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+Livros
O drama civilizatório
Em tradução direta do russo, "Os Irmãos Karamázov"
é cindido pela mistura de gêneros e por projetos antagônicos de modernidade
RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os Irmãos Karamázov" -agora em
ótima tradução de
Paulo Bezerra-
foi publicado em
1880, um ano antes da morte
de Dostoiévski. Aos olhos do
Ocidente, a Rússia ainda era
uma "terra de ursos", e a expressão "literatura russa" ainda soava como algo inconcebível ou, no máximo, exótico.
Como que cientes disso, os
autores russos escreviam tendo em mente apenas o seu país.
Em 1900, Tchékhov não mostrou entusiasmo ao ver seus livros traduzidos na França, explicando que seus contos foram escritos para os russos.
Os escritores tinham em mira o rico debate em curso acerca do destino do país e essa pode ser a chave da vitalidade da
literatura criada na época e
também mais tarde.
Pois tal debate tinha canais
de expressão diversos dos conhecidos nos países ocidentais,
e a literatura era um dos canais
mais importantes.
Se os personagens de "Os Irmãos Karamázov" nos surgem
com um vigor exaltado e febril,
isso se deve menos aos abusos
melodramáticos do autor do
que ao caráter vital, para Dostoiévski e seus leitores, da polêmica subjacente ao romance.
Mas, como não raro acontece, as questões russas eram
menos russas do que os próprios russos supunham.
De um lado, o confronto entre os projetos da modernidade
liberal e de modernidades alternativas (como o historiador
Daniel Aarão Reis define a situação) não era uma condição
exclusiva da Rússia.
De outro lado, a abrangência
do esforço dos intelectuais imprimiu às suas polêmicas uma
força provocadora capaz de renovar o sentido das obras literárias russas em outros países,
mesmo depois que tais polêmicas já estavam esquecidas.
No caso de "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski deu expressão a um nacionalismo intensificado até um páthos místico. Em síntese: o camponês
russo era o portador da fé pura;
a autocracia russa era a concretização dos sentimentos desse
camponês; a religião ortodoxa
era a guardiã do cristianismo
genuíno; a Rússia era a potencial redentora espiritual da Europa, no papel de Terceira Roma (após as quedas de Roma e
de Bizâncio).
Claro, isso supõe o repúdio
do movimento revolucionário
socialista.
A ênfase de Dostoiévski nesse ponto, patente mais no narrador do que nos personagens
de "Os Irmãos Karamázov",
deu margem a que o crítico
George Steiner classificasse o
autor como "democrata".
Mas esse filtro ideológico,
que o crítico Joseph Frank
também impõe em suas análises, é seletivo demais para dar
conta do espectro das recusas
de Dostoiévski.
Trata-se, a rigor, da recusa da
modernidade ocidental em si.
O socialismo apenas faz parte
de um pacote, que inclui o capitalismo, a ciência, o catolicismo, a cidade, a razão separada
da fé, a igualdade da mulher, o
governo laico.
Ciência e religião
Vejamos como o monge Zozima, mentor de Aliocha Karamázov, pivô do romance, retrata o mundo moderno.
"Eles têm a ciência e na ciência só aquilo que está sujeito
aos sentidos. Já o mundo do espírito foi rejeitado inteiramente, expulso com certo triunfo,
até com ódio. O mundo proclamou a liberdade e eis o que vemos dessa liberdade: só escravidão e suicídio! [...] Vivem apenas para invejar uns aos outros,
para a luxúria, a soberba. Dar
jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados
eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida [...] e se matam,
se não conseguem saciá-la."
Não é à toa que este seja o romance de Dostoiévski que mais
se afasta dos modelos literários
ocidentais. O enredo se limita à
disputa entre o pai e um dos irmãos Karamázov pela afeição
da mesma mulher, em meio a
presságios de um parricídio.
Unem-se a isso relatos extraídos do noticiário, de autos
judiciais, além de narrativas e
prédicas cunhadas nos moldes
dos textos bíblicos e das vidas
de santos.
Essas formas pré-modernas
corporificam, na estrutura do
romance, a posição de resistência do autor diante da pressão
modernizadora.
O teórico russo Mikhail
Bakhtin apontou Dostoiévski
como o expoente do romance
polifônico, no qual diversas vozes se relacionam em igualdade, e não sujeitas a uma voz
central.
No caso de "Os Irmãos Karamázov", a tese se mostra inviável. De fato, os personagens falam muito e com grande alarde.
Na maior parte, a estrutura do
livro é antes dramática do que
narrativa.
Porém todas as vozes estão
subordinadas à voz do monge
Zozima, às reações do seu discípulo Aliocha Karamázov e aos
ecos dessa voz em diversos personagens e situações.
Esse é o centro de autoridade
do romance, que controla o alcance das demais vozes, em especial a do intelectual ateu Ivan
Karamázov.
Face pouco visível
Contudo não é necessária a
teoria de Bakhtin para rejeitarmos a redução do romance a
um panfleto reacionário.
A despeito de Dostoiévski, o
páthos do livro, mais do que as
suas intenções, questiona a
nossa aceitação de um padrão
de civilização como algo natural e inevitável.
O ângulo histórico e geográfico de onde Dostoiévski fez
questão de focalizar a expansão
capitalista -a portadora de tal
padrão, na época- põe em relevo uma face pouco visível desse
processo.
RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "Contos de Pedro" (Cia. das Letras).
OS IRMÃOS KARAMÁZOV
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 98 (1.040 págs.)
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