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O INDIVÍDUO NO NO FIO DA NAVALHA
O ECONOMISTA EDUARDO GIANNETTI, QUE LANÇA "O VALOR DO AMANHÃ" NESTA SEMANA, DIZ QUE AS REGULAMENTAÇÕES IMPOSTAS PELO ESTADO SÃO EXIGÊNCIAS DOS PRÓPRIOS CIDADÃOS, QUE MUITAS VEZES PREFEREM SER CERCEADOS EM SUA LIBERDADE
DA REDAÇÃO
Não há panacéia para definir os limites entre a liberdade individual e as restrições de comportamento
impostas pelo Estado. A opinião é
do economista e cientista social
Eduardo Giannetti, para quem o
grande desafio é encontrar o que os
economistas chamam de "trade off"
-o ponto de equilíbrio entre o que
as pessoas estão dispostas a permitir
que o Estado decida por elas e a liberdade de atuação que este deseja
ter no contato com o restante da sociedade.
Giannetti, que é professor da faculdade Ibmec (SP), lança no dia 27 seu
novo livro, "O Valor do Amanhã"
(Cia. das Letras, 328 págs., R$ 44),
em que apresenta a idéia de "juros"
como "uma tensão permanente entre presente e futuro numa troca intertemporal. A realidade dos juros,
ao contrário do que as pessoas imaginam, está presente na vida prática
nas mais diferentes situações, desde
dietas, exercícios físicos, uso de drogas, criação artística, finanças. A
comparação entre valores presentes
e futuros são os juros", afirma.
Autor também de livros como "Vícios Privados, Benefícios Públicos" e
"Auto-Engano" (todos pela Cia. das
Letras), Giannetti afirma, na entrevista abaixo, ser contra a expressão
"Estado-babá", que vê como paternalista. Ele explica que em tempos
de calamidade, as pessoas se tornam
mais abertas a aceitar limites externos, caso isso garanta sua segurança.
Para ele, muitas vezes a atuação do
Estado é apenas reflexo daquilo que
desejam os indivíduos. "Em muitas
situações da vida prática as pessoas
preferem não ter opção".
(Daniel Buarque)
Folha - Como se pode descrever o
"Estado-babá"?
Eduardo Giannetti - Eu confesso,
primeiramente, que não gosto dessa
expressão. Ela infantiliza a sociedade. O termo tradicionalmente usado
nesse caso é "paternalismo", em que
o Estado age em relação à sociedade,
aos indivíduos, como se fosse um
pai, e eles, as crianças.
Muitas vezes, a preservação da liberdade requer um cerceamento de
aspectos dessa liberdade. O que precisamos chegar a um acordo é sobre
quais são as restrições adequadas
para que possamos exercer nossa liberdade, todos ao mesmo tempo, da
forma mais criativa e promotora da
realização humana. A questão é:
quais são as regras do jogo para que
todos possamos realizar nosso plano
de vida com o máximo de liberdade?
A fronteira disso não é fixa e imutável para toda e qualquer época. Situações de calamidade pública ou
guerras, por exemplo, sempre provocaram uma expansão da fronteira
da ação coletiva, ou seja, do Estado.
Quando se está vivendo uma situação de emergência coletiva, as pessoas abrem mão e cedem muito da
sua liberdade em nome de um objetivo comum, que é a proteção, a segurança e a sobrevivência.
Folha - Não é estranho que falemos
em um aumento da fronteira do Estado em um momento em que se fala
tanto em esvaziamento do Estado na
atuação da economia?
Giannetti -Apesar de todo o discurso e de toda a pregação de redução
do Estado, se se examinar objetivamente, vê-se que o gasto público como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) nos diferentes países só
fez crescer. É preciso separar o que é
discurso e imaginação e o que é fato
empírico e observável.
Folha - E a influência dos grupos de
interesse econômicos sobre o Estado?
Giannetti - Gosto muito de citar
Adam Smith sobre isso: gente do
mesmo ramo de negócios raramente se encontra sem que a conversa
termine em conspiração contra o
público ou algum conluio para aumentar os preços. Nada mais esperado de que grupos de interesse se
mobilizem e se organizem para obter do Estado algum tipo de concessão, proteção ou favor. A questão é
saber se o Estado é capaz de resistir a
esse assédio e tem condições de
manter as regras do jogo imunes a
essas pressões permanentes.
Folha - Qual o cenário futuro que podemos prever?
Giannetti - O conceito relevante
nessa questão é o que os economistas chamam de "trade off": sacrificar
um valor como contraparte da obtenção de um outro. O "trade off" de
que estamos falando aqui é aquele
entre liberdade e segurança. Um
mundo de total segurança é um
mundo que sacrifica demais a liberdade; por outro lado, um mundo de
liberdade anárquica é um mundo
em que a segurança é muito precária. Aí se têm dois extremos: de um
lado a fogueira hobbesiana, a guerra
de todos contra todos; e de outro o
congelamento, a fossilização do Estado totalitário.
Folha - O Estado tem a função de
proteger o indivíduo dele mesmo?
Giannetti - Muitas vezes são os próprios indivíduos que preferem ser
cerceados em sua liberdade, eles demandam isso. É o caso imortalizado
pela situação de Ulisses e a sereia: sabendo que não resistiria ao canto
das sereias, que seria uma morte certa, ele manda tapar com cera o ouvido dos tripulantes do barco e ordena
que o amarrem ao mastro do navio,
para que ele não possa dirigi-lo até a
ilha das sereias.
