São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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Em novo livro, José Murilo de Carvalho analisa o papel dos militares na história do Brasil e sua relação ambígua com o poder político

Uma lógica do poder

JORGE ZAVERUCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este livro reúne textos de importante pesquisador sobre as Forças Armadas brasileiras. Dono de uma escrita agradável, lê-se o livro como se fosse um romance. José Murilo de Carvalho vai da Guerra do Paraguai [1864-70] até os dias de hoje, proporcionando uma ampla visão sobre o papel dos militares em nossa história.
Os dois primeiros capítulos de "Forças Armadas e Política no Brasil" são os principais. O autor mostra a importância de estudar as Forças Armadas sob o ponto de vista organizacional. Organizações, lembra, "possuem características e vidas próprias que não podem ser reduzidas a meros reflexos de influências externas". Com isso, procura fugir das análises que conferem a priori papéis políticos às Forças Armadas ou que caem nas explicações "ex post facto".
Carvalho mostra como os militares evoluíram até alcançarem sua própria lógica de poder. No entanto não comprova se a suposta subordinação militar às autoridades civis ocorre por meio de estratégia intencional orientada ou, se na decisão castrense de abandonar o governo em 1985, os militares teriam incorporado suas expectativas sobre as reações civis.
Sinto falta, na análise do autor, de interação mais efetiva entre civis e militares no jogo político. Carvalho faz com maestria a descrição do comportamento das Forças Armadas e das forças civis. Contudo não apresenta explicações do motivo das relações civis-militares serem desse ou daquele modo, bem como da dinâmica de sua variação ao longo do tempo. Obviamente, uma análise organizacional per se não consegue capturar essas nuanças do jogo estratégico. Afinal, um ator político pode mudar seu comportamento se: a) a probabilidade percebida de que suas preferências sejam adotadas aumentar ou diminuir; b) o ator obtiver mais informações sobre outros atores e sobre o quadro político; e c) o peso do ator no sistema político crescer ou decrescer.
Carvalho, por exemplo, diz que em 1964 "travou-se a batalha final que deu a vitória à facção militar anti-Vargas". Mas, por que essa facção não saiu vitoriosa em 1961? Como encaixar na sua análise o comportamento do citado general Peri Bevilaqua? Ele foi o primeiro oficial com comando de tropas a apoiar, em 1961, a assunção de Goulart.
Apoiou, porém, a deposição do mesmo em 1964. Posteriormente, por querer que o governo fosse logo devolvido aos civis, foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar. Para ficar longe da tropa. Por ter tomado decisões independentes em relação aos interesses das Forças Armadas, foi afastado compulsoriamente do STM e teve suas condecorações militares cassadas.

Sem maniqueísmo
Talvez a falta de uma visão estratégica do jogo político explique a afirmação de Carvalho de que o "comportamento [das Forças Armadas] durante o processo de impedimento de Fernando Collor de Mello foi exemplar". Ora, Collor foi o presidente civil entre 1985-2005 que mais fustigou os interesses dos militares.
Ao pressentirem que o Congresso votaria o impeachment, não havia motivo para as Forças Armadas intervirem explicitamente. Apoiaram nos bastidores -e como- a queda de Collor. O próprio ministro da Marinha de Collor, almirante Mario César Flores, funcionou como elo entre Itamar Franco e a caserna.
Em troca, os militares foram contemplados com nove ministérios. E Itamar, durante seu governo, ajustou-se, repetidamente, aos interesses castrenses.
Desse modo, ao se adotar a visão dicotômica "golpe e não-golpe", perde-se uma série de nuanças sobre a influência militar nos bastidores da política. Forças Armadas podem não dar golpe, não necessariamente porque a democracia está consolidada, mas o seu reverso. Ela é tão frágil que aceita as imposições castrenses com receio da queda da democracia.
Seria o caso de os militares moldarem parte do governo sem diretamente controlá-lo. O que Nordlinger define como pretorianismo moderado. Isto é, os civis podem governar, mas o governo é supervisionado pelos militares nos assuntos que lhes interessam. Os militares são um poderoso grupo de pressão que exerce poder de veto, em determinadas áreas, sobre as autoridades políticas, sem almejar, todavia, tomar diretamente o poder.
A conclusão do livro é contraditória. Por um lado, o autor indaga se deve continuar estudando os militares diante de estarem as "Forças Armadas cada vez mais dedicadas a tarefas profissionais em obediência aos parâmetros constitucionais". Por outro, reconhece "o risco de sermos surpreendidos pelos acontecimentos de 1964". Ora, a melhor forma de evitar a surpresa é continuar estudando os militares.
Carvalho aponta, corretamente, que a saída do ministro da Defesa, José Viegas, é prova da existência de feridas abertas. Bem como a resistência do Exército à abertura dos seus arquivos.
Acrescento itens, dentre outros, a essa lista de preocupações de Carvalho: os policiais e bombeiros militares foram transformados em militares estaduais, algo inusitado no mundo "democrático"; o Exército continua a ter controle parcial sobre as polícias e corpos de bombeiros militares; a Lei de Segurança Nacional, braço jurídico da Doutrina de Segurança Nacional, continua em vigor; o orçamento das Forças Armadas durante o governo FHC só perdeu para Previdência e Saúde, ganhando da Educação e da Habitação; a Abin, agência civil, está subordinada a um general da ativa que é o ministro de Estado; o Exército obteve, por decreto, o poder de polícia. Plano Padrão para Garantia da Lei e da Ordem é o nome do projeto para intervenção urbana, e batalhões neste sentido já estão sendo treinados.
A experiência das tropas brasileiras no Haiti será de grande valia para tal projeto.


Jorge Zaverucha é doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e professor na Universidade Federal de Pernambuco. É autor de "Frágil Democracia" (ed. Civilização Brasileira), entre outros livros.

Forças Armadas e Política no Brasil
224 págs., R$ 38
de José Murilo de Carvalho. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).



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