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+ o trabalho de luto
O recuo do islamismo político
Enfraquecimento das alianças, nos países árabes, entre as burguesias nacionais e as massas deserdadas das cidades abriu caminho para a via terrorista
por Alain Touraine
O ataque colossal e imprevisto a Nova York e
Washington nos causa dois sentimentos
opostos, mas entre os quais é preciso escolher.
O primeiro, mais sociológico, lembra as
consequências dos 10 ou 20 anos de hegemonia americana no mundo, o crescimento das desigualdades sociais, as intervenções estrangeiras em alguns países. Sabemos do ódio que persegue os Estados Unidos, não somente em Nablus ou em Gaza mas em diversas partes
do mundo. Podemos então comparar os atentados suicidas contra o World Trade Center e os que ocorrem todos os dias na Palestina.
Poder-se-ia falar em um ato terrorista culminante
após uma longa série de ataques de ambos os lados.
Ninguém irá relacionar os movimentos de ação contra
a globalização com esses atentados em massa, mas podemos lembrar a simultaneidade de um movimento
que protesta principalmente no interior do mundo
"global" e atos terroristas de grande envergadura que
lhe visam do exterior.
No entanto tal reação, cuja intensidade podemos
compreender nas circunstâncias presentes, repousa numa interpretação gravemente errônea da situação atual.
Em primeiro lugar não se trata de atos terroristas, e sim
de atos de guerra, como demonstra a escolha dos alvos
atingidos, sobretudo se, como se afirma, o avião que
despencou contra o Pentágono na realidade se destinava à Casa Branca. Nada torna impossível a repetição
desses ataques, nos Estados Unidos ou em qualquer outro país. Quando não há mais limite ao confronto, é
bem de guerra que se trata.
Como chegamos a esse ponto? Minha interpretação é
que o recuo do islamismo político nos últimos anos,
movimento que se centrava na tomada do poder nos
próprios países muçulmanos, criou um vazio. A aliança
entre as novas "burguesias nacionais" e as massas deserdadas das cidades parecia capaz de provocar em toda parte movimentos nacional-revolucionários ao mesmo tempo burgueses e populares, como o do Irã, que levou Mossadeq ao poder. Esse islamismo político se enfraqueceu ou mesmo se rompeu porque as burguesias
nacionais acabaram descobrindo que seu interesse era
inserir-se na economia globalizada, e não ser colocadas
à margem dela.
Guerra religiosa Essa decomposição ocorreu às
vezes em benefício de regimes moderados, como o de
Hosni Mubarak, no Egito; mas essa decomposição deixou fora do processo grupos radicais, sejam aqueles baseados em fortes convicções religiosas, sejam aqueles
sustentados mais fortemente por um meio próximo. É
portanto a queda do islamismo político o que provocou
a formação de um islamismo guerreiro. Nada demonstra que este possa ser identificado com um Estado, e é
muito possível que seja organizado em redes, como as
empresas mais modernas. Por outro lado, é difícil imaginar que tal movimento não seja apoiado ou ao menos
tolerado por um ou vários Estados, que assim assumem
riscos consideráveis para seu próprio futuro.
Essa guerra tem objetivos que vão além do político;
trata-se de uma guerra religiosa, como prova o número
elevado de crentes dispostos a sacrificar a vida.
Que consequências concretas essa definição da atual
situação pode acarretar?
Essas consequências são imensas. Falar em guerra, e
não mais em terrorismo, leva os que foram atacados a
identificar seu inimigo e a destruí-lo. Ainda mais concretamente, uma situação de guerra anuncia operações
militares que podem assumir formas diferentes do que
aquelas da Guerra do Golfo, podendo ir ainda mais longe, até a destruição de um regime ou de um grupo político. Tais operações só podem ser acionadas lentamente, principalmente pelo fato de que os EUA parecem
dispor de poucas informações sobre quem os ataca.
Formar-se-ão novos campos, e veremos o mundo dividir-se em dois, como se o mundo árabe-muçulmano
fosse se unir numa ofensiva geral contra o resto do
mundo, que ele definiria como o campo dos infiéis? Essa hipótese é muito pouco verossímil, e os que a apoiassem correriam o risco de cometer graves erros.
Iasser Arafat se disse chocado e doou seu sangue para
as vítimas de Nova York, pois percebe que a situação assim criada pode tornar impossível qualquer defesa dos
interesses palestinos. Estes correm o sério risco de ser as
primeiras vítimas do estado de guerra, embora alguns
tenham se rejubilado publicamente.
A situação parece mesmo tão perigosa que é urgente
encontrar uma solução pacífica para o problema palestino, isto é, criar dois Estados em que um não seja humilhado pelo outro e cujas relações sejam definidas sob
controle internacional. Se o problema palestino estivesse em via de solução, os países da região e até a Síria não
teriam nenhum motivo para apoiar uma empreitada
político-religiosa que pode ter um custo extremamente
elevado para o Ocidente, mas que provocaria a destruição duradoura de todos os seus esforços para criar regimes muçulmanos mais moderados.
O khomeinismo extremo produziu o movimento dos
"bassidjis", jovens voluntários que morriam na guerra
contra o Irã, porque sua fé extrema não encontrava
mais uma expressão política aceitável para eles. Da
mesma forma, os que hoje agem como guerreiros num
mundo muçulmano, que em seu conjunto está muito
distante dessa radicalização, correm o risco de semear a
morte em seu próprio campo.
Nenhuma interpretação sociohistórica pode levar à
justificativa de atos que só podem disseminar a desgraça e a morte, entre os que são atacados e também sobre
aqueles em nome dos quais se acredita falar.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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