São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2002

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Resumo de Lucio Costa

Nelson Kon
Sede do Jockey Club do Brasil (1956), no Rio


por Otília Beatriz Fiori Arantes

 "O Brasil é uma procissão de milagres" (1) Sérgio Buarque de Holanda

Teria a Moderna Arquitetura Brasileira surgido por milagre? Ao menos parece ser essa a opinião de Lucio Costa, ao adotar, em seu antológico ensaio de 1951, o título: "Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre". Sem poder esmiuçar aqui todas as suas razões, é preciso reconhecer de saída que normalmente nos países periféricos e, por isso mesmo, de tradições culturais não sedimentadas os surtos de modernização parecem acontecer por obra do acaso. E, para reforçar essa quase certeza quanto ao caráter fortuito desse feito histórico, quando indagado, por exemplo, sobre quando e como aderiu à Arquitetura Moderna, Lucio Costa invariavelmente dizia tê-la descoberto muito tarde e, aparentemente, ao sabor de circunstâncias que poderiam não ter ocorrido, acrescentando que, se não fosse assim, possivelmente, ela própria não teria existido.
É evidente que sua conhecida discrição não lhe permitiria falar apenas de si próprio, mas de uma série de coincidências que acabaram por colocar, por exemplo, Le Corbusier e Oscar Niemeyer em sua rota, sem o que o referido milagre não teria se dado. Que haja sempre em tais casos uma combinação de fatores subjetivos e objetivos, não se discute. Arranjos mais ou menos rotineiros em se tratando de culturas orgânicas, mas em geral bastante acidentais num meio em princípio adverso às grandes manobras do espírito e, como não poderia deixar de ser, bem mais dependentes de felizes acasos ou repentes que passam então por geniais.
Na conta dos acasos, alinho alguns dos episódios narrados por Lucio Costa (2). Em primeiro lugar, sua sempre lembrada ida à Europa, em 1926, menos para estudo do que "por motivos sentimentais insolúveis", interrompendo suas não muito inspiradas atividades de arquiteto neocolonial, ou "eclético-acadêmico", como ele mesmo se reveria mais tarde. Mesmo assim desmotivado, não deixou de ver e estudar a arquitetura européia, com a qual de resto se familiarizara depois de viver longos anos no Velho Mundo. Mas, ao contrário dos jovens modernistas de São Paulo que lá se encontravam na mesma época, sem prestar a menor atenção à eclosão do modelo original de sua redescoberta da verdade arquitetônica do país. Tanto assim que, na viagem de volta, um ano depois, jogando forca numa roda de passageiros mais atentos ao que se passava pelo mundo, não reconheceu Le Corbusier num L inicial. Morreu na forca, mas registrou esse nome para o resto da vida. Anedota que não se cansava de contar para demonstrar o quanto na época estava alheio às novas tendências ou talvez para maliciosamente sugerir o segredo desta outra "devinette": o ter guardado para sempre o hábito de assinar apenas com as iniciais L.C., homenagem de vida inteira à lição do Mestre.


A ensaísta discute a trajetória do urbanista e sua importância no processo de formação de uma certa modernidade na arquitetura brasileira


