São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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O INDIVÍDUO NO NO FIO DA NAVALHA

O ECONOMISTA EDUARDO GIANNETTI, QUE LANÇA "O VALOR DO AMANHÃ" NESTA SEMANA, DIZ QUE AS REGULAMENTAÇÕES IMPOSTAS PELO ESTADO SÃO EXIGÊNCIAS DOS PRÓPRIOS CIDADÃOS, QUE MUITAS VEZES PREFEREM SER CERCEADOS EM SUA LIBERDADE

DA REDAÇÃO

Não há panacéia para definir os limites entre a liberdade individual e as restrições de comportamento impostas pelo Estado. A opinião é do economista e cientista social Eduardo Giannetti, para quem o grande desafio é encontrar o que os economistas chamam de "trade off" -o ponto de equilíbrio entre o que as pessoas estão dispostas a permitir que o Estado decida por elas e a liberdade de atuação que este deseja ter no contato com o restante da sociedade.
Giannetti, que é professor da faculdade Ibmec (SP), lança no dia 27 seu novo livro, "O Valor do Amanhã" (Cia. das Letras, 328 págs., R$ 44), em que apresenta a idéia de "juros" como "uma tensão permanente entre presente e futuro numa troca intertemporal. A realidade dos juros, ao contrário do que as pessoas imaginam, está presente na vida prática nas mais diferentes situações, desde dietas, exercícios físicos, uso de drogas, criação artística, finanças. A comparação entre valores presentes e futuros são os juros", afirma.
Autor também de livros como "Vícios Privados, Benefícios Públicos" e "Auto-Engano" (todos pela Cia. das Letras), Giannetti afirma, na entrevista abaixo, ser contra a expressão "Estado-babá", que vê como paternalista. Ele explica que em tempos de calamidade, as pessoas se tornam mais abertas a aceitar limites externos, caso isso garanta sua segurança. Para ele, muitas vezes a atuação do Estado é apenas reflexo daquilo que desejam os indivíduos. "Em muitas situações da vida prática as pessoas preferem não ter opção".
(Daniel Buarque)
 

Folha - Como se pode descrever o "Estado-babá"?
Eduardo Giannetti -
Eu confesso, primeiramente, que não gosto dessa expressão. Ela infantiliza a sociedade. O termo tradicionalmente usado nesse caso é "paternalismo", em que o Estado age em relação à sociedade, aos indivíduos, como se fosse um pai, e eles, as crianças.
Muitas vezes, a preservação da liberdade requer um cerceamento de aspectos dessa liberdade. O que precisamos chegar a um acordo é sobre quais são as restrições adequadas para que possamos exercer nossa liberdade, todos ao mesmo tempo, da forma mais criativa e promotora da realização humana. A questão é: quais são as regras do jogo para que todos possamos realizar nosso plano de vida com o máximo de liberdade?
A fronteira disso não é fixa e imutável para toda e qualquer época. Situações de calamidade pública ou guerras, por exemplo, sempre provocaram uma expansão da fronteira da ação coletiva, ou seja, do Estado. Quando se está vivendo uma situação de emergência coletiva, as pessoas abrem mão e cedem muito da sua liberdade em nome de um objetivo comum, que é a proteção, a segurança e a sobrevivência.

Folha - Não é estranho que falemos em um aumento da fronteira do Estado em um momento em que se fala tanto em esvaziamento do Estado na atuação da economia?
Giannetti -
Apesar de todo o discurso e de toda a pregação de redução do Estado, se se examinar objetivamente, vê-se que o gasto público como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) nos diferentes países só fez crescer. É preciso separar o que é discurso e imaginação e o que é fato empírico e observável.

Folha - E a influência dos grupos de interesse econômicos sobre o Estado?
Giannetti -
Gosto muito de citar Adam Smith sobre isso: gente do mesmo ramo de negócios raramente se encontra sem que a conversa termine em conspiração contra o público ou algum conluio para aumentar os preços. Nada mais esperado de que grupos de interesse se mobilizem e se organizem para obter do Estado algum tipo de concessão, proteção ou favor. A questão é saber se o Estado é capaz de resistir a esse assédio e tem condições de manter as regras do jogo imunes a essas pressões permanentes.

Folha - Qual o cenário futuro que podemos prever?
Giannetti -
O conceito relevante nessa questão é o que os economistas chamam de "trade off": sacrificar um valor como contraparte da obtenção de um outro. O "trade off" de que estamos falando aqui é aquele entre liberdade e segurança. Um mundo de total segurança é um mundo que sacrifica demais a liberdade; por outro lado, um mundo de liberdade anárquica é um mundo em que a segurança é muito precária. Aí se têm dois extremos: de um lado a fogueira hobbesiana, a guerra de todos contra todos; e de outro o congelamento, a fossilização do Estado totalitário.

