São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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LIVROS
Sucesso europeu, "Alucinando Foucault' é o romance de estréia da antilhana Patricia Duncker
As exigências do sublime

JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha

Este romance é um desses que reúnem mais coisas -e de tal natureza- do que seria razoável ele suportar. Vem daí sua feição de jogo que por força teve que ser interrompido no limite, de ventura que deve se frustrar, de paixão sem futuro. A antilhana Patricia Duncker fez de seu romance de estréia (já bastante premiado na Europa) um desses belos "livros-falésia", balançando sobre o abismo que eles próprios abriram.
Primeiro ele reúne uma certa disposição de cultura que haverá quem suponha própria da "faixa literária gay", do romance homossexual (supondo que tal coisa exista), mas que é mesmo a do trato com o sublime. É ele que alimenta a relação entre o escritor-personagem Paul Michel, um magnífico romancista desaparecido, e o filósofo Michel Foucault (1926-1984), presente no livro como uma "persona", quase como uma abrupta paisagem intelectual.
Envolvidos ambos nos desafiadores "cuidados de si", que incluiriam a própria opção radical, "gauchiste", proclamada, dos dois pela homossexualidade, eles se espelham, se alucinam e se comem por meio dos seus livros, sem nunca terem se falado, um representando para o outro esse "inacessível, inapropriável bem supremo" de que falava Freud. É isso: a relação do leitor com o autor que ele ama é uma relação sem futuro. Essa paixão sem promessa de redenção é outro dos temas que entram na composição do romance.
É essa paixão sem futuro que lança o narrador do romance, um estudante inglês de literatura, até então dobrado burocraticamente em cima da sua tese sobre Paul Michel, numa sala de Cambridge, na busca do escritor, tão logo o sabe vivo e internado no hospital Sainte-Anne, em Paris. Quem lhe revela o paradeiro do escritor é uma germanista meio "badermeinhoffiana", que escreve cartas apaixonadas e sempre extremas para Schiller (esse "schillerismo fora de lugar" é outro esplêndido tema reunido no livro). Na sua infância, durante umas férias no litoral, ela teria compartilhado com Paul Michel um pouco daquele bem supremo de que ninguém se apropria. Ele é que alimenta seu propósito de salvar o escritor. Como se percebe, até num romance de prosa econômica como este, dedica-se um certo regime invisível de capa e espada às paixões. O sublime parece exigir isso.
Depois de encontrar Paul Michel, com um diagnóstico de todo tamanho de esquizofrenia paranóide e protocolos de segurança apertadíssimos, o narrador consegue livrá-lo da reclusão absoluta. Eles se lançam então numa escapada solar, fraterna e erótica pelo sul da França, ao fim da qual o leitor inglês encontra o amor de Paul Michel e, este, a morte estraçalhante nas garras de uma coruja que se lança contra o pára-brisas do seu Citroën. Nessa espécie de serviço de correio entre cumes que é a literatura não dá muito para contar com sobreviventes.
Melhor do que dizer que este é um romance que reúne coisas tão difíceis e escarpadas que ele mesmo talvez não possa suportar é dizer que este livro sobre a paixão sem futuro do leitor e sobre as formas também meio de "falésia" do amor sublime reúne coisas que só a literatura pode suportar.



A OBRA
Alucinando Foucault - Patricia Dunker. Tradução de Duda Machado. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/210-9478). 192 págs. R$ 22,00.



José Maria Cançado é autor de "Os Sapatos de Orfeu", biografia de Carlos Drummond de Andrade.



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