|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ o trabalho de luto
Notas de uma guerra nada particular
O ensaísta, há pouco naturalizado americano, descreve a tardia descoberta de um novo estado de ânimo apenas dois dias após o atentado
por Hans Ulrich Gumbrecht
A sensação de estar sob o choque de um acontecimento na atualidade recente do mesmo dia, a sensação de que o mundo jamais será o que foi
no passado, essa sensação tanto pode ser ilusória, acreditamos saber nós, estudiosos da história,
quanto muitas vezes pode estar certa. Não há aí nenhum privilégio especial em terminar como dono da
razão com pesados prognósticos histórico-filosóficos
como, de modo inverso, também não deveria ser vergonha nenhuma se equivocar em tais prognósticos em um
dia a mais ou a menos. Olhar assim retrospectivamente,
de um futuro que ainda está por irromper para um momento presente que ainda dura, não passa de um mecanismo de reflexo a um doloroso presente que carregamos conosco. Muito mais difícil é concentrar-se no presente e para o presente.
Mas há hoje, pouco depois do abrupto fim de uma
manhã cotidiana da qual ainda não nos refizemos, há
hoje um momento presente americano, por assim dizer? O efeito de choque no bucólico campus de minha
universidade, 40 km ao sul de San Francisco, é diferente
do choque causado em Buenos Aires, Frankfurt, Riga
ou Tóquio? A única coisa certa é que o momento presente californiano nos últimos dois dias não tem sido o
de Washington e muito menos o de Nova York.
Para começar, não pelas três horas de diferença no fuso horário dentro dos Estados Unidos, pois morrer (ou
ver morrer) em casa antes do café da manhã, fico imaginando, e (ver) morrer no serviço depois do café da manhã já não são a mesma coisa. Devo então sobriamente
encerrar por aqui e admitir que o choque na Califórnia
foi afinal simplesmente o mesmo choque na Europa, na
América do Sul ou na Ásia, como tantos e-mails nos
vêm relatando nestes dias? Não é num excesso de
honras e atenção que eu estou recebendo manifestações
de condolências e solidariedade e até mesmo telefonemas em que me perguntam se estou bem de saúde? Não
estarei fazendo umas cenas de ator diletante se aceitar
agradecido e responder a essas perguntas?
Em meu bucólico campus está havendo algo que só
por piedade ecológica (ou também pela lembrança dos
respectivos filmes da Disney) não chamamos de "praga
do esquilo". Dois dias depois do 11 de setembro de 2001,
eu me perguntava se não deveríamos envenenar (antes
por razões estéticas que religiosas) os bichinhos graciosos que o tempo todo nos atrapalham correndo à nossa
frente, num dia como este, em que a bandeira nacional
balança ao vento a meio pau com imponente patos.
Catástrofe por vir Mas reagimos nós, reagiu a universidade por acaso de maneira diferente da natureza,
que não toma conhecimento das catástrofes da humanidade? Nossos superiores na universidade haviam
mandado avisar, já na manhã da terça-feira, que caberia
a cada departamento decidir se dispensaria suas secretárias e seus professores. Os estudantes, em todo caso,
só virão dentro de duas semanas, para o início do trimestre. Só que é bem surpreendente que aqui no norte
da Califórnia, onde ademais se acumulam tantos pontos no jogo do politicamente correto, quando se faz tanta tempestade em copo d'água, que aqui desta vez quase
ninguém vá para casa. Continuamos trabalhando, como espera de nós o presidente, meio atônito na Casa
Branca (pelo menos foi o que ele disse sem muita ênfase) e, se nos encontramos nesse trabalho, conversamos
sobre as imagens que acompanhamos pela televisão.
No momento o campus vive uma atmosfera discretamente dominical, pois também aos domingos muitas
pessoas vêm trabalhar aqui, não sem terem passado antes pela igreja. Dois dias depois da catástrofe instalou-se
sobre a paisagem um ar solene, algo como um estado de
ânimo de saída da igreja, e talvez o que crie essa perspectiva de domingo seja o fato de que no momento estejamos um tanto irritados, prestando atenção nos graciosos e incômodos esquilos.
Todos nos perguntamos, da mesma maneira que há
exatos 12 anos, depois do último grande terremoto em
nossa região, se tínhamos alguma idéia da catástrofe
que estava por acontecer. Minha secretária diz que seu
filho teria tido um sono agitado (seu melhor amigo,
meu próprio filho, há 12 anos era um bebê e começou a
chorar por entre as prateleiras de um supermercado um
minuto antes do terremoto, disso eu sou testemunha).
Também minha mulher acordou de fato uma hora
mais cedo que de costume. Vamos então lidar com esse
crime, o mais perfeitamente calculado de todos, como a
catástrofe natural de um terremoto? Como minha mulher havia acordado muito cedo e como em qualquer
outro dia havia programado o rádio-relógio para despertá-la depois, lá estávamos nós, segundos depois,
sentados diante da tevê, quando uma primeira torre do
World Trade Center era atingida. Nisso, praticamente
fazemos parte de uma minoria vergonhosamente orgulhosa de seu status de testemunhas oculares.
