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LIVROS
Sucesso europeu, "Alucinando Foucault' é o romance de
estréia da antilhana Patricia Duncker
As exigências do sublime
JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha
Este romance é um desses que
reúnem mais coisas -e de tal natureza- do que seria razoável ele
suportar. Vem daí sua feição de jogo que por força teve que ser interrompido no limite, de ventura que
deve se frustrar, de paixão sem futuro. A antilhana Patricia Duncker
fez de seu romance de estréia (já
bastante premiado na Europa) um
desses belos "livros-falésia", balançando sobre o abismo que eles
próprios abriram.
Primeiro ele reúne uma certa
disposição de cultura que haverá
quem suponha própria da "faixa
literária gay", do romance homossexual (supondo que tal coisa
exista), mas que é mesmo a do trato com o sublime. É ele que alimenta a relação entre o escritor-personagem Paul Michel, um
magnífico romancista desaparecido, e o filósofo Michel Foucault
(1926-1984), presente no livro como uma "persona", quase como
uma abrupta paisagem intelectual.
Envolvidos ambos nos desafiadores "cuidados de si", que incluiriam a própria opção radical,
"gauchiste", proclamada, dos
dois pela homossexualidade, eles
se espelham, se alucinam e se comem por meio dos seus livros,
sem nunca terem se falado, um representando para o outro esse
"inacessível, inapropriável bem
supremo" de que falava Freud. É
isso: a relação do leitor com o autor que ele ama é uma relação sem
futuro. Essa paixão sem promessa
de redenção é outro dos temas que
entram na composição do romance.
É essa paixão sem futuro que
lança o narrador do romance, um
estudante inglês de literatura, até
então dobrado burocraticamente
em cima da sua tese sobre Paul Michel, numa sala de Cambridge, na
busca do escritor, tão logo o sabe
vivo e internado no hospital Sainte-Anne, em Paris. Quem lhe revela o paradeiro do escritor é uma
germanista meio "badermeinhoffiana", que escreve cartas apaixonadas e sempre extremas para
Schiller (esse "schillerismo fora
de lugar" é outro esplêndido tema
reunido no livro). Na sua infância,
durante umas férias no litoral, ela
teria compartilhado com Paul Michel um pouco daquele bem supremo de que ninguém se apropria. Ele é que alimenta seu propósito de salvar o escritor. Como se
percebe, até num romance de prosa econômica como este, dedica-se
um certo regime invisível de capa
e espada às paixões. O sublime parece exigir isso.
Depois de encontrar Paul Michel, com um diagnóstico de todo
tamanho de esquizofrenia paranóide e protocolos de segurança
apertadíssimos, o narrador consegue livrá-lo da reclusão absoluta.
Eles se lançam então numa escapada solar, fraterna e erótica pelo
sul da França, ao fim da qual o leitor inglês encontra o amor de Paul
Michel e, este, a morte estraçalhante nas garras de uma coruja
que se lança contra o pára-brisas
do seu Citroën. Nessa espécie de
serviço de correio entre cumes que
é a literatura não dá muito para
contar com sobreviventes.
Melhor do que dizer que este é
um romance que reúne coisas tão
difíceis e escarpadas que ele mesmo talvez não possa suportar é dizer que este livro sobre a paixão
sem futuro do leitor e sobre as formas também meio de "falésia"
do amor sublime reúne coisas que
só a literatura pode suportar.
A OBRA
Alucinando Foucault - Patricia Dunker. Tradução de Duda
Machado. Ed. 34 (r. Hungria,
592, CEP 01455-000, SP, tel.
011/210-9478). 192 págs. R$
22,00.
José Maria Cançado é autor de "Os Sapatos de
Orfeu", biografia de Carlos Drummond de Andrade.
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