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A SUPER ESTRUTURA
Amparado em uma erudição monumental, Lévi-Strauss inseriu o pensamento ameríndio no horizonte
da filosofia do Ocidente,
diz o antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro
Despatin e Gobeli/Reprodução
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Lévi-Strauss em sua residência, em Paris, em 1993 |
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos principais
antropólogos brasileiros, Eduardo
Viveiros de Castro
se notabilizou também pela retomada criativa, em
livros como "A Inconstância da
Alma Selvagem" (ed. Cosac
Naify), dos métodos e do projeto teórico de Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica
patente pelo entusiasmo com
que, na entrevista a seguir, saúda o centenário do pai da antropologia estrutural.
Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro
também comenta o percurso
de Lévi-Strauss, sua recepção
pela antropologia brasileira e
sua atualidade como paradigma científico e forma de compreensão crítica dos impasses
do mundo global.
FOLHA - Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para a antropologia e o pensamento ocidentais?
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO - Lévi-Strauss reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental, e ao mesmo
tempo revolucionou a filosofia,
ao abrir um dos principais caminhos do século [20] para que
outros pudessem desmontar os
fundamentos colonialistas da
metafísica ocidental.
FOLHA - Quais de suas obras o sr.
destacaria? Por quê?
VIVEIROS DE CASTRO - Todas. "As
Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) é um dos
grandes clássicos do pensamento sociológico, um livro de
mesma estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber, ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa", de
Durkheim.
"Tristes Trópicos" (1955)
suscitou uma modificação dramática na sensibilidade européia em relação ao lugar da civilização ocidental na história
humana.
"O Pensamento Selvagem"
(1962) colocou os mundos intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes
tradições" (as culturas estatais,
antigas ou modernas) ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.
Isso tudo dito, penso, porém,
que os estudos mais tardios sobre as mitologias ameríndias, a
saber, a tetralogia "Mitológicas" (1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das
Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta", 1985, e "História de
Lince", 1991) são o ponto alto
da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.
Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento
ameríndio do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu
carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie.
A partir das "Mitológicas", a
obra de Lévi-Strauss se torna o
momento em que o pensamento ameríndio faz seu lance de
dados, ultrapassando seu próprio "contexto" cultural e se
mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo
aquele que, persa ou francês, se
disponha a pensar -sem mais.
Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As Origens
dos Modos à Mesa", o terceiro
volume das "Mitológicas", maravilhosamente bem pensado,
e "História de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial, onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta" da
América pelos europeus.
FOLHA - Em que circunstâncias o sr.
entrou em contato pela primeira vez
com a obra lévi-straussiana? Que
impacto esse "encontro" teve para o
seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia? Poderia exemplificar com alguma de suas obras?
VIVEIROS DE CASTRO - Os dois primeiros livros de antropologia
que li foram "As Estruturas
Elementares" e "O Cru e o Cozido", em 1970-71, em cursos
que [o crítico] Luiz Costa Lima
dava na PUC-RJ na época.
Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram
Lévi-Strauss ao Brasil nos anos
1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo para essas
plagas, a partir do final dos anos
1960. A antropologia estrutural
custou um bocado a pegar no
ambiente paulistano, por razões muito características, que
não cabe adentrar aqui. A exceção que confirma a regra, para o
caso de São Paulo, foi o grande
Bento Prado Jr., que sempre
esteve um passo ou dois à frente de seus congêneres.
A experiência de leitura de
"O Cru e o Cozido" (volume 1
das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva para mim.
Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos
anos, na efervescência cultural
da época, a época da tropicália e
da antropofagia (uma teoria
política da bricolagem cultural), dos experimentos radicais
da arte conceitual brasileira, da
ascese barroca da poesia concreta, da querela do formalismo
versus conteudismo em arte,
do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de
mitos picarescos analisados
por Lévi-Strauss, pornográficos às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente,
mitos tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru
e o Cozido", me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito:
uma matemática rabelaisiana.
Lévi-Strauss é a síntese, muito
gálica, de Rabelais e Descartes.
FOLHA - Hoje é possível considerar
a antropologia estrutural, em algum
sentido, ultrapassada?
VIVEIROS DE CASTRO - Essa questão faria mais sentido se aplicada à coleção de verão de 2007
de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas
discotecas (ainda se chamam
assim?) de Londres, Mikonos
ou Recife.
Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia
estrutural está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant está em alguns
sentidos ultrapassada, ou a
poesia de Dante.
