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CIDADANIA
Filósofa italiana conta como foi feita a nova declaração
Mulheres revêem direitos da humanidade
MARCOS NOBRE
especial para o Folha
O Brasil será o primeiro país no
mundo a ouvir a "Declaração
Universal dos Direitos Humanos". O texto do qual o Mais! publica um trecho em primeira mão
será lido pela filósofa e feminista
italiana Gabriella Bonacchi no seminário "Democracia Radical e a
Questão dos Direitos", que acontece na Unicamp a partir de amanhã. A declaração é o resultado do
trabalho de uma comissão constituída por iniciativa do Ministério
para as Oportunidades Iguais da
Itália e será proclamada em outubro, em Roma.
Cinquenta anos após a proclamação da "Declaração Universal
dos Direitos do Homem" pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a "Declaração Universal dos
Direitos Humanos" reforma e
emenda o texto de 1948 no sentido
de incorporar a ele o ponto de vista das mulheres e de atualizar
-para além do simples "politicamente correto"- muitos dos
princípios expressos na carta da
ONU. As integrantes da comissão
que redigiu o documento foram
escolhidas de acordo com sua representatividade junto às várias
correntes do movimento feminista italiano, o que significa também
dizer que contou com a participação tanto de mulheres leigas quanto católicas.
Em entrevista exclusiva à Folha,
a militante da esquerda italiana
Gabriella Bonacchi relata sua experiência como participante da
comissão e reflete sobre as semelhanças e diferenças da "nova declaração" diante do modelo clássico da "Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão" da Revolução Francesa, modelo seguido
de perto pela declaração da ONU.
Para Bonacchi, atualizar o aspecto libertador do modelo clássico francês significa desmascarar o
"aparente universalismo" (um
universalismo "metafísico", diz a
filósofa), um universalismo que é,
na verdade, "o ponto de vista
muito, muito concreto do macho
ocidental adulto, branco e proprietário". A França revolucionária excluiu as mulheres do jogo:
hoje, diz Bonacchi, as mulheres
não querem mais ficar de fora, "e
-diria Lênin- os homens não
podem mais excluí-las".
Folha - No seminário "Democracia Radical e a Questão dos Direitos", a sra. foi encarregada de ler
em primeira mão a "Declaração
Universal dos Direitos Humanos",
a ser proclamada em outubro próximo. Gostaria que contasse quais
foram os critérios para a escolha
das participantes e como se desenrolaram os trabalhos da comissão
que redigiu o documento.
Gabriella Bonacchi - O documento foi elaborado por uma
"mesa das mulheres", constituída por iniciativa do Ministério para as Oportunidades Iguais italiano. Ele representa uma novidade
absoluta na história do Parlamento italiano e foi criado por iniciativa do governo de centro-esquerda
liderado por Romano Prodi, com
o apoio das forças políticas da esquerda, leiga e católica. O ministério, na condição de entidade representativa do Estado italiano,
está diretamente ligado às instituições semelhantes que existem na
Europa. Mas, ao constituir tal ministério, o Estado italiano recuperou a desvantagem anterior em relação às mais antigas e mais sólidas
democracias européias: postou-se
na vanguarda em relação à França,
Alemanha e Grã-Bretanha.
O ministério é liderado por uma
mulher, Anna Finocchiaro, do DS
(Democratas da Esquerda, ex-Partido Comunista Italiano e ex-Partido Democrático da Esquerda),
que trabalha em estreita colaboração com a Comissão Nacional para
as Oportunidades Iguais, liderada
por uma mulher, Silvia Costa, do
Partido Popular (ex-Democracia
Cristã). Ministério e comissão escolheram as participantes da
"mesa das mulheres" tendo como critério a sua representatividade em relação às principais formas
de agremiação política feminina.
Folha - Um dos pontos que chamam a atenção é a participação de
religiosas na elaboração do documento. Qual foi o papel desempenhado por elas nesse processo?
Bonacchi - Pela resposta anterior fica bem evidente o caráter intencionalmente heterogêneo da
"mesa", que representa as culturas leiga e católica presentes na Itália. A novidade consiste no fato de
que as delegadas pré-selecionadas
pelos órgãos governamentais (como o ministério e a comissão)
contavam com uma experiência de
trabalho comum desenvolvido,
espontaneamente, nos anos do
movimento feminista, quer como
leigas, quer como católicas. Enfim,
o governo tomou conhecimento
oficial de uma realidade anteriormente construída a partir de baixo, ao invés de impô-la do alto, como quase sempre acontece.
Folha - Chama a atenção também o caráter italiano do evento,
sendo importante destacar que a
nova declaração coincide com uma
nova fase da integração européia
marcada pela introdução da moeda única, o euro. Em que sentido
podemos falar de uma continuidade em relação ao modelo da "Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão" da Revolução Francesa? Como, a seu ver, o documento
se relaciona com tentativas como,
por exemplo, a da "Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã",
de Olympe de Gouges, de 1791?