Se o segundo ataque da insânia pôde ser visto ao vivo,
nós o perdemos. Mas acho que percebi ao vivo como a
primeira torre ruía, num sublime movimento duplo de
avalanche, ao mesmo tempo acelerando-se para baixo e
liberando uma nuvem a avolumar-se lentamente para o
alto. Enquanto esse movimento acontecia e as lágrimas
me vinham aos olhos (quero confessar: nos 18 meses
desde que tenho passaporte americano, elas me vêm
aos olhos de vez em quando sob os acordes do hino nacional), enquanto uma das torres do World Trade Center ruía e meus olhos se molhavam, os comentaristas na
televisão seguiam especulando, incrédulos e perplexos,
por mais 30 segundos, se a arquitetura das torres conseguiria se manter.
Antes do segundo ataque certeiro e antes das lágrimas
com as quais eu pela primeira vez em meus 54 anos vivenciava uma catástrofe como catástrofe nacional, eu
teria, aliás, apostado que aquilo seria afinal a realização
bem-sucedida do sonho do website que há algum tempo fora idealizado por aqueles psicopatas adolescentes
da escola Columbine, no Colorado. Também eles queriam capturar um avião e de um modo um tanto nostálgico para pôr abaixo o Empire State. Só que desta vez os
ataques seguiam o maquinismo de um cérebro de mestre, real, e não carregado da virtualidade dos videogames e efeitos especiais que já se dispersam no prédio da
escola secundária.
Quando cheguei a meu escritório no 11 de setembro,
soprava um pouco do arzinho costumeiro das autoacusações liberais no brando, "mellow", meio social do
campus. Que tal coisa não teria acontecido nos tempos
de Clinton, que aquilo seria uma punição pela nossa política brutal de poderio mundial; que finalmente deveríamos reagir àquilo com uma ativa política de paz, e a
isso se juntava o convite a uma "vigília pela paz", na
White Plaza, centro do campus.
Naquela manhã eu finalmente (também isso, de uma
vez por todas) me senti determinado a não ir para uma
vigília pela paz e por pouco não cheguei a dizê-lo bem
alto, tão completamente que desaparecia minha velha
consciência pesada de plantão. Naquela manhã eu sentia saudades de um Churchill ou Roosevelt, como os
que me haviam apresentado nos livros de história.
E como nós não temos um presidente mais forte do
que esse, que de algum modo afinal foi eleito, eu me alegrava de que o Air Force One, seu avião, que pelo visto
fora destinado como "bunker" móvel ao pobre George
W. por um lobby poderoso, pelo menos estava cercado
dos caças americanos, símbolos de potência. De fato,
símbolos de potência, notei um tanto surpreso, era o
que eu queria ver nessa manhã, e o duríssimo sintagma
"taking out the perpetrators" ("derrubando os culpados") se tornou uma fórmula que agora pronuncio e faz
me sentir bem. Se ao menos ela soasse mais convincente
na boca do presidente...
Talvez eu tenha sido o único a espantar-se com meus
sentimentos patrióticos (sentimentos que eu o tempo
todo ainda devo me proibir de chamar, num reflexo de
auto-ironia, de "estado febril"). Pois este país, do qual
eu tanto me orgulho em seu momento de maior fraqueza, nunca deu à minha família a menor chance de permanecer na condição de distantes estrangeiros, desde
que chegamos aqui e para sempre. "Getting ready for
war" ("Preparando-se para a guerra") era a manchete
de hoje no principal do jornal diário de San Francisco, e
ela me deixou um pouco mais tranquilo, assim como
em 1991, na Guerra do Golfo, as estrelas e listras a princípio me haviam surpreendido e depois me tranquilizavam cada vez mais.
Mas desta vez faz apenas dois dias que os aviões transformados em bombas fizeram tremer o chão de meu
país a 5.000 km de distância daqui, de todo modo o chão
do país do qual eu quis e me tornei cidadão, e está fora
de cogitação, seria inimaginável, uma reação de alegria
secreta de minha parte a esses acontecimentos. Tudo isso existe, portanto, de verdade: as lágrimas de humilhação, o orgulho e aparentemente até a responsabilidade
pelo solo deste próprio país no qual eu nem nasci.
Mas mesmo o primeiro-ministro do país em que nasci e cresci sob ocupação americana, sem imaginar que
aqueles soldados amigáveis e um tanto exóticos eram
nossos ocupantes, mesmo aquele distante primeiro-ministro, que até agora chamara minha atenção mais
pelo padrão Armani e pelo seu amor de euroturista pelo
vinho tinto do Mediterrâneo do que pelo talento político ou mesmo pelos insights históricos, mesmo Gerhard
Schroeder me entusiasmou, quando ele lembrou o berlinense John F. Kennedy e os soldados americanos que
libertaram a Alemanha do poder nazista.
