São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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Alheias à sociedade e fiéis apenas à própria classe, são as elites que travam progresso do país
De volta ao 3º mundo

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Chegar ao Primeiro Mundo está no futuro do Brasil há tempos. Nos anos 60 e 70 só parecia faltar, para isso, que o Brasil se tornasse uma superpotência. Era, aliás, o que Nixon prometia à ditadura brasileira. E ainda há quem espere que uma bomba atômica nacional faça o milagre acontecer.
Mais tarde a democracia poderia ser nosso tíquete. Mas houve a tragicomédia de Tancredo, o estilo tupiniquim do paletó de Sarney e -golpe letal- uma inflação que rivalizava em maluqueira com os remédios inventados para combatê-la. O país talvez fosse democrático, mas não era sério o suficiente para integrar o Primeiro Mundo.
Collor foi eleito porque se parecia com o Primeiro Mundo. Infelizmente, a verdade estava com as gravatas dele e de seus amigos colloridos: eram de marca Hermès -gravatas de luxo comercializadas nos aeroportos e nos aviões. A nova classe dirigente, como prova de seu acesso ao Primeiro Mundo, exibia de fato gostos de "free shop". Nestes últimos anos, enfim, houve o sonho de uma moeda verdadeira, que desse para trocar em qualquer banco do mundo. O real seria o passaporte da seriedade enfim conquistada. Agora, parece que, com a desvalorização da moeda, de novo o Primeiro Mundo escapa de nossas mãos. Mas por quê?
Os "importados" se tornarão mais caros. Quem sabe, proibitivos para a classe aspirante-emergente. A elite-duty-free poderá sofrer. Tudo isso não é nada: não é a simples pobreza que nos condena ao Terceiro Mundo. Nem mesmo a instabilidade monetária.
Subjetivamente, o Terceiro Mundo é antes de mais nada um estado de espírito. Ele é um clube do qual se faz automaticamente parte desde que se deseje sair dele. Somos aceitos desde que aspiremos a ser excluídos. Ora, este estado de espírito não circunscreve uma região. Todo o mundo aspira a crescer e se enriquecer. Além disso, a dita globalização uniformizou mundialmente os modelos de riqueza a serem imitados. Também a divisão de trabalho, riquezas ou de tipo de capital apontada pela teoria da dependência não existe só entre nações ou continentes. Em outras palavras, é legítimo perguntar: por que seríamos Terceiro Mundo? No que seríamos diferentes de qualquer aglomeração de pobres dentro do Primeiro Mundo?
Comparemos: esta década nos EUA acaba com um aumento notável das diferenças entre pobres e ricos. Os pobres não ficaram mais pobres, ao contrário: sua renda média aumentou um pouco, mas aumentou muito mais a diferença entre pobres e ricos, pois estes enriqueceram inusitadamente. Não haveria motivos para queixas, já que todos melhoraram um pouco. Mas não é assim: com a distância entre pobres e ricos, aumenta naturalmente a insatisfação dos pobres. A dignidade social, em nossa cultura, é comparativa.
No que seríamos, então, diferentes de um bairro pobre de Nova York ou Miami? O problema é que nos EUA esta também foi a década da diminuição de crimes violentos, da volta do sentimento de segurança em quadros urbanos considerados como perdidos. E isso devido a alguma milagrosa reconstituição dos mecanismos comunitários.
Por mais que o sistema prefira diferenças econômicas extremas, ele não deve -salvo acidente- quebrar a consistência da comunidade. O segredo para que a virulência da competição social não dissolva a comunidade é manter aberta a mobilidade social e defender a dignidade de todos. Nesta década, aumentou significativamente, nos EUA, o número de famílias morando em casa própria.
Continua assim uma política social de inclusão que é a invenção do capitalismo americano desde o fordismo. Um maior número de pessoas com casa própria significa um maior número de pessoas interessadas em cada momento da vida concreta de seu bairro. Também a compra de uma casa é a maneira mais simples de acumular um bem transmissível por herança, e a constituição deste patrimônio muda a relação entre pais e crianças.
Por isso não somos um bairro pobre de Nova York ou de Miami, porque uma preocupação comunitária não corrige nossa miséria. Talvez seja esta, aliás, uma possível definição objetiva do Terceiro Mundo para o qual voltamos hoje (ou do qual de fato nunca saímos): o Terceiro Mundo oferece todas as asperezas da competição social do Primeiro, mas sem corretivo comunitário.
É este o destino dos países cujas elites não conseguiram expressar um projeto nacional. Elas ficaram como as aristocracias do Antigo Regime (ou, em nosso caso, coloniais e escravagistas), ou seja, devendo fidelidade só a sua própria classe e sem compromisso com a nação. Elas são portanto, literalmente, "duty free": não pagam imposto para a comunidade. A ausência de um projeto nacional das elites deixa assim o país, por um lado, entre uma auto-imagem ufanista e vazia -em que a melhor idéia de comunidade é um grêmio esportivo-, e, por outro lado, uma dependência radical, pois as elites não ajudam nem mesmo a alimentar invejas e sonhos de sucesso. Elas não constituem nem sequer um ideário nacional. São elites substitutas, só apontam para o Norte ou para o Leste.
O Terceiro Mundo é isso: do fundo do Jardim Ângela ou no meio de Santo Amaro não poder nem se comparar com uma elite local, mas ter que sonhar com ser, sei lá, advogado em Dallas.
P.S.: Muitos, contemplando os fatos de hoje, preferem pensar que nossa corrida para o Primeiro Mundo seja uma obrigação servil imposta pelo Primeiro. Isso por causa da pretensa "centralidade" do Brasil, cuja queda levaria consigo toda a América Latina. O capitalismo é sem dúvida uma dependência psíquica: a gente não pode parar de desejar riquezas e mercadorias. No mais, nem mesmo Wall Street parece se importar muito com nosso estatuto de Terceiro ou Primeiro Mundo.
Surge assim a dúvida de que continuar atribuindo nossas dificuldades aos lobos de fora seja mais uma maneira de servir àquelas elites sem compromisso nacional que são a trava de nosso desenvolvimento. Ou seja, um modo de nos fazer esquecer que os responsáveis por nosso terceiro-mundismo estão, não digo aqui entre nós, mas perto: circulam, empurrando seus carrinhos, preocupados com o novo câmbio, no "free shop" do aeroporto de Cumbica, em Guarulhos.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com



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