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MITO FORTE
Para Manuela Carneiro da Cunha, antropólogo está tendo a glória de ser redescoberto em vida, após ter sido considerado superado em alguns círculos
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No longo prazo, todo
pensador célebre
pode estar certo de
duas coisas: de
morrer e de ser
considerado superado. Tem
sorte quando a primeira ocorre
antes da segunda".
A boutade é do antropólogo
americano Marshall Sahlins.
Mas Lévi-Strauss faz no dia 28
cem anos, tempo suficiente para um terceiro momento: o de
ser tido por superado em alguns círculos, mas de ser redescoberto ainda em vida.
Pois sua importância renasce
quase meio século após seu
apogeu inicial, os anos de ouro
do estruturalismo.
O Brasil e os EUA tiveram
ambos importância decisiva
em sua vida e sua obra. Sem o
programa Rockefeller de resgate de intelectuais ameaçados
na Europa, é muito plausível
que Lévi-Strauss não tivesse
sobrevivido à Segunda Guerra
Mundial. O Brasil, com efeito,
negou-lhe um visto em 1940.
Sem a Biblioteca Pública de
Nova York, sem a Escola Livre
de Altos Estudos, sem a amizade do lingüista Roman Jakobson e dos surrealistas em Nova
York, a obra dele teria sido
muito diferente.
Mas, sem os anos brasileiros,
sem as expedições aos bororos,
aos cadiuéus, aos nambiquaras,
também não teríamos o Lévi-Strauss que tivemos.
Não só, como veremos, porque foram suas primeiras publicações sobre os índios brasileiros que o fizeram notar nos
EUA e ensejaram que ele estivesse no rol dos intelectuais a
serem "salvos" -e não só porque são eles que protagonizam
"Tristes Trópicos", escrito
quando Lévi-Strauss se julgava
definitivamente excluído do
sistema universitário francês.
Por isso "Tristes Trópicos"
não é um livro acadêmico, é um
livro de viagem filosófica e sensorial que se abre com a célebre
declaração: "Odeio as viagens".
É um livro cheio de idéias, de
análises e de sugestões, maravilhosamente bem escrito, que
contribuiu para a eleição do autor, anos mais tarde, à Academia Francesa. E, finalmente, é
um livro em que Lévi-Strauss
se abre, pelo menos um pouco.
Para alguém que foi acusado
de ser "cerebral", em "Tristes
Trópicos" ele mostra uma sensibilidade extraordinária às
paisagens.
Posso atestar que, quando
em 1985 eu o acompanhei, a
seu pedido, numa viagem-relâmpago aos bororos -que, por
motivos diversos, nunca chegamos a ver-, ele não se frustrou.
Ficou feliz em rever um ninho
de joão-de-barro e as nuvens
do céu de Mato Grosso.
Dissemos que EUA e Brasil,
ambos, foram essenciais na vida e na obra de Lévi-Strauss.
Mas qual foi, reciprocamente, a
importância de Lévi-Strauss
nesses dois países?
Nos EUA, com poucas exceções, não se entendeu e não se
procura mais entender Lévi-Strauss.
E Lévi-Strauss no Brasil? É
sabido que, no Brasil, o jovem
Lévi-Strauss não foi imediatamente reconhecido, até porque
ainda não tinha escrito nada ou
quase nada.
Sua influência repercutiu
fortemente aqui nos anos 1960
e 1970, sobretudo com os estudos das sociedades gês no Brasil Central, que foram concebidos sob o impacto dos seus artigos sobre o dualismo, mas
também desenhados para tentar refutá-los.
Na Universidade de São Paulo, Ruth Cardoso se interessava
especialmente por Lévi-Strauss; eu mesma, em 1973,
procurei mostrar o lugar da estrutura mítica no agenciamento da história, em um ensaio
sobre a lógica do mito e a lógica
da ação.
Hoje, em alguns centros de
antropologia no Brasil, o pensamento de Lévi-Strauss continua vivo e atual, no sentido de
que continua a gerar questões e
abordagens que, combinadas a
outras influências e fermentadas pela etnografia, inspiram-se em uma leitura sutil tanto do
que ele analisou explicitamente quanto daquilo que indicou
ou deixou entrever.
Por que essa afinidade?
Não é impossível que ele e os
povos indígenas do Brasil tenham sido feitos para se entenderem mutuamente, isto é
-para retomar uma fórmula
célebre da abertura de "O Cru e
o Cozido"-, que seu pensamento tenha tomado forma ou
se reconhecido no pensamento
indígena tanto quanto este tomou forma e se reconheceu no
seu pensamento.
Creio que é a partir dessa hipótese que Eduardo Viveiros
de Castro tomou a si a tarefa
não de retomar Lévi-Strauss ao
pé da letra, mas sim de retomar
seu procedimento, levando em
conta o sentido e o alcance das
questões levantadas pelo pensamento indígena.
Assim como fez Marilyn
Strathern na Nova Guiné, ele
mostrou a importância, para o
antropólogo, de se deixar guiar
pelo pensamento do outro.
Foi ainda Eduardo Viveiros
de Castro quem observou recentemente que, se foi possível
descrever "As Estruturas Elementares do Parentesco" como
obra pré-estruturalista, as "Mitológicas", por sua vez, poderiam ser lidas como pós-estruturalistas.
De fato, ele discerniu, nas
"Mitológicas", não uma preponderância de silogismos totêmicos, isto é, da lógica classificatória proposta desde "O Totemismo Hoje" (1962), e sim
um procedimento que pode ser
dito pós-estruturalista, feito de
rizomas e de percursos imbricados.
Em suma, um esboço do que
fizeram mais tarde Deleuze e
Guattari -mostrando assim
que, contrariamente aos que
simploriamente vêem no pós-estruturalismo um antiestruturalismo, trata-se, ao contrário, de discernir as entrelinhas,
as análises concretas e os subtextos (além dos próprios textos) de Lévi-Strauss.
Mauro Almeida, da Unicamp, também renovou a leitura de Lévi-Strauss de forma
original e contribuiu para uma
leitura adequada do alcance da
inspiração matemática e cibernética em Lévi-Strauss, salientando a sua noção de entropia.
Um dos aspectos mais misteriosos dos escritos de Lévi-Strauss é a célebre e desconcertante "fórmula canônica" do
mito, mencionada em 1955 e,
quando parecia fadada ao esquecimento, ressurgida subitamente em "A Oleira Ciumenta"
e "História de Lince".
Almeida deu à fórmula canônica uma interpretação original, que a conecta à concepção
de dialética que Lévi-Strauss,
em 1962, opunha à de Jean-Paul Sartre: uma forma e uma
fórmula de superação, de abdução, de "dedução transcendental", diria o antropólogo, que
permite fazer o salto sobre o
vazio, ligando os silogismos
que se esgotam a novos domínios ao mesmo tempo semânticos e geográficos.
Por esses poucos exemplos
que nem de longe esgotam as
leituras que aqui se fazem, percebe-se que os brasileiros, à semelhança do que os árabes fizeram com Aristóteles na Idade Média, conservaram viva a
obra de Lévi-Strauss.
Souberam lê-la de modo original, sutil e fecundo. Sutil porque reconheceram no próprio
autor as passagens e aspectos
em que ele complica e subverte
aquilo que deu ensejo a leituras
simplistas. Fecundo porque
partiram não só da letra, mas
também do espírito que animou a sua obra.
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga e professora na Universidade de Chicago.
Uma versão deste texto foi publicada em "Lévi-Strauss - Leituras Brasileiras" (ed. UFMG).
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