|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O caminho da simplicidade
JOÃO MOURA JR.
especial para a Folha
"Fôlego" é o terceiro livro de
poemas da antropóloga e professora da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Janice Caiafa, e o segundo
publicado pela Editora Sette Letras, que vem fazendo um trabalho notável na divulgação de poetas jovens e de outros não tão jovens. O primeiro, "Noite de Ela
no Céu", saiu em edição da autora e, como costuma acontecer em
tais casos, é -se a experiência
deste resenhista vale alguma coisa-, embora recente, impossível
de achar nas livrarias. Seja como
for, o título mais atrapalha do que
ajuda e felizmente nem sempre
um mau título é sinal de um mau
livro. Basta pensar em "Liturgia
da Matéria", título da primeira
reunião de poemas de Paulo Henriques Britto, uma das melhores
coisas produzidas na lírica brasileira de um tempo para cá.
Se comparado ao outro livro de
Janice Caiafa publicado pela Sette
Letras, "Neve Rubra", este "Fôlego" apresenta uma discreta evolução. A edição de "Neve Rubra"
da Sette Letras é de 1996, mas o
"copyright" da autora, de 1992,
faz supor que esta também tenha
custeado uma edição anterior. Se
assim for, mais de cinco anos separam os poemas enfeixados em
"Fôlego" dos de "Neve Rubra".
Tempo suficiente para uma evolução, mesmo que discreta.
Tal evolução parece se dar na direção de uma simplicidade maior,
visível até no formato e na capa do
novo livro. "Fôlego" é praticamente um livro de bolso, e a capa
de Vladimir Freire, com o nome
da autora e o título grafados a mão
e tendo no centro uma linha espiralada em forma de caracol, faz
lembrar a simpática despretensão
das publicações da chamada poesia marginal dos anos 70.
No livro novo nota-se a ausência
dos estrangeirismos que pipocavam meio gratuitamente aqui e ali
em "Neve Rubra" ("virgo dangerosa", "nuages de nada", "tecido voletante"). Uma certa poesia brasileira abusou de tal modo
de neologismos que se ater ao léxico dicionarizado pode ser uma
virtude.
Não há nada tampouco em "Fôlego" que se compare à pretensão
de "Palimpsextos", de "Neve
Rubra", único poema dos dois livros que não é em versos livres.
Numa longa nota a autora define
"Palimpsextos" como uma
"sextina irregular" em que "as
estrofes do poema reponham
sempre a anterior de alguma forma". A primeira delas já dá a dimensão do que vem adiante: "Da
aljava setas repicam com pontas/
aguçadas. Num lance sagaz três/
delas no ar feriram alguém longe./
Oh setas amorosas, voltai prestes/
à origem! Rubro cravo fundo pêlo/
marcai de amor esse lanceiro insano!". Em casos assim o pedestal
costuma ser maior que a estátua.
"Fôlego" aborda os mais diversos temas, e mesmo as quatro partes em que se divide não são absolutamente estanques. Ao menos
para este leitor há poemas que poderiam perfeitamente migrar de
uma para outra. "Fôrça Indômita", que abre o volume, é uma
poética, ou seja, um poema sobre
a poesia. O seguinte, "País", tematiza essa espécie de guerra civil
não-declarada entre ricos e pobres
que parecemos viver.
Na segunda parte, "Primeiro
Teclado" explora associações paronomásticas a partir de um exercício para o aprendizado de datilografia, o sintagma "fada faça sala", enquanto "Espécie" é um libelo contra a extinção da fauna
brasileira. "Amor aos Gatos" e
"Nome de Gato", da terceira, retomam uma tradição de loas poéticas ao bichano que inclui Keats,
Baudelaire e T.S. Eliot, a cujo
"The Naming of Cats" o título do
segundo desses poemas parece referir-se.
A quarta e última parte de "Fôlego", "Variações em Lugares",
contém poemas sobre cidades e
regiões do país e do exterior e sobre fenômenos naturais (um
eclipse solar, uma aurora boreal).
Talvez aí estejam os mais bem realizados do volume, como este
"Extremo Oriente": "A Paraíba
é uma musa/ inda muito rapariga/
de espetado e ralo pêlo/ que derrama seu cabelo/ pro este do continente/ aflita do próprio segredo/
de produzir o oriente/ no seu extremo mais perfeito/ pontiagudos
contornos, cabos/ pontas de santos, seixas/ ah, derrama, ninfa/
tuas madeixas/ e faz o Brasil deste
lado".
Infelizmente, nem sempre a autora atinge a mesma concisão e intensidade, caindo às vezes no meramente discursivo e em imagens
gastas, como nesta outra poética:
"O poema é escrito numa espada/
na superfície fria e prata/ de uma
espada. É uma coisa/ tal a arma/
que o porta/ é uma arma/ tal o gesto que o cria/ e o solta/ para servir
a quem empunha/ a quem lê no
saque/ a quem ergue/ a letra na leitura/ a quem lança a palavra/ ao ar
ao tirar a espada./ O poema luta
armada". Não é difícil ver nessa
espécie de descascamento de uma
mesma imagem em camadas sucessivas uma afinidade com certo
procedimento cabralino. Só que
aqui estamos a anos-luz de distância do rigor e da surpresa do poeta
de "O Cão sem Plumas". Tal como aconteceu de "Neve Rubra"
para "Fôlego", é de esperar que o
próximo livro de Janice Caiafa se
mostre mais bem resolvido.
A OBRA
Fôlego - Janice Caiafa. Ed.
Sette Letras (r. Maria Angélica,
171, loja 102, CEP 22470-200, RJ,
tel. 021/537-2414). 76 págs. R$
15,00.
João Moura Jr. é poeta, autor de "Páginas
Amarelas" (Duas Cidades).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|