Logo depois, uma pneumonia que contraíra nessa mesma viagem obrigou-o a voltar a Minas para uma estação de cura. Outra ocasião igualmente fortuita: revendo nossa arquitetura colonial, deu-se conta afinal, e de uma vez por todas, dos equívocos em que incorrera o chamado "neocolonial" ao qual aderira -"lamentável mistura de arquitetura religiosa e civil, de pormenores próprios de épocas e técnicas diferentes, quando teria sido tão fácil aproveitar a experiência tradicional no que ela tem de válido para hoje e para sempre".
A verdade é que as viagens à Europa e a Minas causaram uma espécie de curto-circuito no percurso do nosso arquiteto franco-brasileiro, de algum modo prenunciando o que se seguiria. Some-se a isso o fato de ter "achado" numa revista não-especializada -"Para Todos"- a "casa modernista" de Warchawchick, que logo tentará reproduzir, aliás sem êxito, pois a cliente que encomendara o projeto não gostou nada do que viu: "Eu venho lhe pedir uma carruagem e o sr. quer me impingir um automóvel!". Gesto intempestivo, ao qual talvez não se seguissem outros, não fosse o convite para imprimir novos rumos à Escola Nacional de Belas Artes, em 1930, por alguém que ele nunca vira antes e que o foi buscar em Correias, nada mais nada menos do que Rodrigo Mello Franco de Andrade, que, passados sete anos, o levará para o recém-criado Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Esses alguns dos acasos que teriam feito de Lucio Costa um moderno. Mas já estavam dadas aí as premissas daquilo que, na sua, ou na nossa, arquitetura, emendava (sem querer...) no mandamento modernista, em especial como o formulara Mário de Andrade: é necessário "tradicionalizar" o nosso passado, quer dizer, o Brasil. Espécie de antídoto contra a moléstia-de-Nabuco: o mal-estar do exílio na própria terra. Antes de tudo, um novo modo de referir o passado ao presente, vivê-lo e não revivê-lo -reconstruir o passado vivo "pesando em nossos gestos".
Aqui um dos embriões do que se poderia chamar de efeito retroativo do processo de formação, que procura se completar por influxo moderno necessariamente externo e por isso mesmo preponderante, como veremos logo a seguir. Primeira versão do futuro "desrecalque localista" de que falará Antonio Candido. Ou ainda, na linguagem também psicanalítica de um outro precursor, Gilberto Freyre, quando em 1926 encarecia por sua vez a necessidade de "destabuizar" o Brasil, destapando-se o país encoberto pela mentirada oficial -uma cura psicanalítica enfim, que removeria todos os álibis do bovarismo nacional.
Avançando o sinal -pois ainda não reconstituímos todas as peças do quebra-cabeça, na origem do referido "milagre"-, também será possível falar em "desrecalque" ou "destape", no mencionado sentido psicanalítico-cultural do termo, no caso da Arquitetura Moderna Brasileira. Desde que tomemos a arquitetura burguesa dos estilos históricos de encomenda como um sintoma neurótico encobridor do país arquitetônico real, é só descascar, tirar o verniz e trazer à luz do dia a sinceridade da estrutura construída. Ora, a terapia também é moderna e importada, a honestidade construtiva dos modernos, branca e asséptica como a ética produtiva do trabalho que ela trazia em seu âmago. O que se passou então, é claro que com a mediação do "abrasileiramento" do programa corbusiano? Lucio Costa simplesmente reconheceu no esqueleto moderno, aliviado da superfetação dos estilos de época, um laço de família com a antiga sabedoria construtiva da arquitetura civil colonial.