Bonacchi - É verdade. A importância do documento consiste no
seguinte: o governo italiano, que
promoveu a iniciativa, é o governo
de um país que está organicamente
ligado à nova realidade supranacional européia, inaugurada com
o surgimento da moeda européia,
o euro. Mas também é verdade que
a unidade econômica européia
ainda não corresponde a uma unidade política. Eu penso que a cultura européia dos direitos, inaugurada pela Revolução Francesa, é
uma pedra fundamental para o
edifício político europeu, que
-deixando de lado a retórica e a
burocracia de Bruxelas- está entregue à capacidade dos intelectuais europeus de atualizarem
aquela tradição.
As mulheres, então, representam um papel central, com uma
diferença relevante: hoje não permitiremos que nos coloquem para
fora do jogo, como aconteceu na
época de Olympe de Gouges; as
mulheres não querem mais e
-como diria Lênin- os homens
não podem mais.
Folha - As recentes transformações econômicas, sociais e políticas de amplitude planetária cristalizam antigas e novas desigualdades. Como militante de esquerda,
como vê hoje a possibilidade da
criação de novos mecanismos de
inclusão social que levem em conta o ponto de vista das mulheres?
Bonacchi - Esta é uma bela pergunta, belíssima. Naturalmente
uma bela pergunta pressupõe uma
resposta articulada, ou pelo menos
longa. Com a necessidade de síntese de uma entrevista, vou me limitar a propor algumas palavras-chave para evocar os significados que a inclusão do ponto de
vista das mulheres pode assumir
para o enriquecimento geral dos
mecanismos de inclusão social.
Para começar, pensemos no elemento de incontestável conhecimento das mulheres: a competência feminina para as relações, a começar pelas relações afetivas primárias da família e daquelas que
vocês, no Brasil, com uma palavra
belíssima, chamam de crianças.
Esse saber está também na base
daquele tecido conectivo entre seres humanos diferentes que os sociólogos chamam de interação e os
antropólogos, de relação intercultural. As mulheres, desde sempre,
sabem ser o tecido conectivo vivente entre seres humanos de idades e condições diferentes no interior do ambiente primário de todos os seres vivos, que é a família.
Folha - Além da exclusão social,
política e econômica, há também o
desafio de criar instituições políticas capazes de garantir que grupos culturais com orientações éticas diversas partilhem do mesmo
espaço social, instituições capazes
de impedir guerras étnico-religiosas e a discriminação social. Como
fazer isso levando em conta o ponto de vista das mulheres?
Bonacchi - Esta também é uma
bela pergunta, para a qual também
vale a dificuldade de responder de
modo breve, que mencionei anteriormente. Sobre tal ponto se desdobrou o mais relevante debate
dentro do feminismo contemporâneo. A questão assumiu o nome
da relação entre igualdade e diferença, e justamente sobre estes
dois pólos a mais recente cultura
das mulheres disse as coisas mais
novas e originais em relação ao
clássico feminismo da emancipação. O núcleo central desta "novidade" consiste na crítica ao caráter "identitário", quer da igualdade, quer da diferença.
Por caráter "identitário" queremos significar algo que remonta à
tradição metafísica da filosofia européia, para a qual uma coisa exclui a outra, pois brota de um
mundo que se pressupõe, de uma
vez por todas, descrito pela própria metafísica. Esta metafísica
construiu um mundo fundado no
ponto de vista de um sujeito único,
considerado universal e acima das
partes: igual a si próprio e diferente de todos os outros. Mas a crítica
feminista desmascarou esse universalismo aparente e mostrou o
caráter particular desse sujeito que
se pretendia universal: o ponto de
vista oculto por trás do ser abstrato da metafísica é, na realidade, o
ponto de vista extremamente concreto do homem ocidental adulto,
branco e proprietário.
Folha - A sua conferência no seminário da Unicamp tem por título
"O Projeto Feminista e a Democracia". Que sentido de "democracia"
serve à revitalização das energias
utópicas do feminismo?
Bonacchi - Creio que a resposta
brote diretamente do que acabei
de dizer. A nova utopia do feminismo contemporâneo consiste em
"pôr no mundo" um mundo fundado numa interação entre viventes, nem iguais nem diferentes no
sentido da velha metafísica européia. Que as mulheres sabem "pôr
no mundo" é fato notório, há séculos; que o velho mundo da metafísica é coisa de homens e não de
mulheres também é fato notório.
Trata-se, então, de juntar duas coisas velhas para fazer nascer uma
coisa nova: a capacidade feminina
de "pôr no mundo" um mundo
pós-metafísico.
Marcos Nobre é professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e autor de "A
Dialética Negativa de Theodor W. Adorno", que
sai no mês que vem pela Ed. Iluminuras.
Tradução das respostas de Roberta Barni.
O Seminário
O seminário "Democracia Radical e a Questão dos Direitos"
acontece de amanhã a quinta-feira
no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (r. Cora Coralina, ciclo básico, Cidade Universitária, Campinas, SP). Participarão do evento,
entre outros, os professores Giacomo Marramao, Gabriella Bonacchi, Steven Lukes e Gabriel
Cohn. Informações pelo tel.
019/788-1601.
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