Sentimentos demais, talvez, para dois dias, mas com
certeza não são estados febris, pois persistem contra todos os esforços intelectuais obrigatórios de finalmente
repensar as coisas com distanciamento e sobriedade.
Independentemente, portanto, de o 11 de setembro tornar-se no futuro um limiar para os livros de história,
agora posso imaginar que estou transformado para
sempre. Transformado por ao mesmo tempo sentir
uma insegurança elementar, um esfacelamento do solo
sob meus pés, de efeito tão forte como o terremoto de
1989, e uma agressiva determinação para a vingança,
uma determinação tal que deixa aquela de 1991, da
Guerra do Golfo, no máximo como uma metáfora.
Cheiro inesquecível Todos aqueles que ontem davam notícias de Manhattan, onde se podem sentir as
consequências da catástrofe de modo imediato, e não
somente patriótico, falavam de um cheiro que ninguém
mais será capaz de esquecer. Qual é o cheiro de algo que
se sabe que nunca mais desaparecerá da memória?
Cheiro de material de construção após explosão, dizem
os repórteres, cheiro do amianto que todos os americanos tanto temem, e nenhum deles diz que o medo que
têm é de aspirar o cheiro de dezenas de milhares de corpos queimados, do qual eles nunca mais esquecerão.
Desta vez a contagem dos mortos não vem acompanhada daquela mania inconfessa de colecionar recordes, que sempre esteve ligada a altas cifras e portanto à
possibilidade de, com elas, convencer-se de ter participado de um grande momento histórico. Desta vez, sinto
que meus compatriotas estão com medo de um número
que se incumbirá de nos dizer que o 11 de setembro de
2001 foi pior que o pior dia da Guerra do Vietnã ou o
pior dia da Guerra Civil. Tememos e nos envergonhamos da quantificação das próprias fraquezas, embora
esteja pairando no ar a certeza de que esse foi de fato o
pior dia de todos os piores da história americana. Pior
do que Pearl Harbor, do que o cúmulo da humilhação
militar, que já era um ato de humilhação dentro dos limites classicamente estabelecidos desde a Antiguidade.
Desde que sabemos que o 11 de setembro foi pior do
que Pearl Harbor, temos medo das dimensões da catástrofe. Não sei mais se devemos manter o fim de semana
em Manhattan que vínhamos planejando para outubro,
pois de repente passamos a entender que até agora as
pessoas queriam estar em Manhattan para sentir a
energia ilimitada e indomável do império americano.
Quanto à questão, no entanto, de estarmos obrigados a
nos expor agora à infâmia e à vergonha do império, essa
é uma experiência inédita para nós.
Tudo se deu rápido demais. A descoberta do patriotismo e da vergonha nacional como seu preço mas também o suceder dos acontecimentos, em cascata. Talvez
a guerra que desejo -como eu teria reagido se me profetizassem três dias atrás que eu escreveria uma frase assim um dia?-, talvez a guerra que desejo já tenha começado, quando eu ressurgir, hoje à noite, saindo do
escritório sem janelas na biblioteca do campus, onde
agora escrevo. Talvez eu possa, mesmo, amanhã, 14 de
setembro, voar para o Brasil, como estava programado
para o último dia 12. E como me sentirei em um avião
da United Airlines?
Naturalmente, sei que um dos próximos dias haverá
de ser, objetivamente, o dia mais seguro da história da
aviação comercial. Mas jantar (sem facas, leia-se) 30 mil
pés acima do chão será mesmo algo novo, uma sensação nova, porque essas quatro bombas atingiram tanto
nosso orgulho próprio nacional quanto o existencial.
Essas bombas nos acertaram e não só nos afetaram,
fazendo-nos vítimas, porque não são dias para declarações enfáticas de solidariedade. Pois a que se deveria ser
solidário, sem parecer ridículo com as óbvias declarações enfáticas? Poder-se-ia ser solidário à condenação
desses insanos, mas dizer só isso e nada mais é quase
uma ofensa aos mortos. Essas bombas acertaram nosso
país, tememos num descuido aspirar o cheiro de nossos
mortos queimados, e espero que ninguém tenha a paciência de negociar com os que estão ávidos em transformar-se eles próprios em tais bombas.
Conhecer sentimentos de patriotismo, sentimentos
de vergonha nacional e a esperança de uma vingança
violenta em apenas dois dias, no rápido transcorrer do
acontecimento objetivo, por assim dizer, tudo isso me
subjugou, me deixou orgulhoso e desperta agora, do
distanciamento intelectual que exercitei durante décadas, um certo medo de minhas fortes novas reações.
Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA), autor de, entre outros, "Modernização dos Sentidos" (ed. 34).
Tradução de Marcelo Rondinelli.
Texto Anterior: Trecho Próximo Texto: Susan Sontag: O cálculo da dor Índice
|