Moderno sem ser modernista
Uma ressalva antes de prosseguir, evitando a impropriedade do amálgama. Na verdade, Lucio Costa nunca se reconheceu no Movimento Modernista, ao menos no alto modernismo dos anos 20, quando o arquiteto carioca que viria a ser, justamente por esse sinuoso processo de individuação, a personificação mais acabada do Movimento Moderno em Arquitetura no Brasil ainda se debatia com equívocos como o do arremedo neocolonial. No entanto, ao chegar à Arquitetura Moderna apenas nos anos 30, beneficiou-se da virada modernista do período construtivo-iluminista, de organização institucional da cultura e seus correlatos. Assim, é preciso não esquecer que o mesmo não tão jovem L.C., que se declarou moderno um pouco tarde e, aparentemente, motivado pela redescoberta do Brasil, primeiro alegou as "Razões da Nova Arquitetura" (1934) para, alguns anos mais tarde, como "expert" em patrimônio, repertoriar a "Documentação Necessária" (1937) que faria dela, sem embargo de sua feição internacional, "uma manifestação de caráter local". Um passado, portanto, revisitado de um ponto de vista moderno já constituído, como queria Mário de Andrade. Ao mesmo tempo, ao chegar como que "post festum" à virada modernista, a energia utópica dos primeiros tempos de demolição e sarcasmo já arrefecera, e com ela a fantasia de uma ordem social alternativa à qual a nova técnica construtiva deveria em princípio pertencer. Vantagens e desvantagens nessa estréia de um retardatário: por exemplo, dentre as primeiras, o benefício do referido desrecalque, ocorrido nos anos 20, porém já rotinizado; assim como a substituição do mito modernista do país não-oficial pelo mito da Nação Moderna, mas sob o patrocínio do Estado, na conta das desvantagens. Talvez se possa dizer, concluindo esta digressão preliminar sobre o caráter "nacional" da Arquitetura Moderna Brasileira como a concebeu Lucio Costa, que, em matéria de Movimento Moderno, a originalidade da contribuição brasileira consiste precisamente neste fato singular, a saber, que em nosso país os modernos foram os primeiros (e os mais autorizados e aparelhados) a se empenhar na recuperação e preservação da arquitetura tradicional, as mesmas pessoas que propunham a renovação moderna reclamavam uma retomada do antigo. São assim antes de tudo modernos e não passadistas (isto é, acadêmicos) e, por serem justamente modernos, são os primeiros a reatar (noutro registro) com a tradição. Não cabe denunciar de saída a incongruência, a favor ou contra. Trata-se, é evidente, de uma configuração objetiva. A chave do enigma está na decifração da lógica desse dispositivo material a ser identificado e não se esgota no simples desmascaramento, ou acatamento, do ideário envolvido: o do abrasileiramento bem ou malsucedido da arquitetura moderna.

Nossa via de passagem
Aliás, se atacarmos diretamente o problema pela raiz estrutural mencionada, será preciso ressaltar que o arranjo entre moderno e tradicional é a fórmula histórica da feição original, rigorosamente não-clássica, que tomou a via de passagem brasileira do antigo sistema colonial-mercantil para o novo mundo do capital industrial. Esse arranjo é o motor que impulsiona a dinâmica heterodoxa da nossa formação social, econômica e cultural, se confrontada com a norma européia de transição do feudalismo para o capitalismo. Aqui não houve isso, nascemos "modernos" e "coloniais", sob a égide do capitalismo comercial em expansão. Daí a escravidão, a monocultura etc., voltadas para o mercado internacional, produção a um tempo "patriarcal" e mercantil.
As mil formas antagônicas e conciliatórias de convivência entre capitalismo e escravidão -Brasil burguês e país colonial- estão na origem do "esquema" de Lucio Costa. Por isso mesmo, um esquema de convergência com o Estado, de confluência com o que será o moderno Estado Novo sucedido pelo Estado Desenvolvimentista do segundo Getúlio e de JK. Mas isso é apenas o horizonte histórico mais remoto.
Não há como escamotear o outro lado desta revisão do passado, mesmo quando feita com intuitos prospectivos. Ser fiel ao patrimônio histórico e à tradição artística local porque se é moderno, e não apesar de, é o mesmo, e mais 100 mil mediações, que modernizar repondo, ou refuncionalizando, o antigo regime herdado e restaurado: numa palavra, o moderno cresce e se alimenta reproduzindo seu lastro colonial.
De obstáculo e resíduo o arcaísmo passa a instrumento da opressão mais moderna. O Brasil é assim até hoje: um passo ultramoderno de inserção internacional subordinada dado, como sempre, pela mesmíssima coalizão conservadora consolidada no compromisso de 1930. Modernização conservadora, como o nome indica, quer dizer isso mesmo, reestruturação produtiva com iniquidade social, a nova e a velha. E modernização como enclave num incipiente aparato produtivo dos elevados padrões de consumo das elites -esse o nicho da Arquitetura Moderna Brasileira. Daí sua ambiguidade: prometia desenvolvimento, isto é, homogeneização social num país dualizado, quando na verdade só fazia aprofundar uma modernização restringida, sublinhando ainda mais o desajuste do enxerto. Falsidade também na involuntária associação ufanista com o desenvolvimentismo. Os textos e as obras dos anos 50, especialmente Brasília, serão a prova cabal da verdadeira natureza de nossa modernização -arquitetura incluída, e não como fator menor.

