São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Pesquisa aponta que romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 seguem tendência das telenovelas e sub-representam ou representam de forma estereotipada as classes sociais e étnicas menos privilegiadas

Forno, fogão e favela

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Os personagens dos romances brasileiros contemporâneos são homens, de classe média e moram em cidades, e negros, mulheres, velhos e pobres têm pouca ou nenhuma voz. Em números: 62,1% dos personagens são homens; 79,8% dos personagens são brancos (contra 7,9% negros e 6,1% mestiços); 73,5% dos personagens negros são pobres (veja os números ao lado).
Isso é o que apontam os dados de uma pesquisa coordenada pela professora de literatura brasileira Regina Dalcastagnè, do departamento de teoria literária e literaturas do programa de pós-graduação em literatura da Universidade de Brasília.
Dalcastagnè orientou 17 alunos da UnB na pesquisa "Personagens do Romance Brasileiro Contemporâneo", que analisaram 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Record, Rocco e Companhia das Letras -escolhidas por serem consideradas as "mais importantes" do mercado editorial para a ficção nacional.
O objetivo do levantamento, segundo Dalcastagnè, foi analisar a ausência de representação ou a representação estereotipada de determinados grupos dentro da literatura -do ponto de vista de raça, religião, classe social, profissão etc. "É uma discussão que se faz com freqüência em relação às telenovelas brasileiras, mas não se costuma indagar em relação à literatura", afirmou à Folha.
A pesquisadora rebate o risco embutido na pesquisa, que é o de resvalar no dirigismo ou no policiamento ideológico: "Não há a menor intenção de policiar. Não tenho nenhum modelo para o que seria correto na literatura. Mas há um estranhamento, sim. Quando o negro aparece, é quase sempre como bandido. É o que os movimentos negros reclamam. Quando aparece uma negra na novela, ela está na cozinha. Da mesma forma ocorre na literatura".

"Politicamente correto"
"Eu ficaria espantado se o resultado [da pesquisa] tivesse sido outro", disse à Folha Alcides Villaça, professor de literatura brasileira na USP. "Ainda que a coordenadora tenha afirmado que "nunca nos dispusemos a prescrever o que seria correto", sinto que há por trás da pesquisa uma forte motivação do "politicamente correto". E aqui cabe uma questão de fundo: não temos, como leitores de ficção, nenhum direito ao horror, ao trágico, ao injusto, ao humilhante, ao impiedoso, em suma, aos abismos todos da subjetividade e da vida social, que tantos escritores nos fazem viver de modo crítico, expondo as violências e as ideologias que as mascaram?"
Já o escritor Marçal Aquino aponta o lado positivo da pesquisa: "Os resultados confirmam que, em boa medida, toda literatura é um testemunho de seu tempo, já que, de um modo geral, a realidade dos personagens examinados não é nem um pouco diferente do que se passa no real concreto", disse à Folha.
Mas Aquino concorda que pode haver riscos no uso que se faz dos dados: "O mérito de um trabalho desse gênero é servir como constatação de um estado de coisas, mas nunca como balizamento para qualquer escritor -sob pena de colocar em risco algo inegociável: a liberdade absoluta na hora de escrever".

"Tentar inverter o jogo"
A autora rejeita qualquer intenção de dirigismo. Para ela, "a intenção é fazer um mapeamento, mostrar o que está acontecendo com a literatura. Os autores estão trazendo para dentro das obras representações que estão acostumados a ver. Acabam reproduzindo mesmo sem querer essas representações. Mas eles também podem tentar fazer uma crítica, tentar inverter o jogo". Segundo ela, "não existe nenhuma crítica aos autores de hoje, achando que antes tenha sido diferente ou melhor".
Por outro lado, Villaça pondera: "Será que levantamentos quantitativos têm grande importância para a dedução de qualquer aspecto decisivo dos romances tabulados, quando se sabe que a literatura se constrói, se expressa e se interpreta, antes de mais nada, no âmbito e no reconhecimento das singularidades?".
E emenda: "Se a literatura tivesse sido, desde o início, espelho das virtudes desejáveis, não se teria recomendado a expulsão dos poetas da República. E os estudos literários se organizariam como um ramo positivamente exemplar da pedagogia. Aboliríamos Machado, Graciliano, Clarice, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Raduan Nassar e tantos outros para colocar quem, mesmo, no lugar?".
A literatura brasileira contemporânea é mais preconceituosa em relação a outros países ? Na Alemanha os imigrantes turcos não são representados como marginais? Ou os árabes na França? "Deve acontecer a mesma coisa", diz Dalcastagnè. "Apesar de a literatura ter um status privilegiado e de fazer opções mais aprofundadas, a idéia [da pesquisa] é mostrar que a literatura reproduz, reafirma esses preconceitos. Não estou fazendo uma crítica nem uma comparação em relação à literatura de outros países", afirmou.

"Cidade de Deus" e "Inferno"
A pesquisa -que exclui contos e outros gêneros literários- também aponta que dois romances "desequilibraram" a pesquisa: "Cidade de Deus" (publicado em 1997 e relançado em 2002), de Paulo Lins, e "Inferno" (2000), de Patrícia Melo (ambos da Cia. das Letras), respondem sozinhos por 20% dos personagens negros identificados em todo o estudo.
"É bastante visível, a partir de "Cidade de Deus", de Paulo Lins, uma preocupação dos novos autores em trazer personagens que estavam à margem da sociedade. Ele abriu algumas frentes que ainda não estão completamente preenchidas", afirma Dalcastagnè.
Os resultados também não captam uma possível (mas pouco provável, segundo Dalcastagnè) "evolução" da representação: "É difícil saber se isso está mudando, mas será possível com o prosseguimento do levantamento, que vai pesquisar novos recortes", disse a pesquisadora. "Sobre homossexuais, acho que hoje estão mais presentes do que na época de Machado de Assis." Mas, segundo a autora, o número de personagens femininos devia ser maior na época dele: "Os homens hoje se sentem mais constrangidos a escrever pela perspectiva feminina, uma vez que as mulheres e os grupos reivindicam mais espaço. Os homens se sentem com pouca legitimidade, e Machado não teria esse problema", afirma.
O estudo será publicado em novembro na revista "Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea", do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB. A parte seguinte se concentrará nos anos de 1965 a 1979: "Já temos 60 livros lidos, das editoras Civilização Brasileira e José Olympio".
O novo estudo, que deve estar pronto em julho de 2006, não terá apenas o recorte do período que compreende o regime militar mas também obras canônicas de outras épocas, incluindo nomes como Aloísio Azevedo, Machado de Assis e José de Alencar, além de peças de teatro e de cinema, para fazermos uma comparação", completa.


Texto Anterior: O indivíduo no fio da navalha
Próximo Texto: Sujeitos bem resolvidos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.