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BRASIL 500 D.C.
Mundo do pragmatismo triunfante pode destruir o equilíbrio educacional entre a formação para uma vida plena e a formação para o trabalho
Os deficientes cívicos
MILTON SANTOS
especial para a Folha
Em tempos de globalização, a
discussão sobre os objetivos da
educação é fundamental para a definição do modelo de país em que
viverão as próximas gerações.
Em cada sociedade, a educação
deve ser concebida para atender,
ao mesmo tempo, ao interesse social e ao interesse dos indivíduos.
É da combinação desses interesses
que emergem os seus princípios
fundamentais e são estes que devem nortear a elaboração dos conteúdos do ensino, as práticas pedagógicas e a relação da escola
com a comunidade e com o mundo.
O interesse social se inspira no
papel que a educação deve jogar
na manutenção da identidade nacional, na idéia de sucessão das gerações e de continuidade da nação, na vontade de progresso e na
preservação da cultura. O interesse individual se revela pela parte
que é devida à educação na construção da pessoa, em sua inserção
afetiva e intelectual, na sua promoção pelo trabalho, levando o
indivíduo a uma realização plena e
a um enriquecimento permanente. Juntos, o interesse social e o interesse individual da educação devem também constituir a garantia
de que a dinâmica social não será
excludente.
Em todos os casos a sociedade
será sempre tomada como um referente, e, como ela é sempre um
processo e está sempre mudando,
o contexto histórico acaba por ser
determinante dos conteúdos da
educação e da ênfase a atribuir aos
seus diversos aspectos, mesmo se
os princípios fundamentais permanecem intocados ao longo do
tempo. Foi dessa forma que se deu
a evolução da idéia e da prática da
educação durante os últimos séculos, paralelamente à busca de formas de convivência civilizada, alicerçadas em uma solidariedade
social cada vez mais sofisticada.
As modalidades sucessivas da
democracia como regime político,
social e econômico levaram, no
após guerra, à social-democracia.
A história da civilização se confundiria com a busca, sempre renovada, e o encontro das formas
práticas de atingir aqueles mencionados princípios fundamentais
da educação, sempre a partir de
uma visão filosófica e abrangente
do mundo.
Esse esforço, para o qual contribuíram filósofos, pedagogos e homens de Estado, acaba por erigir
como pilares centrais do sistema
educacional: o ensino universal
(isto é, concebido para atingir a
todas as pessoas), igualitário (como garantia de que a educação
contribua a eliminar desigualdades), progressista (desencorajando preconceitos e assegurando
uma visão de futuro). Daí, os postulados indispensáveis de um ensino público, gratuito e leigo (esta
última palavra sendo usada como
sinônimo de ausência de visões
particularistas e segmentadas do
mundo) e, dessa forma, uma escola apta a formar concomitantemente cidadãos integrais e indivíduos fortes. Aliás, foram essas as
bases da educação republicana, na
França e em outros países europeus, baseada na noção de solidariedade social exercida coletivamente como um anteparo, social e
juridicamente estabelecido, às
tentações da barbárie.
A globalização, como agora se
manifesta em todas as partes do
planeta, funda-se em novos sistemas de referência, em que noções
clássicas, como a democracia, a
república, a cidadania, a individualidade forte, constituem matéria predileta do marketing político, mas, graças a um jogo de espelhos, apenas comparecem como
retórica, enquanto são outros os
valores da nova ética, fundada
num discurso enganoso, mas
avassalador.
Em tais circunstâncias, a idéia de
emulação é compulsoriamente
substituída pela prática da competitividade, o individualismo como
regra de ação erige o egoísmo como comportamento quase obrigatório, e a lei do interesse sem contrapartida moral supõe como corolário a fratura social e o esquecimento da solidariedade. O mundo
do pragmatismo triunfante é o
mesmo mundo do "salve-se
quem puder", do "vale-tudo",
justificados pela busca apressada
de resultados cada vez mais autocentrados, por meio de caminhos
sempre mais estreitos, levando ao
amesquinhamento dos objetivos,
por meio da pobreza das metas e
da ausência de finalidades. O projeto educacional atualmente em
marcha é tributário dessas lógicas
perversas. Para isso, sem dúvida,
contribuem: a combinação atual
entre a violência do dinheiro e a
violência da informação, associadas na produção de uma visão embaralhada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa
cegueira radical que reforça as
tendências à aceitação de uma
existência instrumentalizada.
É nesse campo de forças e a partir dessa caldo de cultura que se
originam as novas propostas para
a educação, as quais poderíamos
resumir dizendo que resultam da
ruptura do equilíbrio, antes existente, entre uma formação para a
vida plena, com a busca do saber
filosófico, e uma formação para o
trabalho, com a busca do saber
prático.
Esse equilíbrio, agora rompido,
constituía a garantia da renovação
das possibilidades de existência de
indivíduos fortes e de cidadãos íntegros, ao mesmo tempo em que
se preparavam as pessoas para o
mercado. Hoje, sob o pretexto de
que é preciso formar os estudantes
para obter um lugar num mercado
de trabalho afunilado, o saber prático tende a ocupar todo o espaço
da escola, enquanto o saber filosófico é considerado como residual
ou mesmo desnecessário, uma
prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade. Corremos o risco de ver o ensino reduzido a um simples processo de
treinamento, a uma instrumentalização das pessoas, a um aprendizado que se exaure precocemente
ao sabor das mudanças rápidas e
brutais das formas técnicas e organizacionais do trabalho exigidas
por uma implacável competitividade.
Daí, a difusão acelerada de propostas que levam a uma profissionalização precoce, à fragmentação
da formação e à educação oferecida segundo diferentes níveis de
qualidade, situação em que a privatização do processo educativo
pode constituir um modelo ideal
para assegurar a anulação das conquistas sociais dos últimos séculos. A escola deixará de ser o lugar
de formação de verdadeiros cidadãos e tornar-se-á um celeiro de
deficientes cívicos.
É a própria realidade da globalização -tal como praticada atualmente- que está no centro desse
debate, porque com ela se impuseram idéias sobre o que deve ser o
destino dos povos, mediante definições ideológicas sobre o crescimento da economia, como a chamada competitividade entre os
países. As propostas vigentes para
a educação são uma consequência, justificando a decisão de adaptá-la para que se torne ainda mais
instrumental à aceleração do processo globalitário. O debate deve
ser retomado pela raiz, levando a
educação a reassumir aqueles
princípios fundamentais com que
a civilização assegurou a sua evolução nos últimos séculos -os
ideais de universalidade, igualdade e progresso-, de modo que ela
possa contribuir para a construção de uma globalização mais humana, em vez de aceitarmos que a
globalização perversa, tal como
agora se verifica, comprometa o
processo de formação das novas
gerações.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da USP e autor, entre outros, de "A Natureza do Espaço" (Ed. Hucitec).
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