Um marco
Retomo os fatos. Após o "fracasso" na reforma da Escola Nacional de Belas Artes, e o Salão de 1931, Lucio Costa, apesar de colaborar com Warchawchick, que a seu convite se fixara por um tempo no Rio, passa por um longo período (1932 a 1935) que ele chama de "chômage", graças ao qual terá oportunidade de estudar os Modernos, em especial, Le Corbusier, que lhe pareceu o mais sugestivo de todos. Tais lições, bem assimiladas, logo transparecerão tanto em seus textos e memoriais quanto nos projetos. Não se pode esquecer que foi nesse período que projetou as "casas sem dono", a "aldeia" de Monlevade e escreveu "As Razões da Nova Arquitetura".
Mas talvez o mais importante efeito deste aprendizado: Lucio Costa, que não havia prestado muita atenção à vinda ao Brasil, em 1929, do arquiteto suíço-francês, passados sete anos vai propor a Capanema trazê-lo para ser ouvido sobre o projeto da Universidade e o prédio do Ministério da Educação e Saúde Pública. Ambos prioridades do ministro e que deveriam simbolizar uma reforma da educação à altura dos novos tempos -estávamos em plena era Vargas e às vésperas do Estado Novo. O campus seria obra de Piacentini (que Capanema teimava em ver como um moderno e não, simplesmente, como um fascista) e, para o edifício do Mesp, se decidiu pelo concurso, em que saiu vencedor Archimedes Memória com um prédio em estilo marajoara...
Foi quando a influência decisiva de Lucio Costa se fez sentir, alterando totalmente os rumos que tais iniciativas iam tomando. Convenceu ministro e presidente a trazerem o maior arquiteto da atualidade. Chegava assim novamente ao Brasil, em 1936, Le Corbusier, que refez o anteprojeto da Cidade Universitária e elaborou o primeiro estudo do Ministério da Educação e Saúde Pública, além de proferir conferências no Rio e em São Paulo sobre a Nova Arquitetura.
Nesse meio tempo, havia se constituído, no Rio, um grupo de jovens arquitetos sob a orientação de Lucio Costa, que -como ele mesmo dizia- faziam dos textos de Le Corbusier o Livro Sagrado da Arquitetura, e foi com eles que deu seguimento aos dois projetos. O núcleo estava de tal forma impregnado pelas lições do Mestre que, quando se apresentou a oportunidade de pôr em prática a teoria, a resposta foi instantânea, na aparência de "espontânea contribuição nativa" -como dirá mais tarde Lucio Costa, acrescentando: eles estavam tão imbuídos da necessidade de conciliar arte e técnica, e de dar à generalidade dos homens uma vida sã, como "em princípio a Idade da Máquina tecnicamente faculta" (segundo o melhor receituário corbusiano), que se "tornaram modernos sem querer" (grifo meu). Assim, em 1937, começava o Ministério da Educação (só inaugurado em 1945), sob o signo da modernidade técnica, com a participação de Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Afonso Reidy, Jorge Moreira e Ernani Vasconcellos.
O projeto, embora baseado no risco original do próprio Le Corbusier e obedecendo rigorosamente às cinco máximas do Mestre, sofreria entretanto "adaptações" numa direção que já assinalava os novos rumos da nossa arquitetura: a mudança de escala dos pilotis, a verticalidade do prédio, a implantação no terreno, os volumes entrelaçados, acrescidos dos "brise-soleil" na fachada e os azulejos com desenhos de Portinari. Soluções que não só "abrasileiravam" o projeto de Le Corbusier, mas, especialmente, cumprindo o papel que cabia a uma tal iniciativa patrocinada pelo Estado, monumentalizavam o edifício, tornando-o matriz e símbolo da nossa arquitetura e da nossa "modernidade". Nas palavras do próprio Lucio: "Marco definitivo da nova arquitetura brasileira, que haveria de se revelar igualmente, apenas construído, padrão internacional e onde a doutrina e as soluções preconizadas por Le Corbusier tomaram corpo na sua feição monumental pela primeira vez" (grifos meus).
Portanto, não apenas "mudança de cenário", mas, nada mais nada menos, do que "estréia de peça nova em temporada que se inaugura" como na feliz imagem do próprio Lucio Costa, no texto famoso de 1951, para caracterizar as transformações resultantes de mudanças técnicas capazes de inaugurar um outro ciclo econômico e social. Por isso mesmo, algo como uma "revolução", mas como que ocorrida por "milagre" (termo cujo sentido aqui começa a ganhar um teor mais preciso):
"Milagre por assim dizer "double-face'" -e explica- "se pensarmos na proverbial ineficiência dos nossos operários ou no atraso da nossa indústria, em comparação com o salto ocorrido nos usos e costumes da população, na aptidão das oficinas e na proficiência dos profissionais (...), passando, da noite para o dia e por consenso unânime da crítica estrangeira idônea, a encabeçar o período de renovação que vem atravessando a arquitetura contemporânea".

