São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2008

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Manifesto antifuturista

"A Escada de Wittgenstein" traça um paralelo entre as obras do filósofo e de Gertrude Stein

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A premissa de "A Escada de Wittgenstein", de Marjorie Perloff, é simples: as idéias do filósofo austríaco [1889-1951] são muito influentes nas artes no século 20. Comprová-la exige, por outro lado, o uso de um aparato crítico complexo, e a autora enfrenta o desafio com incrível habilidade.
O ponto de partida é a conhecida metáfora do final do "Tractatus": "Minhas proposições são elucidativas desta maneira: aquele que me compreende acaba por reconhecê-las como sem sentido, após ter escalado por meio delas -por elas- para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.)".
Daí ela extrai aspectos de uma "poética wittgensteiniana": a cotidianidade (uma escada qualquer, vaga, não a escadaria do Purgatório de Dante ou a "antiga escada em espiral" de Yeats); um movimento de repetição (escalar "através", "sobre", "para além"), que põe em suspeita a generalização; e a impossibilidade de subir a mesma escada duas vezes, "o que equivale a dizer que cada proposição filosófica, por mais que dependa das proposições que a tenham fundamentado, carrega sempre alguma marca de diferença, ainda que as mesmas palavras sejam repetidas exatamente na mesma ordem".
É o estranhamento decorrente dessas constatações que ela vai buscar nos textos do próprio Wittgenstein e nos jogos de linguagem de Gertrude Stein, Samuel Beckett, Thomas Bernhard, Ingeborg Bachmann e de poetas norte-americanos recentes.
Ainda que seja muito bem informada, a parte inicial do volume, uma espécie de história cultural da feitura do "Tractatus" e das "Investigações Filosóficas", é talvez a que exigirá mais investimento da autora ou de futuros pesquisadores, já que parecem ainda incompletos os modos pelos quais podem-se ler "poeticamente" os dois grandes livros (e, mais ainda, que alterações essa leitura provocaria nas estratégias de compreensão dos textos).
A partir daí, contudo, ela desenvolve uma longa cadeia de interrelações críticas fortes. No caso de Gertrude Stein [escritora americana, 1874-1946], por exemplo, que nunca encontrou Wittgenstein e pode nunca tê-lo lido, os paralelismos são impressionantes.

Jogos de ocultação
Para demonstrar a proximidade de ambos, Perloff analisa "Marry Nettie - Alright Make it a Series and Call it Marry Nettie" (Marry Nettie - Tudo bem, Faça Disso uma Seqüência e Chame-a de Marry Nettie).
Ela argumenta que o poema traz muito mais do que meras alusões ao futurista Marinetti (a começar, obviamente, pelo título), como seus comentadores costumam pensar. Trata-se de um quase-manifesto "antifuturista". Ali, por meio, entre outros recursos, de construções hiper-realistas, dos jogos de ocultação e de duplo sentido e da escolha absolutamente milimétrica das palavras usadas, com ênfase naquelas que Marinetti negara, como "conjunções, preposições, verbos auxiliares, advérbios e, especialmente, o temido pronome "eu'", que o italiano "censurava como um vestígio da "velha ideologia'", a autora discute como o poeta é, de um jeito que beira a crueldade, satirizado quase que a cada linha.
O crítico-escritor Guy Davenport afirma que, assim como Wittgenstein, "Stein não está interessada no absurdo da linguagem, mas nas implicações espantosas que podem ser obtidas de sua normalidade".
O que Perloff faz é transformar essa constatação em um método de investigação literária de alto rendimento nesse confronto entre perspectivas modernistas tão díspares.
Igualmente engenhosas são suas observações a respeito da noção de resistência no autor de "Watt" ("nos termos de Wittgenstein, os personagem de Beckett (...) sofrem do que poderíamos chamar de desordem do contexto") e das implicações éticas das frases inacabadas ou repetidas nos textos dos escritores austríacos do pós-guerra -estes já obsessiva e explicitamente influenciados por Wittgenstein, assim como os poetas norte-americanos dos últimos 20 ou 30 anos.
Trata-se de um estudo de óbvio interesse para qualquer um que tenha interesse pela literatura do século 20.


ADRIANO SCHWARTZ leciona literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

A ESCADA DE WITTGENSTEIN
Autora:
Marjorie Perloff
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini e Elisabeth Rocha Leite
Editora: Edusp (tel. 0/ xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 57 (306 págs.)


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