São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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Ponto de fuga

Educação sentimental

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Na semana passada, esta coluna se referia a dois westerns: "Flechas Ardentes", de Delmer Daves, e "A Última Fronteira", de William Wyler. Ambos supõem que o pacto é o bom regulador de conflitos coletivos. Mas assinalam também que nenhum contrato se impõe por si só. Ele precisa, para que suas regras sejam respeitadas, de um aprendizado concreto. A letra se torna vida quando é ponderada e realista e, mais do que isso, quando passa pela experiência da história, muitas vezes dolorosa e traumatizante.
Maurice Agulhon é o grande estudioso desses sentimentos vividos por grupos humanos, sentimentos que revestem de carne, sangue, pulsações, entusiasmos e ódios o esqueleto das normas e dos conceitos. Um de seus livros, publicados já há tempos no Brasil, "1848 - O Aprendizado da República" (Paz e Terra), conta de que maneira a república, uma noção política abstrata, insere-se, por sobressaltos, na história francesa. Sua "absorção" progressiva, graças à modificação dos "sentimentos" que inspirou, teve um papel crucial. República não se afirma como uma definição, um conceito ou uma fórmula. Pode ser uma deusa, um objeto de desejo ou de ódio, uma palavra de ordem, uma ameaça tremenda, um espantalho, uma sereia. Diz Agulhon: (Marx) "parece ter pensado que (...) a república, sistema de relações políticas impessoais, seria, por isso mesmo, transparente nas relações de classe. (...) Isso não ocorreu, por muitas razões; uma talvez seja que a República era menos secamente abstrata do que parecia. "Mistificadora" ou não, ela não trazia a morte dos idealismos políticos, mas um idealismo a mais".

Sem lugar
Agulhon, em vários textos, mostra o sincretismo entre as aspirações pela república e pela liberdade. Ele foi tecido durante todo o século 19. Constata também que, cíclicas como as estações, como o tempo das cerejas maduras e vermelhas, ambas retornam, incansáveis, porque, a cada vez, foram "traídas".
O republicanismo mais radical lembra os versos de Vicente de Carvalho sobre a felicidade: está onde a pomos e nunca a pomos onde nós estamos. Nas revoluções de 1789, 1830, 1848, 1871, muitos supõem que a república não consegue se impor porque "não era a boa", porque foi adulterada em seus princípios, porque os líderes a sacrificaram em nome dos próprios interesses. A "boa" república, como a "boa" revolução, estará sempre por vir. Isso sugere o pressuposto de que elas se situam para além dos homens, num admirável futuro inalcançável, já que o presente confere à idéia, ao conceito, uma insuportável concretude.
Essa tradição que investe no deslocamento incessante do regime perfeito caracteriza muitos pensamentos de esquerda. Ela levou tanto a convicções heróicas e firmes, mas literalmente suicidas, quanto a argúcias de todo tipo, que oscilam entre a boa fé e o oportunismo. Estar sempre mais "à esquerda" pode significar o conforto de uma visada ou de uma crença, que evita enfrentar o aqui e o agora. As ilusões não se desfazem porque não são reconhecidas. É uma acomodação do espírito disfarçada em revolta. Dessa perspectiva, lucidez só pode ser uma conquista progressiva e parcial.

Clássico
A revista francesa "Le Nouvel Observateur" selecionou o romance "Nove Noites" (Cia. das Letras), de Bernardo Carvalho, para sua rubrica "ovações", sob o título: "Carvalho, bravo!". Comenta com entusiasmo e conclui: "É a versão romanesca dos "Tristes Trópicos" contemporâneos".

Dureza
Estar no mundo em desconforto; perceber que os fios de compreensão estão envolvidos por nebulosas incertas; não abdicar da pouca clareza (ou da paranóia) que cabe a cada um; não se desobrigar de si aderindo a um partido, a uma crença; não se conformar com qualquer explicação do mundo, incluindo as próprias; ser avesso às certezas e aos rancores: os personagens de Bernardo Carvalho mostram o esforço que faz a consciência para sobreviver asperamente. São radicais inconformistas, não por escolha, mas por saberem que não há caminho seguro. É uma clarividência embaçada e sem paz.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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