Uma arquitetura que "deu certo"
O mesmo Lucio Costa -sempre de acordo com o balanço de 1951- é o primeiro a reconhecer ("et pour cause") que, aqui e ali, a Arquitetura Moderna começava a tomar pé entre nós. No entanto, entre tantos nomes e obras citados, nada que sintetizasse de forma perfeita algo que pudesse vir a ser reconhecido daí para a frente como um modelo de Arquitetura Moderna e Brasileira, como foi o caso do Mesp, desde então símbolo inconteste de algo realmente novo. Como observara em 1948, numa carta-resposta a Geraldo Ferraz, uma arquitetura moderna exemplar não poderia restringir-se a fatos isolados e sem futuro, em geral de pura imitação. Essa cristalização veio com a Revolução de 30. Foi quando, num meio alternadamente desinteressado ou hostil, começou a vingar uma nova maneira de conceber, projetar e construir. O processo de renovação já esboçado individualmente começou assim a organizar-se quando, dispensando o leva-e-traz da mera curiosidade transoceânica, estabeleceu-se um vínculo direto com as fontes originais do movimento mundial, isto é, quando se começou a passar a limpo as idéias trazidas em pessoa pelo próprio Le Corbusier. Em pouco mais de dez anos formou-se a Arquitetura Moderna Brasileira. Deu-se então aquele "milagre" que principiou a desafiar a curiosidade perplexa de arquitetos e críticos europeus e americanos, exatos 12 anos depois da primeira casa modernista brasileira, experimento notável, mas sem maiores consequências, ao contrário do que sucederia com o Ministério e sua prole imediata, definindo o sentido geral dos acontecimentos e atestando o alto grau de consciência e aptidão já alcançados àquela altura: primeiro, os prédios projetados e construídos durante o longo e acidentado transcurso das obras desse edifício inaugural; logo a seguir o Pavilhão de Nova York; finalmente o conjunto da Pampulha, de Oscar Niemeyer. Assim, das manifestações avulsas ao sistema, menos de duas décadas -um aparato de fato impressionante, sobretudo pela perícia técnica demonstrada em tão pouco tempo- de ensaio geral. Um milagre... E Lucio Costa dá a entender, despistando como sempre, que tudo poderia ser também fruto de uma feliz coincidência, ainda uma vez: a presença de uma personalidade nesses três episódios, capaz de captar as possibilidades latentes e dar-lhes uma resposta à altura, e que se mostraria a seguir decisiva para a arquitetura brasileira contemporânea, o jovem Niemeyer: "Desse momento em diante o rumo diferente se impôs e a nova era estava assegurada", conclui. Aliás, é bom lembrar que, em 1953, diante da ressalva feita por Max Bill à "esplêndida realização do Pedregulho" em meio à crítica aos excessos formais da arquitetura brasileira, Lucio Costa não teve dúvidas, sem tirar o mérito de Reidy, em afirmar categoricamente: "A arquitetura brasileira na sua feição atual -o Pedregulho inclusive- não existiria. Foi ali [na Pampulha" que as suas características diferenciadas se definiram". Justamente a marca registrada de uma arquitetura que, descolada de sua base real, iria se afirmar, a partir de então, pelo seu viés preponderantemente estético. (Lucio Costa poderia ter incluído o seu conjunto do parque Guinle, mas não o fez. Méritos, e não poucos, à parte, se o modelo vitorioso fosse esse, o futuro daquela que passou a ser identificada, desde então, como a Arquitetura Moderna Brasileira certamente teria sido outro, mas Mestre Lúcio, como um "metteur-en-scène" consciente -afinal fora ele que convidara Niemeyer a participar do projeto para o Mesp e o levara a Nova York para colaborar no Pavilhão-, não teve dúvidas em definir como deveria prosseguir o espetáculo. Espetáculo sim, porque é disso que se trata, para bem e para mal: de uma arquitetura espetacular.) Ato contínuo, quer dizer, mais ou menos por volta da segunda metade dos anos 40, seu principal protagonista e formulador transformou-se além do mais em intérprete dessa história exemplar, que também se poderia chamar de história dos brasileiros no seu desejo de ter uma arquitetura coerentemente moderna, na expressão de Antonio Candido, referindo-se às "motivações" na origem da formação da nossa literatura.