Ou seja, para preservar sua liberdade e sua vida, ele cerceia temporariamente seu direito de escolha. Em
muitas situações da vida prática as
pessoas preferem não ter opção. Essa atuação do Estado é legítima, partindo dos indivíduos.
Uma questão fundamental, que
discuto no meu novo livro, é a da
poupança previdenciária. Sabendo
o quanto difícil é para o indivíduo,
numa sociedade consumista, poupar para garantir uma renda na velhice, muitos deles preferem não ter
a liberdade de escolha, preferem que
seja compulsória a poupança previdenciária.
Folha - E onde fica o equilíbrio entre
a prevalência da maioria e a liberdade
de uma minoria?
Giannetti - Não há panacéia. Tudo
tem que ser discutido e negociado.
Em cada situação particular, os argumentos têm que ser pesados, e é
importante lembrar sempre que a
benefícios correspondem custos. É
muito rara uma situação em que só
haja benefícios.
Folha - E se individualmente cada
caso de regulamentação fizer sentido
e for aprovado, não é possível que tenhamos, no total, uma situação de
controle generalizado do Estado?
Giannetti - É preciso pesar individualmente, mas, obviamente, analisar o conjunto das normas restritivas, pensando na liberdade que almejamos para a nossa convivência.
Dependendo do grau de maturidade
de uma população, a fronteira é mutável. Uma população muito responsável e muito madura não precisa de uma regra de obrigatoriedade
de poupança previdenciária. Ela será
capaz de agir de forma consistente
no tempo, garantindo uma renda no
seu futuro.
Folha - De que outras formas, que
não apenas a ação restritiva, o Estado
pode incentivar essa atuação consciente dos indivíduos?
Giannetti - O ideal seria ter uma
população em que cada indivíduo
fosse preparado para responder de
forma madura ao maior número de
questões, mas infelizmente estamos
muito longe disso.
Folha - Mas será que é possível chegar a essa situação?
Giannetti - O problema é que muitas dessas restrições estão ligadas
também a danos que se impõe a terceiros. Fumar em local público, por
exemplo. Hoje eu me lembro das salas de aula da minha juventude, na
USP, e fico estarrecido com o fato de
que aceitávamos aquilo como parte
natural da vida: salas em que se tinha
dificuldade até mesmo de ver o professor, tal era a densidade da fumaça.
Folha - Pode-se usar esse mesmo
viés para analisar o referendo sobre a
proibição de armas de fogo no país?
Giannetti - Acho que sim. Adam
Smith dizia que a justiça está para a
virtude como a gramática está para o
estilo. Sem gramática não há linguagem, não existe interação social, todo o edifício da ordem social. Mas,
sem estilo, não há grandeza, não há
uma expressão do belo. O que falamos é do arcabouço de regras básicas para a interação humana. O ideal
é constituir regras que permitam
que todos vivam a melhor vida possível ao mesmo tempo.
Existem dois conceitos de liberdade. Isaiah Berlin define a liberdade
positiva e a negativa. A segunda é a
ausência de restrições na escolha e
na ação de indivíduos. A primeira é a
capacitação para o exercício efetivo
de uma escolha. De que vale a liberdade de ler Joaquim Nabuco ou Machado de Assis para uma pessoa
analfabeta? Se as pessoas não estiverem preparadas e capacitadas, essa
liberdade é vazia.
Folha - E a liberdade do voto?
Giannetti - Se estamos em um eleitorado como o brasileiro, onde dois
terços da população não têm nem
mesmo o ensino fundamental completo, é lamentável, mas o funcionamento da democracia fica prejudicado. Assim como também fica o funcionamento do mercado, que precisa de uma base adequada de capital
humano, senão ele também não funciona muito bem. Não estou dizendo que então é melhor não fazer essas escolhas, apenas que o exercício
delas não é tão construtivo quanto
poderia ser.
Folha - E o referendo sobre a venda
de armas?
Giannetti - Não deixa de ser uma
medida que tolhe certas liberdades
de escolha. Podemos concluir, como
sociedade, que o exercício dessa liberdade causa mais danos que benefícios, portanto, vale a pena uma reflexão aí.
Folha - O sr. concorda que muitas
das restrições impostas pelo Estado
são impostas por pensamentos "puritanos" de parte da sociedade?
Giannetti - A opinião pública pode,
sim, se tornar uma força tirânica e
muito cerceadora, tanto quanto a regulamentação estatal. São dois mecanismos diferentes de coerção e de
cerceamento.
Na verdade, o que estamos aprendendo hoje é que o cérebro humano
é modular. Esses módulos do cérebro têm motivações diferentes, e há
um processo permanente de negociação entre áreas do cérebro que
nos motivam a fazer coisas diferentes. O indivíduo está permanente e
internamente cindido, renegociando consigo mesmo o que ele faz. E
essa negociação é escorregadia.
O que acontece é que, muitas vezes
ciente dessa dificuldade de agir tal
como ele preferiria, pede que alguma força de fora, o Estado, defina
para ele os termos da transação. Ele
está tentando fazer um contrato com
ele mesmo, por meio do Estado.
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