Mas, como sabemos, isso não
impede que ninguém se possa
chamar filósofo se não leu e
meditou profundamente sobre
Kant, nem poeta se não leu
nem se maravilhou com Dante.
Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer
começou a ser explorada em toda a sua complexidade.
O estruturalismo está muito
longe de ter tido todas as suas
potencialidades analíticas esgotadas, e a fase das leituras
brutalmente simplificadoras
da obra lévi-straussiana -simplificação dialeticamente necessária, sem dúvida, para o
prodigioso florescimento de
novos temas e problemas na
antropologia dos últimos 30
anos (e para a ressurreição de
alguns temas bem velhos; já ia
dizer, ultrapassados)- aproxima-se de seu fim.
Após a recauchutagem do
evolucionismo pela psicoantropologia cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora;
após a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica
da "invenção da tradição"; depois da volta do funcionalismo
(mas ele alguma vez foi mesmo
embora?) com a economia política da globalização; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar -como dizia Leach, de "repensar"- o estruturalismo.
FOLHA - Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed. Cultrix), Edmund Leach
mostra que a antropologia anglo-americana é herdeira de Malinowski
na ênfase em aspectos como observação participante, menos generalizações e foco nas diferenças -mais
do que nas semelhanças- entre as
culturas. E por isso tais antropólogos
tenderiam a criticar o viés de Lévi-Strauss, que seria mais comparável
ao de Frazer: erudição monumental,
mas pouco trabalho de campo e
uma vontade de elucidar os traços
universais da "mente humana", negligenciando as particularidades
culturais. Como vê tais críticas?
VIVEIROS DE CASTRO - Leach era
um piadista, um caso curioso
de enfant terrible vitalício da
antropologia britânica. Pois
suas críticas a Lévi-Strauss devem ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o
principal difusor do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.
(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com
Malinowski: não misturemos
as estações).
Foi aliás graças ao ensino de
Leach que, hoje, se pode dizer
que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo na antropologia britânica, graças à
liderança intelectual de uma
ex-estudante de Leach em
Cambridge, a antropóloga Marilyn Strathern (o maior nome
surgido na disciplina desde Lévi-Strauss), do que na França,
onde o pensamento lévi-straussiano foi submetido, por
alguns antropólogos eminentes no plano local, a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual.
Quanto a isso de erudição
monumental (não consigo imaginar essa expressão como significando uma crítica) versus
particularidades culturais -tal
coisa não existe.
A distinção entre antropologias francesa e britânica não se
reduz a -nem sequer passa
por- um contraste entre generalizações e busca de semelhanças versus estudos monográficos particularizantes.
Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico que a etnologia francesa
de hoje. E Lévi-Strauss nunca
se interessou pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou
melhor, pelos sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas particulares.
A oposição entre universal e
particular é uma roubada epistemológica. Isso não existe.
FOLHA - Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford
Geertz, teceu críticas duras a "Tristes Trópicos", dizendo tratar-se de
um livro a ser lido sobretudo como
ficção, literatura, mais do que como
etnologia. O sr. concorda? Como o
sr. avalia essa obra de Lévi-Strauss?
VIVEIROS DE CASTRO - As críticas
de Geertz (aliás, já morto há algum tempo) não são tão recentes assim. As primeiras delas
datam do começo dos anos
1970, se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são
irrelevantes.
Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos, no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia jamais conheceu: o
britânico Evans-Pritchard e o
francês Lévi-Strauss.
Parece coisa de inveja da excelência alheia.
"Tristes Trópicos" não é um
livro de ficção. É um livro que
redefiniu as fronteiras e as funções intelectuais da ficção e da
etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz -que não é nada
má, diga-se de passagem- por
um único capítulo de "Tristes
Trópicos".
FOLHA - Em que medida as fortes
denúncias de Lévi-Strauss contra o
etnocentrismo do Ocidente ajudam
hoje a pensar os rumos da civilização globalizada?
VIVEIROS DE CASTRO - As denúncias de Lévi-Strauss simplesmente anteciparam o que hoje
está cada vez mais evidente:
que a espécie entrou em um
apertadíssimo beco sem saída.
E que, se alguma esperança
há, esta reside em nossa capacidade de prestar a mais humilde,
séria e solícita das atenções à
tradição intelectual dos povos
que não tiveram a pretensão
inacreditavelmente estúpida e
arrogante de se colocar como
maiores do que o mundo em
que vivem.
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