O esquema da "formação"
Para entender o propósito de Lucio Costa ao se pôr a contar essa história de uma arquitetura que "deu certo", é preciso ter em mente que na verdade retomava um velho problema da nossa crítica, ou seja, a oscilação do local e do mundial em torno de um ponto de equilíbrio buscado por integração progressiva dessa "dupla fidelidade" que aflige todo cidadão de um país ainda em transe de passagem. Na mesma época (anos 50) Antonio Candido escrevia o livro decisivo a respeito -a "Formação da Literatura Brasileira". Embora tenha sido o primeiro a explicá-la cabalmente, a idéia de "formação" vinha figurando obsessivamente no centro de vários livros fundadores da nossa tradição crítica, mesmo quando não atende diretamente por esse nome, como no caso de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda.
Alguns exemplos: "Formação do Brasil Contemporâneo", "Formação Econômica do Brasil", "Formação Política do Brasil", "Formação do Patronato Político Brasileiro" etc. Nela se concentra o essencial do debate intelectual brasileiro, que sempre girou em torno da questão crucial da passagem, moderna por excelência, da Colônia à Nação -é portanto de formação nacional que se trata, sobre o pano de fundo da sempre presente herança colonial a ser superada.
O esquema básico talvez possa ser assim resumido: "formação" é propósito construtivo deliberado das elites dirigentes e cultivadas, empenhadas em dotar o país de linhas evolutivas que culminem no funcionamento coerente de um sistema cultural local, tendo por modelo e parâmetro crítico a relativa organicidade da vida cultural européia. Supõe portanto o ideal de concatenação, continuidade, tradição, em contrapartida à "barafunda" de nossa vida mental, em que nada se segue de nada; ou seja, supõe um sistema de referências recíprocas por oposição às manifestações avulsas e isoladas. Havendo então formação em andamento, e não abortos, cedo ou tarde se apresentaria uma espécie de causalidade interna ou linha evolutiva cuja força, advinda da capacidade de pôr em "forma" o processo local, acabaria por redundar (este o voto de Antonio Candido, ao estudar a formação da nossa literatura) em superação da dependência cultural (3).
Voltando a Lucio Costa e seu "esquema" de formação, talvez fosse o caso de recapitularmos o que seja uma arquitetura moderna nacional, devidamente "formada". Em primeiro lugar, é preciso relembrar que não haveria formação sem o enxerto plantado diretamente pelo próprio Le Corbusier e sobretudo sob o referido alto patrocínio de um Estado autoritário e protodesenvolvimentista. Sem essa conjunção não haveria gênio da raça que realizasse o desejo dos brasileiros de ter uma arquitetura à altura dos novos tempos, continuaríamos acumulando amostras gratuitas de casas modernistas que poderiam estar tanto em Higienópolis, Vila Mariana ou qualquer outro bairro de São Paulo e Rio de Janeiro, como em Paris ou Viena.
