São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001

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+ o trabalho de luto

O cálculo da dor

Para a escritora, ataque não teve nada de covarde e reforça a distância do público dos EUA de um reconhecimento adequado da atuação do país

por Susan Sontag

Para esta americana, nova-iorquina, triste e horrorizada, a América nunca pareceu mais distante de um reconhecimento da realidade do que diante da monstruosa dose de realidade do último dia 11. A desconexão entre o que aconteceu e o modo como poderia ser compreendido, além do falatório hipócrita e as francas ilusões sendo vendidas por virtualmente todas as nossas figuras públicas e analistas da TV, é surpreendente, deprimente. As vozes autorizadas a acompanhar o evento pareciam ter se unido em uma campanha para infantilizar o público.
Onde está o reconhecimento de que isso não foi um ataque "covarde" contra "a civilização" ou "a liberdade" ou "a humanidade" ou "o mundo livre", mas um ataque contra os Estados Unidos, a autoproclamada única superpotência mundial, ataque que foi praticado em consequência de certos interesses e ações norte-americanos? Quantos cidadãos norte-americanos têm consciência do corrente bombardeio do Iraque por parte dos EUA? E, se for para usar a palavra "covarde", ela poderia ser aplicada de maneira mais adequada aos que matam fora do alcance de retaliação, das alturas do céu, do que àqueles que se dispõem a morrer eles mesmos para matar outros. Em termos de coragem (uma virtude moralmente neutra), pode-se dizer qualquer coisa sobre os que perpetraram o massacre, mas eles não eram covardes.

Espírito ileso Os líderes dos Estados Unidos se inclinam a nos convencer de que tudo está bem. Os EUA não têm medo. Nosso espírito está ileso. "Eles" serão caçados e punidos (sejam quem forem "eles"). Temos um presidente-robô que nos garante que a América se ergue incólume. Um amplo espectro de figuras públicas que se opõem fortemente às políticas praticadas no exterior por essa administração parece se sentir à vontade para dizer apenas que está unido, apoiando o presidente Bush. Foi-nos informado que tudo está, ou vai ficar, bem, embora aquele seja um dia que viverá na infâmia e os EUA estejam agora em guerra. Mas tudo não está bem. E isso não foi Pearl Harbor. É preciso pensar muito, e talvez isso esteja sendo feito em Washington e em outros lugares, sobre o fracasso colossal da inteligência e da contra-inteligência americanas, sobre as opções disponíveis à política externa norte-americana, especialmente no Oriente Médio, e sobre o que constitui um programa sensato de defesa militar para este país. Mas aqueles que ocupam cargos públicos, aqueles que aspiram a cargos públicos, aqueles que alguma vez ocuparam cargos públicos -com a cumplicidade voluntária da grande mídia- decidiram que não se deve pedir ao público que suporte o ônus da realidade. Os clichês de um congresso do Partido Soviético, autocongratulatório e aplaudido unanimemente, nos pareciam desprezíveis. A unanimidade da retórica cheia de santimônia e ocultadora da realidade despejada pelas autoridades americanas e por analistas da mídia nos últimos dias é indigna de uma democracia madura.

Retalhos de consciência histórica Os líderes e os que desejam ser líderes dos EUA nos permitiram saber que consideram seus deveres públicos uma tarefa manipuladora: reforço da confiança e gerenciamento da dor. A política própria de uma democracia -que abrange divergência, que promove a imparcialidade- foi substituída pela psicoterapia. Sim, vamos todos lamentar juntos. Mas não sejamos idiotas juntos. Alguns retalhos de consciência histórica poderiam nos ajudar a compreender o que acaba de acontecer e o que pode continuar a acontecer. "Nosso país é forte", nos dizem incessantemente. Para mim, isso não é totalmente consolador. Quem duvida de que os Estados Unidos sejam fortes? Mas não é só isso o que eles têm de ser.


Susan Sontag é ensaísta e escritora americana, autora de "Na América" (Companhia das Letras) e "Contra a Interpretação" (L&PM), entre outros.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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