Folha - O Estado tem a função de proteger o indivíduo dele mesmo?
Giannetti -
Muitas vezes são os próprios indivíduos que preferem ser cerceados em sua liberdade, eles demandam isso. É o caso imortalizado pela situação de Ulisses e a sereia: sabendo que não resistiria ao canto das sereias, que seria uma morte certa, ele manda tapar com cera o ouvido dos tripulantes do barco e ordena que o amarrem ao mastro do navio, para que ele não possa dirigi-lo até a ilha das sereias.
Ou seja, para preservar sua liberdade e sua vida, ele cerceia temporariamente seu direito de escolha. Em muitas situações da vida prática as pessoas preferem não ter opção. Essa atuação do Estado é legítima, partindo dos indivíduos.
Uma questão fundamental, que discuto no meu novo livro, é a da poupança previdenciária. Sabendo o quanto difícil é para o indivíduo, numa sociedade consumista, poupar para garantir uma renda na velhice, muitos deles preferem não ter a liberdade de escolha, preferem que seja compulsória a poupança previdenciária.

Folha - E onde fica o equilíbrio entre a prevalência da maioria e a liberdade de uma minoria?
Giannetti -
Não há panacéia. Tudo tem que ser discutido e negociado. Em cada situação particular, os argumentos têm que ser pesados, e é importante lembrar sempre que a benefícios correspondem custos. É muito rara uma situação em que só haja benefícios.

Folha - E se individualmente cada caso de regulamentação fizer sentido e for aprovado, não é possível que tenhamos, no total, uma situação de controle generalizado do Estado?
Giannetti -
É preciso pesar individualmente, mas, obviamente, analisar o conjunto das normas restritivas, pensando na liberdade que almejamos para a nossa convivência. Dependendo do grau de maturidade de uma população, a fronteira é mutável. Uma população muito responsável e muito madura não precisa de uma regra de obrigatoriedade de poupança previdenciária. Ela será capaz de agir de forma consistente no tempo, garantindo uma renda no seu futuro.

Folha - De que outras formas, que não apenas a ação restritiva, o Estado pode incentivar essa atuação consciente dos indivíduos?
Giannetti -
O ideal seria ter uma população em que cada indivíduo fosse preparado para responder de forma madura ao maior número de questões, mas infelizmente estamos muito longe disso.

Folha - Mas será que é possível chegar a essa situação?
Giannetti -
O problema é que muitas dessas restrições estão ligadas também a danos que se impõe a terceiros. Fumar em local público, por exemplo. Hoje eu me lembro das salas de aula da minha juventude, na USP, e fico estarrecido com o fato de que aceitávamos aquilo como parte natural da vida: salas em que se tinha dificuldade até mesmo de ver o professor, tal era a densidade da fumaça.

Folha - Pode-se usar esse mesmo viés para analisar o referendo sobre a proibição de armas de fogo no país?
Giannetti -
Acho que sim. Adam Smith dizia que a justiça está para a virtude como a gramática está para o estilo. Sem gramática não há linguagem, não existe interação social, todo o edifício da ordem social. Mas, sem estilo, não há grandeza, não há uma expressão do belo. O que falamos é do arcabouço de regras básicas para a interação humana. O ideal é constituir regras que permitam que todos vivam a melhor vida possível ao mesmo tempo.
Existem dois conceitos de liberdade. Isaiah Berlin define a liberdade positiva e a negativa. A segunda é a ausência de restrições na escolha e na ação de indivíduos. A primeira é a capacitação para o exercício efetivo de uma escolha. De que vale a liberdade de ler Joaquim Nabuco ou Machado de Assis para uma pessoa analfabeta? Se as pessoas não estiverem preparadas e capacitadas, essa liberdade é vazia.

Folha - E a liberdade do voto?
Giannetti -
Se estamos em um eleitorado como o brasileiro, onde dois terços da população não têm nem mesmo o ensino fundamental completo, é lamentável, mas o funcionamento da democracia fica prejudicado. Assim como também fica o funcionamento do mercado, que precisa de uma base adequada de capital humano, senão ele também não funciona muito bem. Não estou dizendo que então é melhor não fazer essas escolhas, apenas que o exercício delas não é tão construtivo quanto poderia ser.

Folha - E o referendo sobre a venda de armas?
Giannetti -
Não deixa de ser uma medida que tolhe certas liberdades de escolha. Podemos concluir, como sociedade, que o exercício dessa liberdade causa mais danos que benefícios, portanto, vale a pena uma reflexão aí.

Folha - O sr. concorda que muitas das restrições impostas pelo Estado são impostas por pensamentos "puritanos" de parte da sociedade?
Giannetti -
A opinião pública pode, sim, se tornar uma força tirânica e muito cerceadora, tanto quanto a regulamentação estatal. São dois mecanismos diferentes de coerção e de cerceamento.
Na verdade, o que estamos aprendendo hoje é que o cérebro humano é modular. Esses módulos do cérebro têm motivações diferentes, e há um processo permanente de negociação entre áreas do cérebro que nos motivam a fazer coisas diferentes. O indivíduo está permanente e internamente cindido, renegociando consigo mesmo o que ele faz. E essa negociação é escorregadia.
O que acontece é que, muitas vezes ciente dessa dificuldade de agir tal como ele preferiria, pede que alguma força de fora, o Estado, defina para ele os termos da transação. Ele está tentando fazer um contrato com ele mesmo, por meio do Estado.


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