São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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O economista Celso Furtado alerta sobre a dolarização da economia brasileira e a perda da autonomia política
Que moratória?

Lula Marques/Folha Imagem
o presidente FHC e o então embaixador na OEA Itamar Franco, em Nova York, em julho de 1997


CELSO FURTADO
especial para a Folha

A crise brasileira não surpreendeu ninguém. Foi a repetição de um espetáculo de desgoverno com que estão familiarizados os estudiosos da história do país. O problema de fundo tem sido sempre o mesmo: incapacidade da classe dirigente para enfrentar problemas que são a grande concentração da renda e da riqueza e que se traduzem, de um lado, em excessiva propensão a consumir e a importar e, de outro, em baixa taxa de poupança. Existe uma contradição entre o modesto nível de desenvolvimento do sistema produtivo e os padrões de consumo das classes afluentes aos quais aspiram as classes médias.
O crescimento econômico, que tem sido considerável nos últimos decênios, engendrou uma sociedade com graves distorções e sujeita a crises intermitentes de balança de pagamentos. Essas considerações são essenciais para compreender a inflação crônica que caracterizou a economia brasileira tanto nas fases de crescimento como nas de recessão.
A estratégia de estabilização adotada pelo governo no último quinquênio ignorou esplendidamente essa realidade. Sem dúvida, a instabilidade vinha reduzindo a governabilidade do país desde os anos 70, quando mudou a conjuntura internacional. O primeiro passo da nova política consistiu em tirar proveito do aumento considerável de liquidez internacional. Deu-se mais elasticidade à oferta interna de bens de consumo e inverteu-se a posição do balanço comercial, que, de positivo, passou a ser negativo. Isso favoreceu a massa de consumidores, o que produziu dividendos políticos consideráveis.
Mas, como era de se prever, logo se manifestou o desequilíbrio na balança de pagamentos. À diferença do ocorrido no passado, quando se enfrentava o desequilíbrio manipulando o câmbio, privilegiou-se a estabilidade de preços facilitando o endividamento externo de curto prazo e elevando de forma exorbitante as taxas de juros. A política de juros altos provocou uma redução dos investimentos produtivos e uma hipertrofia dos investimentos improdutivos. O país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida que se endivida no exterior para financiar investimentos especulativos e alienar o patrimônio nacional. A recessão tornou-se inevitável.
Não seria o caso de culpar os formuladores do plano de estabilização, que haviam recomendado uma política compensatória fiscal, a qual engendraria uma elevação compulsória da poupança. É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional, o que explica que não se haja tido em conta as peculiaridades do processo legislativo brasileiro, o qual está longe de ter a racionalidade ao gosto dos tecnocratas. Por outro lado, os dividendos políticos produzidos pela estabilização dos preços inebriaram os dirigentes do Poder Executivo, cujo comando se dispôs a aceitar qualquer risco que lhe garantisse a reeleição.
Assim, já ninguém tem dúvida de que a economia brasileira está fadada a entrar em moratória. Mais uma vez evidencia-se que as instituições internacionais são incapazes de mobilizar os recursos requeridos para evitar rupturas de pagamentos nos chamados países emergentes. E os parcos recursos que intermedeiam são aplicados a taxas de juros que pouco alívio trazem aos devedores. Os recursos postos à disposição do Brasil implicaram aprofundar o endividamento do país, particularmente se se tem em conta que as condicionalidades tornaram inevitável a recessão. A estratégia do FMI parece ser prolongar a recessão até que o paciente aceite a adoção de um sistema de "currency board", ou seja, a plena dolarização, à semelhança do ocorrido na Argentina. Isto significa nada menos que compartilhar com o sistema financeiro internacional o governo do país. Diante dessa perspectiva temos que reconhecer que a moratória é um mal menor, pois evita a abdicação da responsabilidade de se autogovernar.
Mas a moratória não deve acontecer como uma catástrofe. Deve ser meticulosamente programada no plano externo como no interno. Os aliados potenciais internos são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Ainda no plano interno, caberia inspirar-se no capítulo 11 do "Código de Bancarrota dos Estados Unidos", conforme recomenda a última edição do "Trade and Development Report" da UNCTAD, esse órgão das Nações Unidas atualmente dirigido por um brasileiro de excepcional competência, que é o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero. No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de restaurar a disciplina cambial e a dos fluxos de capital.
Persistir na política atual de endividamento externo é aceitar o risco de uma moratória catastrófica, que parece ser o objetivo dos que se empenham em liquidar o que resta do patrimônio público (leia-se Petrobrás) e ceder às empresas transnacionais o comando do sistema monetário (leia-se dolarização).


Celso Furtado é economista. Foi ministro do Planejamento (entre 1962 e 1963) do governo João Goulart e ministro da Cultura entre 1986 e 1988 do governo José Sarney. É autor de mais de 30 livros, entre eles, "Formação Econômica do Brasil" e "Teoria Política do Desenvolvimento Econômico".



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