São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 1999

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Paranóia assassinada

WASHINGTON OLIVETTO
especial para a Folha

Ao contrário do seu personagem, Dimitri Borja Korosek, atirador desastrado, especialista em tiro pela culatra, Jô Soares acertou na mosca com seu romance "O Homem Que Matou Getúlio Vargas". Sem medo de utilizar o melhor dos seus muitos talentos, o de grande criador de humor, Jô Soares escreveu um livro que provoca o riso ou no mínimo o sorriso em todas as suas 344 páginas e, ainda atirando no que viu e acertando também no que não viu, deixa pronto um brilhante argumento cinematográfico: um misto de "Forrest Gump" com "Um Convidado Bem Trapalhão", que resulta num macunaíma bósnio-carioca que, se filmado, certamente provocará deliciosas gargalhadas em todo o público.
A idéia central de biografar um personagem de ficção que convive com fatos da realidade está muito bem embasada em uma sólida pesquisa, numa bibliografia que envolveu mais de 50 títulos diferentes. A narrativa é fluente, e a capacidade inventiva do autor na criação de situações, nomes de entidades, lugares e pessoas convive com a história real com naturalidade e deixa claro o fato inconteste de que em qualquer época, cidade ou país, na maioria das vezes a história real consegue ser mais ficcional e "nonsense" do que a própria ficção.
Desfilam pelo livro personagens inventados, como o anão Motilah Bakash e o criminoso homossexual francês Henry Maturin, ao lado de personagens de verdade e díspares, como Mata Hari, Plínio Salgado, Al Capone, Adolf Hitler, Victor Fleming, Graciliano Ramos, Pablo Picasso, Felinto Müller e Gregório Fortunato. Fatos hilários, como o do exército que vai para guerra de táxi por falta de comboios ou o dos fugitivos que trocam uma penitenciária de segurança máxima por uma aldeia de leprosos, mesclam-se com acontecimentos verdadeiros, como os discursos inflamados de Carlos Lacerda, as apresentações da orquestra de Carlos Machado no Cassino da Urca ou a descrição do requintado cardápio do Orient Express.
Até mesmo uma pitada de erotismo está presente no romance -nas descrições dos devaneios da viúva Maria Eugênia Pequeno apaixonada por Dimitri e seus dois dedos indicadores a mais, um em cada mão. Tudo dentro de um projeto gráfico bem planejado pelo próprio Jô Soares e por Hélio de Almeida, que empresta credibilidade ao inverossímil e em que se destacam particularmente os mapas criados por Sírio B. Cançado. Com apenas dez dedos nas mãos (dois a menos que o seu personagem), digitando no computador a história que a sua cabeça ágil, bem informada e trabalhadora produziu, Jô Soares consegue com "O Homem Que Matou Getúlio Vargas" assassinar num tiro só uma paranóia que é da maioria dos escritores e que certamente foi dele também. A idéia de que é muito difícil fazer um segundo bom romance logo depois de um primeiro bem-sucedido.



A OBRA
O Homem Que Matou Getúlio Vargas - Jô Soares. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 344 págs. R$ 25,00.



Washington Olivetto é presidente e diretor de criação da agência de publicidade W/Brasil.



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