Está pois subentendido que nos países dependentes o influxo externo permanece preponderante -o que não faria sentido na França ou na Inglaterra, por exemplo, países com um sistema cultural por assim dizer acabado desde o nascedouro. Que a exigência de atualização é um imperativo social e do sistema produtivo mundial. E que não há atualização sem um razoável desajuste, já que não há forma sem pressupostos materiais congênitos e que estes últimos não circulam como as idéias e as mercadorias. No caso particular da Arquitetura Moderna, esse descompasso saltava aos olhos pelas razões de defasagem histórico-materiais arqui-sabidas e o formalismo do transplante não se fez esperar. Razão do sucesso mundial de público e crítica, aquela estilística suspensa no ar parecia brotar do âmago mesmo do Movimento Moderno.
Deu-se aí o que ninguém podia prever, um notável fenômeno de depuração negativa, o Brasil como câmara de decantação da Arquitetura Moderna. O desajuste local como que revelava o fundo falso do original como sua verdade. Ao mesmo tempo, o desacerto bem-sucedido, que poderia funcionar como plataforma crítica de observação da Arquitetura Moderna em plano mundial, foi concomitantemente transfigurado como revelação plástica do passado arquitetônico local, habilitando o país ao título de "criador endógeno do Movimento Moderno", que só terá existência então enquanto manifestação local. Transformada equivocadamente por alguns críticos em um regionalismo a mais...
Convenhamos que tal desfecho não é trivial. Demonstrava-se aqui uma verdade local que traduzia a falsidade da matriz universal, ao mesmo tempo que a verdade mundial do falso local. Numa palavra, uma desqualificação recíproca, um desmentido mútuo que não estava no programa, daí o privilégio de um ponto de vista crítico ancorado na experiência brasileira, cujo alcance então é mundial (4).
Esses os elementos "formativos" do sistema cultural brasileiro presentes no esforço teórico e projetual de Lucio Costa. Vê-se pois que não só é possível como é necessário, para o seu exato entendimento, falar de uma formação da arquitetura moderna no Brasil.
Esse o horizonte real do "esquema" milagroso de Lucio Costa: o propósito deliberado de atualização e emparelhamento do Brasil com o resto do mundo civilizado, que por sua vez não será Nação (depois de ter sido Colônia) sem o auxílio das técnicas construtivas mais avançadas etc. Esquema ele mesmo incompreensível sem a enorme rotação de eixo em nossa vida mental produzida pela Revolução de 30 e que pode ser assim resumida: novamente, a cultura moderna funcionando como instrumento de descoberta, em princípio desoficializada, da assim chamada desde aquela época "realidade brasileira".
Ocorre que todo esse enredo, embora fortemente apoiado na realidade, ou por isso mesmo, não passa de um conto bem urdido -aliás, como acabamos de ver, de acordo com uma espécie de lógica espontânea da formação, sorte de esquema mental brasileiro a guiar os passos de nossos melhores espíritos-, fantasia exata que veio desde então assumindo proporções mitológicas, tal o sucesso com que cada obra da Moderna Arquitetura Brasileira, grandiosa ou não, reforçava a lenda de sua própria origem fabulosa.


