São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001

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Uma tragédia silenciosa

"O Legado de Eszter", do húngaro Sándor Márai, é a história simples de um século complicado

Maurício Santana Dias
da Redação

A trama de "O Legado de Eszter", romance do escritor húngaro Sándor Márai (1900-1989), é muito simples e, à primeira vista, quase banal: após 20 anos, Eszter recebe a notícia de que o seu grande amor, Lajos, que fora casado com a sua irmã, lhe fará uma visita. Tudo gira em torno desse reencontro, adiado por um intervalo que dura justamente o tempo que Penélope esperou por Ulisses.
Para quem lê Márai pela primeira vez, sua literatura pode dar a sensação de déjà vu, mais ou menos a mesma impressão causada por tantos epígonos do pós-romantismo que, na primeira metade do século 20, narraram com elegância as pequenas decepções de uma burguesia civilizada e cansada de si mesma -num ambiente em que as pessoas falavam baixo e eram bastante polidas. Mas não é nada disso. Sob a aparente normalidade das relações sociais e familiares, os livros de Márai sempre trazem algo de estranho. Diante deles o leitor é a princípio induzido a fazer uma interpretação mediana dos acontecimentos narrados, até que, após sucessivas reviravoltas, se vê dentro de uma zona de sombra, onde seu mundo é inteiramente posto do avesso.

Escritor redescoberto Mesmo tendo sido um dos grandes escritores do século passado, autor de mais de 50 livros de poesia, teatro, ensaio e da autobiografia "Confissões de um Burguês" (1935), considerada sua obra-prima, Márai só começou a ficar conhecido recentemente, quando passou a ser traduzido em todo o mundo. Por ironia ou especulação editorial, o romancista só foi "redescoberto" depois de ter se matado, aos 89 anos, em San Diego (EUA), para onde emigrara nos anos 50, quando seus livros estavam proscritos pelo regime comunista da Hungria.
Considerado um dos principais escritores de seu país na década de 30, Márai era mais apreciado pelo virtuosismo de sua escrita do que por sua capacidade de invenção: a crítica não se cansava de elogiar o "estilo elegante", as "frases antológicas", o "sentido de proporção". Mas isso era só a casca de suas criações, todo o resto a história se encarregou de jogar debaixo do tapete.
Em 1938, ano em que Márai escreveu "O Legado de Eszter", a Europa já havia armado o cenário para a Segunda Guerra. A Áustria tinha sido anexada pela Alemanha precisamente naquele ano, e a Hungria estava à deriva entre dois mundos. Após o esfacelamento do Império Austro-Húngaro ao final da Primeira Guerra, tentou-se construir no país, em 1919, A República Soviética da Hungria, da qual o filósofo marxista Georg Lukács foi por poucos meses comissário do povo para a Educação. Fracassada a tentativa de revolução, a Hungria entraria anos mais tarde na zona de influência do nazismo, que em 1933 chegou ao poder na Alemanha.
Esse território convulsionado pela Grande Guerra, pela queda do império, por revoluções frustradas e regimes totalitários é o espaço da ficção de Márai. "Via apenas trevas ao meu redor: atrás de nós, a guerra e a revolução, diante de nós, o caos político e econômico, o tempo suspeito da reavaliação dos valores, a moda dos slogans", escreveu nas suas "confissões". Mas em "O Legado de Eszter" não há nem uma referência sequer a esse contexto conturbado, obviamente não porque o autor o ignorasse ou achasse melhor isolar sua ficção do "lixo da história", mas por preferir incorporá-lo de modo oblíquo.
Assim o livro é apenas mais uma história de amor, igualmente frustrada, entre uma mulher que por anos se habituou a esperar, num sofrimento confortável, um canalha cheio de carisma. Ou, se se quiser reduzir mais um pouco as coisas, entre um bando de masoquistas -Eszter, seu irmão Laci etc.- e o sádico Lajos.

Humanidade torta O que desconcerta e causa mais espanto nesta novela é a impotência de todos os personagens diante desse histrião evidentemente fraudulento, mas nem por isso menos irresistível. Todos sabem desde o início que ele irá cometer uma ação abominável, mas ninguém faz nada para detê-lo. De fato, quem é Lajos, esse senhor que retorna depois de séculos de ausência para usurpar o que tinha restado de uma casa já saqueada e desguarnecida? Numa leitura menos literal do enredo, poderia ser o próprio Hitler ou o mal que ele encarna. Mas não se trata de uma alegoria mal disfarçada, cujo segundo plano estivesse sempre à vista, mostrando sua cara a cada página.
Os personagens de Márai são sobretudo indivíduos convincentes, figuras complexas, capazes de amar e de cometer simultaneamente os atos mais torpes. Juntos eles formam a imagem de uma humanidade torta, que já perdeu toda a inocência -se é que algum dia houve alguma. Eszter, com o seu fatalismo cego e resignado, e Lajos, com a sua capacidade de sedução e a sua infâmia, são personagens de que não se esquece.
Esses elementos misturados fazem do romance um grande livro. Aliás, talvez nem se deva falar de romance, já que a narrativa se estrutura rigorosamente como uma tragédia, segundo as definições de Aristóteles. A história se passa em 24 horas, no espaço restrito de uma casa, e a ação se concentra em quatro ou cinco personagens. Até o nome dos protagonistas deriva de duas estirpes trágicas: Lajos é também Laio, o pai de Édipo (o "j" se lê como "i"); e Eszter é a rainha do Antigo Testamento que salva os judeus de um primeiro Holocausto. Porém, ao contrário do que ocorre nas tragédias clássicas, aqui os atores não morrem nem se matam no quinto ato -embora, encerrada a peça, todos saiam de cena igualmente destruídos.
Durante cerca de 50 anos, que correspondem mais ou menos ao período da Guerra Fria, Sándor Márai ficou numa espécie de limbo, visto como um autor decadente pela crítica marxiana e como um tradicionalista pelos adoradores da vanguarda, que proclamavam a impossibilidade de escrever romances depois do "Ulisses" de Joyce. Só agora o inferno que suas obras encenam, silenciosamente instalado na intimidade do lar, começa a ser percebido. E talvez não por acaso.
Resta esperar que mais livros seus, além deste e do excepcional "As Brasas" (Companhia das Letras, 1999), continuem sendo editados no Brasil.


O Legado de Eszter
172 págs., R$ 19,00
de Sándor Márai. Tradução de Paulo Schiller. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/ 3846-0801).



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