova declaração coincide com uma nova fase da integração européia marcada pela introdução da moeda única, o euro. Em que sentido podemos falar de uma continuidade em relação ao modelo da "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" da Revolução Francesa? Como, a seu ver, o documento se relaciona com tentativas como, por exemplo, a da "Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã", de Olympe de Gouges, de 1791?
Bonacchi -
É verdade. A importância do documento consiste no seguinte: o governo italiano, que promoveu a iniciativa, é o governo de um país que está organicamente ligado à nova realidade supranacional européia, inaugurada com o surgimento da moeda européia, o euro. Mas também é verdade que a unidade econômica européia ainda não corresponde a uma unidade política. Eu penso que a cultura européia dos direitos, inaugurada pela Revolução Francesa, é uma pedra fundamental para o edifício político europeu, que -deixando de lado a retórica e a burocracia de Bruxelas- está entregue à capacidade dos intelectuais europeus de atualizarem aquela tradição.
As mulheres, então, representam um papel central, com uma diferença relevante: hoje não permitiremos que nos coloquem para fora do jogo, como aconteceu na época de Olympe de Gouges; as mulheres não querem mais e -como diria Lênin- os homens não podem mais.
Folha - As recentes transformações econômicas, sociais e políticas de amplitude planetária cristalizam antigas e novas desigualdades. Como militante de esquerda, como vê hoje a possibilidade da criação de novos mecanismos de inclusão social que levem em conta o ponto de vista das mulheres?
Bonacchi -
Esta é uma bela pergunta, belíssima. Naturalmente uma bela pergunta pressupõe uma resposta articulada, ou pelo menos longa. Com a necessidade de síntese de uma entrevista, vou me limitar a propor algumas palavras-chave para evocar os significados que a inclusão do ponto de vista das mulheres pode assumir para o enriquecimento geral dos mecanismos de inclusão social.
Para começar, pensemos no elemento de incontestável conhecimento das mulheres: a competência feminina para as relações, a começar pelas relações afetivas primárias da família e daquelas que vocês, no Brasil, com uma palavra belíssima, chamam de crianças. Esse saber está também na base daquele tecido conectivo entre seres humanos diferentes que os sociólogos chamam de interação e os antropólogos, de relação intercultural. As mulheres, desde sempre, sabem ser o tecido conectivo vivente entre seres humanos de idades e condições diferentes no interior do ambiente primário de todos os seres vivos, que é a família.
Folha - Além da exclusão social, política e econômica, há também o desafio de criar instituições políticas capazes de garantir que grupos culturais com orientações éticas diversas partilhem do mesmo espaço social, instituições capazes de impedir guerras étnico-religiosas e a discriminação social. Como fazer isso levando em conta o ponto de vista das mulheres?
Bonacchi -
Esta também é uma bela pergunta, para a qual também vale a dificuldade de responder de modo breve, que mencionei anteriormente. Sobre tal ponto se desdobrou o mais relevante debate dentro do feminismo contemporâneo. A questão assumiu o nome da relação entre igualdade e diferença, e justamente sobre estes dois pólos a mais recente cultura das mulheres disse as coisas mais novas e originais em relação ao clássico feminismo da emancipação. O núcleo central desta "novidade" consiste na crítica ao caráter "identitário", quer da igualdade, quer da diferença.
Por caráter "identitário" queremos significar algo que remonta à tradição metafísica da filosofia européia, para a qual uma coisa exclui a outra, pois brota de um mundo que se pressupõe, de uma vez por todas, descrito pela própria metafísica. Esta metafísica construiu um mundo fundado no ponto de vista de um sujeito único, considerado universal e acima das partes: igual a si próprio e diferente de todos os outros. Mas a crítica feminista desmascarou esse universalismo aparente e mostrou o caráter particular desse sujeito que se pretendia universal: o ponto de vista oculto por trás do ser abstrato da metafísica é, na realidade, o ponto de vista extremamente concreto do homem ocidental adulto, branco e proprietário.
Folha - A sua conferência no seminário da Unicamp tem por título "O Projeto Feminista e a Democracia". Que sentido de "democracia" serve à revitalização das energias utópicas do feminismo?
Bonacchi -
Creio que a resposta brote diretamente do que acabei de dizer. A nova utopia do feminismo contemporâneo consiste em "pôr no mundo" um mundo fundado numa interação entre viventes, nem iguais nem diferentes no sentido da velha metafísica européia. Que as mulheres sabem "pôr no mundo" é fato notório, há séculos; que o velho mundo da metafísica é coisa de homens e não de mulheres também é fato notório. Trata-se, então, de juntar duas coisas velhas para fazer nascer uma coisa nova: a capacidade feminina de "pôr no mundo" um mundo pós-metafísico.


Marcos Nobre é professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e autor de "A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno", que sai no mês que vem pela Ed. Iluminuras.
Tradução das respostas de Roberta Barni.


O Seminário
O seminário "Democracia Radical e a Questão dos Direitos" acontece de amanhã a quinta-feira no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (r. Cora Coralina, ciclo básico, Cidade Universitária, Campinas, SP). Participarão do evento, entre outros, os professores Giacomo Marramao, Gabriella Bonacchi, Steven Lukes e Gabriel Cohn. Informações pelo tel. 019/788-1601.



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