São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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Crise induzida pelo governo tem por objetivo proceder à violência institucional
Nostalgia do silêncio

WANDERLEY GUILHERME DOS SANTOS
especial para a Folha

Às vésperas da votação da emenda constitucional sobre canalizações de gás, pelos idos de 1995, autoridades governamentais anunciaram não haver alternativa e que da aprovação da emenda dependiam a saúde da moeda e, no médio prazo, o emprego e o crescimento econômico do país. Era falso. Agora, entre os dias 12 e 15 de janeiro, praticamente as mesmas autoridades repetiram palavra a palavra o que disseram há quatro anos, acrescentando um capítulo sobre juros, para justificar o terremoto financeiro promovido pelos templários da equipe econômica. É quase toda a verdade. No intervalo, aplicou-se bem-sucedida estratégia de terrorismo econômico, gerando raro exemplo de profecia que se autocumpre: hoje, sob a atual liderança, o país é escravo do que lhe ditam os credores.
Por cerca de cinco anos os carcereiros da República mantiveram-na sob sítio psicológico, infligindo exacerbada tortura emocional na população, a pretexto de iminente desordem econômico-financeira e veloz retorno da inflação, a menos que o Congresso se curvasse aos caprichos dos pedantes da competência.
Em nome desta, e do repetido engodo de ausência de opções, sequestraram-se todas as alternativas de política econômica, alienou-se quase todo o patrimônio público nacional e propagou-se a mais sistemática e desmoralizante ofensiva contra a cultura cívica do país. Por muito menos, em qualquer democracia robusta, gabinetes teriam caído, presidentes impedidos e alguns ministros já estariam provavelmente encarcerados. Aqui, usufruem do privilégio tirânico de arbitrar a intensidade do suplício a que a nação será submetida.
Depois de 15 emendas constitucionais aprovadas sob chantagem político-emocional, centenas de medidas provisórias e altiva parvoíce, em que consiste a profecia autocumprida? Na real ausência de alternativa à desvalorização abrupta da moeda e na efetiva subordinação das decisões nacionais à arbitragem internacional, difundidas como imperativos da globalização, exatamente por conta da mesma promessa de redução de juros, controle da inflação e retomada, em breve, do crescimento econômico. Seria patético, não fosse atentatório aos bons costumes.
A política fundamentalista instaurou-se e vem implementando radical mecanismo de decadência auto-sustentada, caracterizada por crescentes dívida e desemprego, a anemia da atividade econômica. Em justos dois dias, 13 e 14 de janeiro, a dívida externa do país aumentou em 18%, passando de aproximadamente US$ 230 bilhões a US$ 272 bilhões, enquanto a dívida mobiliária interna cresceu de US$ 66 bilhões para US$ 78 bilhões. A perspectiva é de substancial recessão econômica, em 1999, além de escalada nos índices de desemprego e intensificação de todas as catástrofes que vêm ocorrendo há dois anos, indiferentes aos desmentidos oficiais, endossados pela mídia.
Não obstante, ao longo da madrugada do dia 13 e todo o dia e a noite de 14 de janeiro (quarta e quinta-feira), organizou-se o mais inacreditável desfile de imposturas nas principais emissoras de televisão, sucedendo-se contorcionista após contorcionista, a demonstrar a racionalidade e impecável técnica do que ocorrera com a política cambial nas precedentes 48 horas -que importam as anteriores declarações em contrário de porta-vozes, altos funcionários, ministros e até mesmo do presidente da República? Quem se dá conta de que um funcionário subalterno, de alto escalão, mas subalterno, interrompeu duas vezes o descanso do senhor presidente, durante a semana, e convocou-o ao Palácio? O presidente foi.
Achando pouco, os participantes do desfile de economistas foram unânimes, como sempre são na antevéspera de serem contrariados pelos fatos, em apresentar o inteligentíssimo diagnóstico de que a origem da turbulência mundial (que, de fato, resumiu-se a mudanças de posição entre especuladores) encontra-se na sensata e tempestiva declaração do governador Itamar Franco de que o Estado de Minas Gerais não conseguirá honrar os termos da negociação de suas dívidas. Não importa que isso seja verdade em relação a Minas e à maioria dos demais Estados, agora, e também em relação aos poucos adimplentes, em breve. Segundo os magos televisivos, se ninguém mencionasse o assunto não haveria o problema.
Pior que o diagnóstico, o prognóstico. Tudo ficará bem se o Congresso aprovar novo aumento de impostos, tendo por base os funcionários públicos, ativos e inativos. Isto feito, as Bolsas de Frankfurt e de Tóquio se acalmarão. Serão, por acaso, insanos, os nossos economistas? -Não, são ávidos de riquezas, poder e inimigos jurados de democracia. Há um problema genético na formação econômica que a inclina, siderada, e ao contrário dos juristas, ao autoritarismo. Basta acompanhar o desprezo com que se referem às instituições representativas e se perceberá o fenômeno.
Para a maioria de nossos atuais ou virtuais membros de qualquer equipe econômica, mercados e Banco Central independente são variáveis suficientes para explicar a saúde econômica e política dos países de Primeiro Mundo. Claro, os períodos de desastre que vez por outra enfrentam são sempre consequência da intromissão da política nos mercados. Não se dão conta, ao reverso, da brutal interferência na vida política do país que patrocinaram em nome de desvairado fundamentalismo.
O governo obteve espetacular sucesso em sua trajetória de encurralar o país. Do Congresso, hoje, obterá tudo. Se não for obstado pelos governadores, continuará em sua marcha para a completa centralização econômica, além de reduzir drasticamente a concorrência política mediante reformas partidárias e eleitorais, em tramitação, com o apoio suicida da classe política.
Fique claro, essa crise longamente induzida pelo governo tem por objetivo proceder a uma violência institucional, obedecendo formalisticamente aos requisitos da lei. Chamem do que quiserem, de paranóia, catastrofismo ou irresponsabilidade (está na moda), mas está em andamento um golpe de Estado não-Fujimoriano, que produzirá contudo efeitos similares, com a lamentável complacência da grande imprensa. Talvez desejem, imprensa e acadêmicos subservientes, outros 20 anos de silêncio.


Wanderley Guilherme dos Santos é cientista político, professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e autor de "Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática" (Rocco) e "Ordem Burguesa e Liberalismo Político" (Duas Cidades), entre outros.



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