São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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Duelo de profetas

"Estudos Políticos", de Max Weber, e biografia de Trótski põem em debate a história da Rússia e do socialismo

ANGELO SEGRILLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para os amantes dos temas da história política da Rússia, dois livros a conferir. O primeiro é "Estudos Políticos", com textos do sociólogo Max Weber (1864-1920) sobre as revoluções russas de 1905 e de 1917 e uma penetrante introdução de Maurício Tragtenberg que vale a pena por si mesma. O outro é uma reedição do primeiro volume da clássica trilogia biográfica de Trótski por Isaac Deutscher, intitulado "O Profeta Armado" [o segundo, "O Profeta Desarmado, 1921-1929", acaba de sair].
Há exatamente cem anos estourava o que os soviéticos chamavam de Primeira Revolução Russa, prelúdio e ensaio para as revoluções de fevereiro (democrático-burguesa) e outubro (socialista) de 1917. A Revolução de 1905 não conseguiu derrubar o czarismo, mas o obrigou a mudar de uma autocracia absoluta para uma monarquia com certas limitações constitucionais (criação de um Parlamento e uma Constituição e a legalização de partidos políticos).


Weber não considerava que o alto capitalismo tivesse afinidades especiais com a democracia


Weber se apercebeu da importância dos acontecimentos e escreveu dois longos ensaios sobre eles em 1906: "A Situação da Democracia Burguesa na Rússia" e "A Transição da Rússia para um Regime Pseudoconstitucional". O livro "Estudos Políticos" traz esses dois ensaios mais um artigo de 1917 (escrito no mesmo mês em que Lênin expunha suas "Teses de Abril") sobre a revolução de fevereiro daquele ano, que derrubou o czarismo e colocou em seu lugar o governo provisório.
Como Weber é o grande contraponto de Marx na sociologia histórica, a leitura de seus pontos de vista sobre os processos que posteriormente levariam ao regime soviético é instigante. Nos ensaios sobre 1905, Weber analisa o fato de a Rússia estar chegando aos estágios iniciais do chamado "alto capitalismo", o que implicava grandes transformações sociais, inclusive a possibilidade de uma gradual absorção da racionalidade impessoal do capitalismo moderno por sobre a tradicional visão patrimonialista do estado czarista.
Entretanto Weber não considerava que o alto capitalismo tivesse afinidades especiais com a democracia. Por isso, as peculiaridades da Rússia (não tinha passado pelos estágios de desenvolvimento burguês do Ocidente, a classe trabalhadora era pequena em comparação com o mar de camponeses, a burguesia não apoiava decididamente o liberalismo) levavam Weber a prognosticar que o constitucionalismo trazido pela revolução de 1905 tinha alcance limitado, representando, no máximo, uma racionalização da autocracia pela burocracia.
É interessante notar aqui o contraste com o "Profeta Armado" Trótski, que, na época, pela sua teoria de revolução permanente, propunha que a solução para a fraqueza da burguesia russa em realizar sua própria revolução democrática seria o proletariado do país (pouco numeroso, mas extremamente concentrado) assumir as rédeas desse processo, levando a que, sob pressão dos trabalhadores, essa transformação não parasse na etapa democrático-burguesa e desembocasse na própria revolução socialista.

Trótski versus Weber
Tendo em vista os acontecimentos de 1917, parece que Trótski estaria mais correto se não fosse uma afirmação do próprio Weber, de que "apenas uma guerra européia malsucedida poderá levar à queda da autocracia".
Como existe uma corrente historiográfica influente que diz que os minúsculos bolcheviques só conseguiram chegar ao poder devido ao caos da Primeira Guerra Mundial, o placar de Trótski contra Weber parece estar empatado nesse ponto.
O segundo tempo de Trótski versus Weber pode ser visto no último ensaio de "Estudos Políticos", que trata da revolução de fevereiro de 1917. Ao contrário de Trótski e Lênin, que apostavam que o proletariado (por meio dos sovietes) poderia predominar sobre o governo provisório, Weber desconfiava da capacidade organizativa e administrativa da classe operária russa (ele, inclusive, dedicava mais atenção ao papel do numeroso campesinato, com seu imenso potencial de chantagem) e achava que o instável governo provisório acabaria por ser dominado ou dissolvido pela burguesia.
Ou seja, Weber excluía a possibilidade de melhoria no sistema, em direção a uma verdadeira democracia, via revoluções socialistas. Hoje, com um século de visão retrospectiva sobre a revolução socialista russa quem estaria mais correto: Weber ou a "troika" Trótski/Lênin/Marx?
"O Profeta Armado, 1879-1921" descreve os anos de ascensão de Trótski. Juntamente com "O Profeta Desarmado, 1921-1929" e "O Profeta Banido, 1929-1940", constitui o que pode ser considerada a melhor biografia de Trótski, mesmo em comparação com a do russo Volkogonov, a do israelense Knei-Paz e a do francês Pierre Broue. Isso porque Deutscher, apesar de ser um ex-trotskista, procura fazer uma análise objetiva das diferentes facetas da vida do personagem.
Ele mesmo um intelectual de peso, Deutscher consegue utilizar a descrição factual da vida de Trótski para discutir com o leitor as grandes questões e dilemas por que passou a Rússia nesse período revolucionário.
A formulação da teoria da revolução permanente a partir da experiência de 1905, a longa disputa com Lênin entre 1903 e 1916 e a reconciliação dos dois em 1917, o papel como presidente do Soviete e como comandante do Exército Vermelho são alguns dos episódios (processos) abordados por Deutscher. Leitura instigante que certamente levará o leitor a querer devorar o volume seguinte, que narra os debates com Stálin nos anos 1920.
Por apresentarem várias das mesmas questões históricas sob pontos de vistas diferentes e relevantes, os livros de Weber e Deutscher constituem uma boa parceria de leitura para os interessados nos caminhos da terra de Dostoiévski e Tolstói.

Angelo Segrillo é historiador, autor de "Rússia e Brasil em Transformação" (ed. 7Letras), entre outros livros.

Trótski - O Profeta Armado 1917-1921
644 págs., R$ 65,90
de Isaac Deutscher. Tradução de Waltensir Dutra. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/ 21/2585-2000).
Trótski - O Profeta Desarmado 1921-1929
574 págs., R$ 65,90
de Isaac Deutscher. Tradução de Waltensir Dutra. Ed. Civilização Brasileira.
Estudos Políticos - Rússia 1905-1917
216 págs., R$ 30,40
de Max Weber. Tradução de Maurício Tragtenberg. Ed. Azougue (praça Mahatma Gandhi, 2, salas 208-210, Cinelândia, Rio de Janeiro, CEP 20031-908, tel. 0/xx/21/ 2240-8812).



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