São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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LIVROS
Reedição de "A Teus Pés" traz fotos inéditas, cartas e poesia de Ana Cristina Cesar
Uma mitologia particular

ANTONIO CARLOS SECCHIN
especial para a Folha

"A Teus Pés", de Ana Cristina Cesar, reaparece em cuidada produção. Lançada em 1982, a coletânea atinge agora o prodigioso patamar (para obra poética) de 11 edições, embora o fato não venha consignado em nenhuma parte do livro. Além da poesia e da prosa de Ana, o volume inclui extenso material iconográfico e um conciso e preciso prefácio de Armando Freitas Filho.
A receptividade aos textos de Ana Cristina Cesar parece oscilar brutalmente entre dois pólos. De um lado os detratores, que circunscrevem seu texto ao âmbito da "geração marginal" dos anos 70, grupo cujo prazo de validade poética já estaria há muito vencido. De outro, os apologistas de sua dicção crítica e a contrapé do literário, voz refinada em meio ao ingênuo balbucio semi-ágrafo de boa parte dos "marginais". E, clandestina ou explícita, uma questão permeia ambas as posições: a de um corpo, morto.
O suicídio de Ana Cristina, em 1983, se incrustou ambiguamente como remate (inesperado?) de uma obra ainda em curso, e a extinção de sua vida passou a produzir, de modo algo perverso, efeitos retroativos de leitura, que, falando do mesmo fenômeno -a morte-, dele extraem consequências opostas: ora se insinua que sua poesia só sobrevive acobertada pela aura mistificadora do suicídio, ora essa mesma poesia é cultuada como superior exemplo de texto que ultrapassa as contingências biográficas de seu criador.
Mais interessante, a meu ver, é tentar romper o cerco biográfico no ponto mesmo em que ele parece instalar-se com mais força: na ostensividade das cartas, das notas de diário e das agendas que povoam a escrita de "A Teus Pés". Ana trata de trair a biografia por dentro, no espaço propício à sua eclosão, por meio de um discurso que simula seguir os protocolos da confissão, mas, no mesmo passo, subtrai as marcas identificadoras de remetente e destinatário, promovendo uma espécie de palavra a esmo, sem alvo fixo, vazia de intenções comunicativas e plena de alusões que não se resgatam. Comentando uma epígrafe de sua própria autoria, a poeta se diz "mulher moderna desconhecida", tanto de si quanto de quem a lê; e eis-nos no âmago paradoxal de uma autobiografia literalmente alheia: narra-se um outro, em primeira pessoa.
Ao frustrar expectativas de sintonia comum e desmistificar certos padrões do literário (inclusive na evidente satisfação com que mescla registros linguísticos ditos poéticos a outros tidos como prosaicos), Ana Cristina delineia um universo de voz própria, mas não isento de armadilhas e impasses. Cabe indagar se essa literatura, invasiva quanto à convenção e evasiva quanto à comunicação, não corre o risco de normatizar o desvio. A aversão extremada à pompa do literário terminaria por também estatuir um código de convenções, criando, no limite, a "literatura" da não-literatura, e permanecendo, ainda que pelo avesso, aos pés da letra que supôs exorcizar. Negar o grandioso é insuficiente para impedir seu enviesado retorno por meio da monumentalização do mínimo.
Em seus "Inéditos e Dispersos", que sai em setembro, Ana Cristina anota: "As paisagens; cegá-las com palavras, rasurá-las". As palavras, portanto, não apontam, mas ocultam. Obstruem o acesso para o que está além delas; intransitivas, fluem -sem que isso implique a elaboração de um tecido maior e mais tramado para onde, de algum modo, elas possam convergir. Não se trata de fluxos verbais à maneira surrealista (embora, aqui e acolá, eles estejam presentes), mas de um texto pontuado estrategicamente pela elipse, entendida não como procedimento sintático (nesse particular, a frase de Ana é até conservadora), e sim como sonegação do referencial.
Percebe-se que algo falta; a partir daí, dá-se o não-dito pelo dito, e a poeta se compraz na volúpia da minúcia em torno de situações e objetos elididos ou apenas tangencialmente aludidos na cadeia verbal. O problema é que o texto passa a se compor numa espécie de mitologia privada ("me dei ao luxo de ser meio tipo hermética"), pouco permeável à prospecção de sentidos, de tal modo que a maioria dos críticos de Ana Cristina costuma dizer muito pouco acerca do que o universo da autora diz e dizer muito acerca dos processos de que ela se vale em seu dizer: e voltamos à paródia, ao coloquialismo, à mescla estilística...
Ora, os processos em si não são suficientes para avalizar o texto que, a partir deles, irá se constituir (a menos, é claro, que se opte por um delírio do significante, desvinculado de qualquer hipótese de representação). É possível que Ana Cristina Cesar, viva até os 31 anos, não tenha podido desdobrar com mais consequência e radicalidade os caminhos que intuía na desconstrução do "poético". Embora bastante lida (talvez mais "estudada" do que "lida"), sua poesia não tem herdeiros. Diversamente de muitos companheiros de geração, investiu (perdendo e ganhando) num projeto que recusava a lente realista para domesticar um poema. Afinal, conforme querem os primeiros versos de seu primeiro livro, "é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço".

A OBRA


A Teus Pés - Ana Cristina Cesar. Ed. Ática (r. Barão de Iguape, 110, CEP 01507-900, SP, tel. 011/278-9322). 152 págs. R$ 24,90.


Antonio Carlos Secchin é professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editor da revista "Poesia Sempre".



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