São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001

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+ o trabalho de luto

O recuo do islamismo político

Enfraquecimento das alianças, nos países árabes, entre as burguesias nacionais e as massas deserdadas das cidades abriu caminho para a via terrorista por Alain Touraine

O ataque colossal e imprevisto a Nova York e Washington nos causa dois sentimentos opostos, mas entre os quais é preciso escolher. O primeiro, mais sociológico, lembra as consequências dos 10 ou 20 anos de hegemonia americana no mundo, o crescimento das desigualdades sociais, as intervenções estrangeiras em alguns países. Sabemos do ódio que persegue os Estados Unidos, não somente em Nablus ou em Gaza mas em diversas partes do mundo. Podemos então comparar os atentados suicidas contra o World Trade Center e os que ocorrem todos os dias na Palestina.
Poder-se-ia falar em um ato terrorista culminante após uma longa série de ataques de ambos os lados. Ninguém irá relacionar os movimentos de ação contra a globalização com esses atentados em massa, mas podemos lembrar a simultaneidade de um movimento que protesta principalmente no interior do mundo "global" e atos terroristas de grande envergadura que lhe visam do exterior.
No entanto tal reação, cuja intensidade podemos compreender nas circunstâncias presentes, repousa numa interpretação gravemente errônea da situação atual. Em primeiro lugar não se trata de atos terroristas, e sim de atos de guerra, como demonstra a escolha dos alvos atingidos, sobretudo se, como se afirma, o avião que despencou contra o Pentágono na realidade se destinava à Casa Branca. Nada torna impossível a repetição desses ataques, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país. Quando não há mais limite ao confronto, é bem de guerra que se trata.
Como chegamos a esse ponto? Minha interpretação é que o recuo do islamismo político nos últimos anos, movimento que se centrava na tomada do poder nos próprios países muçulmanos, criou um vazio. A aliança entre as novas "burguesias nacionais" e as massas deserdadas das cidades parecia capaz de provocar em toda parte movimentos nacional-revolucionários ao mesmo tempo burgueses e populares, como o do Irã, que levou Mossadeq ao poder. Esse islamismo político se enfraqueceu ou mesmo se rompeu porque as burguesias nacionais acabaram descobrindo que seu interesse era inserir-se na economia globalizada, e não ser colocadas à margem dela.

Guerra religiosa Essa decomposição ocorreu às vezes em benefício de regimes moderados, como o de Hosni Mubarak, no Egito; mas essa decomposição deixou fora do processo grupos radicais, sejam aqueles baseados em fortes convicções religiosas, sejam aqueles sustentados mais fortemente por um meio próximo. É portanto a queda do islamismo político o que provocou a formação de um islamismo guerreiro. Nada demonstra que este possa ser identificado com um Estado, e é muito possível que seja organizado em redes, como as empresas mais modernas. Por outro lado, é difícil imaginar que tal movimento não seja apoiado ou ao menos tolerado por um ou vários Estados, que assim assumem riscos consideráveis para seu próprio futuro.
Essa guerra tem objetivos que vão além do político; trata-se de uma guerra religiosa, como prova o número elevado de crentes dispostos a sacrificar a vida.
Que consequências concretas essa definição da atual situação pode acarretar?
Essas consequências são imensas. Falar em guerra, e não mais em terrorismo, leva os que foram atacados a identificar seu inimigo e a destruí-lo. Ainda mais concretamente, uma situação de guerra anuncia operações militares que podem assumir formas diferentes do que aquelas da Guerra do Golfo, podendo ir ainda mais longe, até a destruição de um regime ou de um grupo político. Tais operações só podem ser acionadas lentamente, principalmente pelo fato de que os EUA parecem dispor de poucas informações sobre quem os ataca.
Formar-se-ão novos campos, e veremos o mundo dividir-se em dois, como se o mundo árabe-muçulmano fosse se unir numa ofensiva geral contra o resto do mundo, que ele definiria como o campo dos infiéis? Essa hipótese é muito pouco verossímil, e os que a apoiassem correriam o risco de cometer graves erros.
Iasser Arafat se disse chocado e doou seu sangue para as vítimas de Nova York, pois percebe que a situação assim criada pode tornar impossível qualquer defesa dos interesses palestinos. Estes correm o sério risco de ser as primeiras vítimas do estado de guerra, embora alguns tenham se rejubilado publicamente.
A situação parece mesmo tão perigosa que é urgente encontrar uma solução pacífica para o problema palestino, isto é, criar dois Estados em que um não seja humilhado pelo outro e cujas relações sejam definidas sob controle internacional. Se o problema palestino estivesse em via de solução, os países da região e até a Síria não teriam nenhum motivo para apoiar uma empreitada político-religiosa que pode ter um custo extremamente elevado para o Ocidente, mas que provocaria a destruição duradoura de todos os seus esforços para criar regimes muçulmanos mais moderados.
O khomeinismo extremo produziu o movimento dos "bassidjis", jovens voluntários que morriam na guerra contra o Irã, porque sua fé extrema não encontrava mais uma expressão política aceitável para eles. Da mesma forma, os que hoje agem como guerreiros num mundo muçulmano, que em seu conjunto está muito distante dessa radicalização, correm o risco de semear a morte em seu próprio campo.
Nenhuma interpretação sociohistórica pode levar à justificativa de atos que só podem disseminar a desgraça e a morte, entre os que são atacados e também sobre aqueles em nome dos quais se acredita falar.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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