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LIVROS
Reedição de "A Teus Pés" traz fotos inéditas, cartas e poesia de Ana Cristina Cesar
Uma mitologia particular
ANTONIO CARLOS SECCHIN
especial para a Folha
"A Teus Pés", de Ana Cristina
Cesar, reaparece em cuidada produção. Lançada em 1982, a coletânea atinge agora o prodigioso patamar (para obra poética) de 11
edições, embora o fato não venha
consignado em nenhuma parte do
livro. Além da poesia e da prosa de
Ana, o volume inclui extenso material iconográfico e um conciso e
preciso prefácio de Armando Freitas Filho.
A receptividade aos textos de
Ana Cristina Cesar parece oscilar
brutalmente entre dois pólos. De
um lado os detratores, que circunscrevem seu texto ao âmbito
da "geração marginal" dos anos
70, grupo cujo prazo de validade
poética já estaria há muito vencido. De outro, os apologistas de sua
dicção crítica e a contrapé do literário, voz refinada em meio ao ingênuo balbucio semi-ágrafo de
boa parte dos "marginais". E,
clandestina ou explícita, uma
questão permeia ambas as posições: a de um corpo, morto.
O suicídio de Ana Cristina, em
1983, se incrustou ambiguamente
como remate (inesperado?) de
uma obra ainda em curso, e a extinção de sua vida passou a produzir, de modo algo perverso, efeitos
retroativos de leitura, que, falando
do mesmo fenômeno -a morte-, dele extraem consequências
opostas: ora se insinua que sua
poesia só sobrevive acobertada pela aura mistificadora do suicídio,
ora essa mesma poesia é cultuada
como superior exemplo de texto
que ultrapassa as contingências
biográficas de seu criador.
Mais interessante, a meu ver, é
tentar romper o cerco biográfico
no ponto mesmo em que ele parece instalar-se com mais força: na
ostensividade das cartas, das notas
de diário e das agendas que povoam a escrita de "A Teus Pés".
Ana trata de trair a biografia por
dentro, no espaço propício à sua
eclosão, por meio de um discurso
que simula seguir os protocolos da
confissão, mas, no mesmo passo,
subtrai as marcas identificadoras
de remetente e destinatário, promovendo uma espécie de palavra a
esmo, sem alvo fixo, vazia de intenções comunicativas e plena de
alusões que não se resgatam. Comentando uma epígrafe de sua
própria autoria, a poeta se diz
"mulher moderna desconhecida", tanto de si quanto de quem a
lê; e eis-nos no âmago paradoxal
de uma autobiografia literalmente
alheia: narra-se um outro, em primeira pessoa.
Ao frustrar expectativas de sintonia comum e desmistificar certos padrões do literário (inclusive
na evidente satisfação com que
mescla registros linguísticos ditos
poéticos a outros tidos como prosaicos), Ana Cristina delineia um
universo de voz própria, mas não
isento de armadilhas e impasses.
Cabe indagar se essa literatura, invasiva quanto à convenção e evasiva quanto à comunicação, não
corre o risco de normatizar o desvio. A aversão extremada à pompa
do literário terminaria por também estatuir um código de convenções, criando, no limite, a "literatura" da não-literatura, e permanecendo, ainda que pelo avesso, aos pés da letra que supôs
exorcizar. Negar o grandioso é insuficiente para impedir seu enviesado retorno por meio da monumentalização do mínimo.
Em seus "Inéditos e Dispersos", que sai em setembro, Ana
Cristina anota: "As paisagens; cegá-las com palavras, rasurá-las".
As palavras, portanto, não apontam, mas ocultam. Obstruem o
acesso para o que está além delas;
intransitivas, fluem -sem que isso implique a elaboração de um tecido maior e mais tramado para
onde, de algum modo, elas possam convergir. Não se trata de fluxos verbais à maneira surrealista
(embora, aqui e acolá, eles estejam
presentes), mas de um texto pontuado estrategicamente pela elipse, entendida não como procedimento sintático (nesse particular,
a frase de Ana é até conservadora),
e sim como sonegação do referencial.
Percebe-se que algo falta; a partir
daí, dá-se o não-dito pelo dito, e a
poeta se compraz na volúpia da
minúcia em torno de situações e
objetos elididos ou apenas tangencialmente aludidos na cadeia verbal. O problema é que o texto passa a se compor numa espécie de
mitologia privada ("me dei ao luxo de ser meio tipo hermética"),
pouco permeável à prospecção de
sentidos, de tal modo que a maioria dos críticos de Ana Cristina
costuma dizer muito pouco acerca
do que o universo da autora diz e
dizer muito acerca dos processos
de que ela se vale em seu dizer: e
voltamos à paródia, ao coloquialismo, à mescla estilística...
Ora, os processos em si não são
suficientes para avalizar o texto
que, a partir deles, irá se constituir
(a menos, é claro, que se opte por
um delírio do significante, desvinculado de qualquer hipótese de representação). É possível que Ana
Cristina Cesar, viva até os 31 anos,
não tenha podido desdobrar com
mais consequência e radicalidade
os caminhos que intuía na desconstrução do "poético". Embora bastante lida (talvez mais "estudada" do que "lida"), sua poesia não tem herdeiros. Diversamente de muitos companheiros de
geração, investiu (perdendo e ganhando) num projeto que recusava a lente realista para domesticar
um poema. Afinal, conforme querem os primeiros versos de seu
primeiro livro, "é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço".
A OBRA
A Teus Pés - Ana Cristina Cesar. Ed. Ática (r. Barão de Iguape,
110, CEP 01507-900, SP, tel.
011/278-9322). 152 págs. R$
24,90.
Antonio Carlos Secchin é professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e editor da revista "Poesia Sempre".
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