São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O caminho da simplicidade

JOÃO MOURA JR.
especial para a Folha

"Fôlego" é o terceiro livro de poemas da antropóloga e professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Janice Caiafa, e o segundo publicado pela Editora Sette Letras, que vem fazendo um trabalho notável na divulgação de poetas jovens e de outros não tão jovens. O primeiro, "Noite de Ela no Céu", saiu em edição da autora e, como costuma acontecer em tais casos, é -se a experiência deste resenhista vale alguma coisa-, embora recente, impossível de achar nas livrarias. Seja como for, o título mais atrapalha do que ajuda e felizmente nem sempre um mau título é sinal de um mau livro. Basta pensar em "Liturgia da Matéria", título da primeira reunião de poemas de Paulo Henriques Britto, uma das melhores coisas produzidas na lírica brasileira de um tempo para cá.
Se comparado ao outro livro de Janice Caiafa publicado pela Sette Letras, "Neve Rubra", este "Fôlego" apresenta uma discreta evolução. A edição de "Neve Rubra" da Sette Letras é de 1996, mas o "copyright" da autora, de 1992, faz supor que esta também tenha custeado uma edição anterior. Se assim for, mais de cinco anos separam os poemas enfeixados em "Fôlego" dos de "Neve Rubra". Tempo suficiente para uma evolução, mesmo que discreta.
Tal evolução parece se dar na direção de uma simplicidade maior, visível até no formato e na capa do novo livro. "Fôlego" é praticamente um livro de bolso, e a capa de Vladimir Freire, com o nome da autora e o título grafados a mão e tendo no centro uma linha espiralada em forma de caracol, faz lembrar a simpática despretensão das publicações da chamada poesia marginal dos anos 70.
No livro novo nota-se a ausência dos estrangeirismos que pipocavam meio gratuitamente aqui e ali em "Neve Rubra" ("virgo dangerosa", "nuages de nada", "tecido voletante"). Uma certa poesia brasileira abusou de tal modo de neologismos que se ater ao léxico dicionarizado pode ser uma virtude.
Não há nada tampouco em "Fôlego" que se compare à pretensão de "Palimpsextos", de "Neve Rubra", único poema dos dois livros que não é em versos livres. Numa longa nota a autora define "Palimpsextos" como uma "sextina irregular" em que "as estrofes do poema reponham sempre a anterior de alguma forma". A primeira delas já dá a dimensão do que vem adiante: "Da aljava setas repicam com pontas/ aguçadas. Num lance sagaz três/ delas no ar feriram alguém longe./ Oh setas amorosas, voltai prestes/ à origem! Rubro cravo fundo pêlo/ marcai de amor esse lanceiro insano!". Em casos assim o pedestal costuma ser maior que a estátua.
"Fôlego" aborda os mais diversos temas, e mesmo as quatro partes em que se divide não são absolutamente estanques. Ao menos para este leitor há poemas que poderiam perfeitamente migrar de uma para outra. "Fôrça Indômita", que abre o volume, é uma poética, ou seja, um poema sobre a poesia. O seguinte, "País", tematiza essa espécie de guerra civil não-declarada entre ricos e pobres que parecemos viver.
Na segunda parte, "Primeiro Teclado" explora associações paronomásticas a partir de um exercício para o aprendizado de datilografia, o sintagma "fada faça sala", enquanto "Espécie" é um libelo contra a extinção da fauna brasileira. "Amor aos Gatos" e "Nome de Gato", da terceira, retomam uma tradição de loas poéticas ao bichano que inclui Keats, Baudelaire e T.S. Eliot, a cujo "The Naming of Cats" o título do segundo desses poemas parece referir-se.
A quarta e última parte de "Fôlego", "Variações em Lugares", contém poemas sobre cidades e regiões do país e do exterior e sobre fenômenos naturais (um eclipse solar, uma aurora boreal). Talvez aí estejam os mais bem realizados do volume, como este "Extremo Oriente": "A Paraíba é uma musa/ inda muito rapariga/ de espetado e ralo pêlo/ que derrama seu cabelo/ pro este do continente/ aflita do próprio segredo/ de produzir o oriente/ no seu extremo mais perfeito/ pontiagudos contornos, cabos/ pontas de santos, seixas/ ah, derrama, ninfa/ tuas madeixas/ e faz o Brasil deste lado".
Infelizmente, nem sempre a autora atinge a mesma concisão e intensidade, caindo às vezes no meramente discursivo e em imagens gastas, como nesta outra poética: "O poema é escrito numa espada/ na superfície fria e prata/ de uma espada. É uma coisa/ tal a arma/ que o porta/ é uma arma/ tal o gesto que o cria/ e o solta/ para servir a quem empunha/ a quem lê no saque/ a quem ergue/ a letra na leitura/ a quem lança a palavra/ ao ar ao tirar a espada./ O poema luta armada". Não é difícil ver nessa espécie de descascamento de uma mesma imagem em camadas sucessivas uma afinidade com certo procedimento cabralino. Só que aqui estamos a anos-luz de distância do rigor e da surpresa do poeta de "O Cão sem Plumas". Tal como aconteceu de "Neve Rubra" para "Fôlego", é de esperar que o próximo livro de Janice Caiafa se mostre mais bem resolvido.

A OBRA


Fôlego - Janice Caiafa. Ed. Sette Letras (r. Maria Angélica, 171, loja 102, CEP 22470-200, RJ, tel. 021/537-2414). 76 págs. R$ 15,00.


João Moura Jr. é poeta, autor de "Páginas Amarelas" (Duas Cidades).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.