São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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CAINDO NA REAL
Exercício de inculpação coletiva no Brasil esconde fuga das obrigações individuais
Crise culpa e responsabilidade

GABRIEL COHN
especial para a Folha

Para exprimir a idéia de crise os chineses usam uma composição de dois ideogramas. Um significa perigo e o outro representa oportunidade. Não me perguntem se é assim mesmo; só sei que essa suposta construção chinesa é invocada com frequência como uma bandeira para elevar o moral dos que se assustam à mera menção da palavra crise. Afinal, se ao perigo se associa a oportunidade, por que recuar? Passa-se assim sem escalas da imagem de algum velho mandarim à celebração dos intrépidos enfrentadores de riscos. Mas, admitindo-se que essa concepção de crise existisse na cultura chinesa tradicional, será que ela ainda teria algo a nos dizer? A questão toda está na palavra "tradicional", que acabo de usar. Ela assinala que uma concepção desse tipo faz sentido num mundo governado por ritmos lentos, cortados aqui e ali por situações excepcionais, em que as possibilidades da perda de tudo ou do ganho sem precedentes como que se equilibram.
Por expressiva que fosse, essa imagem, que evoca o mundo do comércio mais do que da expansão produtiva, só faz sentido numa cadência temporal que, medida pelos padrões atuais, é muito lenta. Aplica-se mal, portanto, em todo o lugar em que se desenvolveu o capitalismo industrial, até porque este é inseparável da aceleração de uma espiral histórica de condições críticas ligadas à ruptura e à criação do novo.
Mas o que decisivamente contribui para esvaziar essa bela imagem é algo mais fundo do que uma concepção particular de crise. É o esvaziamento (talvez fosse melhor dizer a sobrecarga) da própria idéia de crise. É que a própria aceleração crescente das temporalidades, a começar pela dos processos econômicos, converteu a crise em norma ao invés de condição excepcional. É significativo que justamente neste ponto ganhe circulação uma nova imagem com ressonâncias chinesas. Trata-se da idéia de "janela de oportunidade", que evoca mais os mandarins Ming do que os analistas de mercado de Soros. Nela combinam-se de modo exemplar a visão contemplativa tradicional com a alusão tipo "science fiction" ao momento exato para passar a uma outra dimensão. Essa estranha mescla faz sentido se considerarmos que hoje, embora numa outra escala temporal e com outra experiência histórica, o espírito da época também se volta mais para a riqueza pura e simples, para os fluxos financeiros, do que para os processos produtivos (de passagem, pode-se extrair uma advertência destas observações soltas: olho nos chineses, vocês ainda não viram nada!).
Nessas novas condições o risco e a oportunidade se entrelaçam tão estreitamente e com intervalos tão curtos que só há um modo de manter-se à tona para aqueles que pretendem beneficiar-se dessa nova dinâmica histórica espasmódica, sempre à beira da fibrilação. É preciso manter-se em movimento, nenhuma peça pode ficar imóvel no tabuleiro das economias. E esse tabuleiro assumiu escala planetária. Os pobres intérpretes do novo Olimpo (às vezes alçados à condição de seus mitólogos) esfalfam-se para ajustar seu sofisticado arsenal analítico às mudanças de humor de um pequeno número de entidades, cuja capacidade de combinar desígnios momentâneos inteiramente plausíveis com o mais completo capricho nos gestos humilharia o velho Júpiter. É que esse novo Olimpo pouco tem a ver com aquele sossegado repouso dos deuses. Seus habitantes, esbaforidos, mais parecem o coelho sempre atrasado de Alice do que o majestoso Zeus. Isso dificulta a tarefa dos intérpretes e dos novos moralistas, pagos para recomendar linhas de ação.
Quando os economistas perdem o fôlego, entram em cena os seus primos retóricos, que invocam o acidente no lugar do destino, o arbítrio no lugar da razão, ou, numa linguagem desqualificadora, a política no lugar da economia. É assim que uma bravata inconsequente de um pastor montanhês pode custar-lhe o estima de ter provocado a ira dos deuses, enquanto os verdadeiros trapalhões se escondem em algum tempo distante até que a tempestade se desloque para outras paragens. Nesse cenário a referência à crise não serve para explicar nem o suposto senso de oportunidade de uns nem o alegado fracasso de outros.

O prejuízo é para todos
Mas voltemos ao universo greco-romano (devidamente misturado ao judaico-cristão) mais familiar a nós. Nele a idéia de crise está ligada à de ruptura, à cisão. Sua figura básica não é tanto o rentista, que aproveita oportunidades, quanto o empreendedor, que as cria. No limite é o grande estadista, que no momento decisivo sabe estabelecer os limites e as condições do poder soberano. Está em jogo a capacidade de decidir, de fazer o corte entre a situação dada e um novo estado de coisas. Aqui a grande questão que se coloca é de natureza política, no sentido pleno e não amesquinhado do termo. Trata-se de enfrentar o desafio da responsabilidade e de resistir à tentação preguiçosa da busca dos culpáveis.
Entretanto, o que vimos nos últimos dias é bem diferente. Fomos testemunhas de condutas e procedimentos que acabaram por trazer à tona de maneira exemplar traços fundos da nossa cultura política (ou do modo brasileiro de ser cidadão). Trata-se do cultivo da idéia da culpa. Mais exatamente, trata-se do exercício da inculpação. E esta, pelo seu impulso meramente punitivo (mesmo que a punição se reduza à execração simbólica), é o exato oposto da responsabilidade, até porque sua função consiste precisamente em livrar-se dela. Mas essa conduta de busca dos culpáveis encontra seu complemento indispensável em outro aspecto fundamental dessa mesma cultura política.
Trata-se da orientação para a "socialização das perdas", para adotar um termo que Celso Furtado usava para outras questões (e, diga-se de passagem, em outro contexto histórico, quando as referências à crise ganhavam sentido contra o pano de fundo vigoroso de planos de desenvolvimento e não ocorreria a ninguém a idéia de "gerir a crise"). Sem este segundo passo a coisa não funcionaria. Consiste ele em atribuir a todos os desprevenidos o custo do que foi feito, numa distribuição tanto mais generosa quanto o que se distribui são prejuízos. Esse impulso distributivista perverso atravessa a vida dos cidadãos em todos os níveis. Vai desde o pequeno gesto supostamente privado de deixar entulho na rua para ser distribuído na forma de pó pelo bairro todo até o grande gesto da imposição pelo poder público dos custos da má gestão de recursos federais ao conjunto dos contribuintes.
Então ficamos assim: sempre que possível aponta-se um culpado, real ou fictício, porque não é isto que importa; e as consequências do que foi feito serão distribuídas por todos os que não conseguirem safar-se em tempo. Essa é a lógica da coisa, a maneira brasileira de lidar com aquilo que em algum momento mereceu o nome de crise. E, pelo que se vê, tudo indica que dela não têm como escapar nem mesmo os mais sofisticados intelectuais, treinados na análise da cultura e da política e não jejunos em economia, quando estão no poder nacional -ou naquilo que em algum momento mereceu o nome de poder nacional.


Gabriel Cohn é professor de ciência política na USP e editor da revista "Lua Nova", do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).



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