Afinal, num país onde "tudo está a bem dizer por fazer", como implantar uma arquitetura diretamente vinculada ao progresso técnico?


Sem dúvida, a Arquitetura Moderna Brasileira se formou, ou, como prefere Lucio, a arquitetura moderna no Brasil "deu certo". Mas o problema está justamente nisto: afinal, num país onde "tudo está a bem dizer por fazer", como implantar uma arquitetura diretamente vinculada ao progresso técnico? Perguntava-se Lucio Costa, ainda no início dos anos 30. Ora, o desencontro entre doutrina e pressuposto social é de fato a regra nesses casos de enxerto, à qual nem Lucio Costa nem o que se passará com a nossa arquitetura farão exceção. Só que nesse caso particular, não obstante a distância real entre centro avançado e periferia retardatária, deu-se uma notável inversão de papéis, convertendo o descompasso num grande acerto, pois foi a distorção da cópia que revelou, como vimos, a verdade profunda do original. O viés estético enaltecido como marca nacional denunciava afinal sob o prisma comprometedor da Margem o formalismo integral do Centro -a abstração mesma do espaço ordenado pelo Capital. O resultado é conhecido: o viés estetizante que se quis preservar na arquitetura brasileira, rebaixando o eixo social sempre alegado e nunca ativado materialmente, acabou numa espécie de exorcismo, em nome, é claro, da autonomia da arte.

O remate
Brasília seria a expressão máxima dessa torção. Esse passo conclusivo, entretanto, ainda não havia sido nem sequer cogitado quando Lucio Costa montou o seu "esquema", embora venha a ser um capítulo essencial dessa história. Conclusivo em todos os sentidos. De fato o fecho -na ocasião, triunfal- de um roteiro, pessoal e coletivo, que principiara por um "milagre" (o Ministério) e culminara numa "miragem" (Brasília). Brasília haveria de ser o CQD da fórmula exitosa da nossa arquitetura. Mais uma vez éramos os pioneiros na aplicação integral do receituário moderno (Ciams/Corbusier) na construção, a partir de zero, de uma cidade. Do edifício à cidade. Ainda sob patrocínio do Estado, só que agora, Estado do Desenvolvimento, do qual nossa AM não apenas era a testemunha mais visível mas num certo sentido, por razões intrínsecas, uma invenção que tinha se mostrado necessariamente "desenvolvimentista" avant la lettre.
Se nos anos 30 já se podia falar num "desejo dos brasileiros de ter uma arquitetura moderna", com patrocínio do Estado e tudo, é na década de 50 que ela se torna realmente emblemática de um Brasil moderno -novamente em jogo, o pano de fundo do debate nacional: passagem de Colônia a Nação, simbolizada, em sua plenitude retórica máxima, na fundação de uma capital. Num e noutro plano trata-se de uma "chave de abóbada" (na própria expressão de L.C. ao defender a sua cidade, em 1967). Momento decisivo na rota ascendente de um povo subdesenvolvido; mas de um povo que reinventa sua capital "sob o signo da arte". Coroamento cultural e sinal definitivo de maioridade intelectual.
Trata-se, na verdade, de uma dupla "formação" -a do sistema cultural brasileiro, nas suas várias ramificações (da literatura à arquitetura), e a de um sistema econômico enquanto base material capaz de articular uma sociedade nacional minimamente homogênea. Uma não vai sem a outra, sobretudo quando o tema é Brasília, projeção mental impensável sem os requisitos materiais para tanto. Conotação desenvolvimentista também na designação Alvorada para o palácio presidencial. Sem falar no próprio traçado do Plano Piloto, atualização da cruz cabralina na forma de um avião pousando no cerrado central (na metáfora do próprio memorial descritivo), a anunciar um verdadeiro ato de refundação do país. Ao mesmo tempo, como não entrever na própria imagem da aeronave pairando sobre o chão rústico da ex-colônia mais uma de nossas modernizações pelo alto, como que suspensas no ar, desmoronando ao menor tranco do país antigo, porém real?

Notas
1. Adaptação do último parágrafo de "Visão do Paraíso" (ed. Brasiliense);
2. Refiro-me ao "Registro de uma Vivência" (ed. Empresa das Artes, não por acaso o título da única coletânea autorizada de seus textos), onde as duas histórias se cruzam -a pessoal e a da Arquitetura Moderna Brasileira- como num único movimento, e que aparecem aqui em forma de "resumo". Resumo tem pois um duplo sentido: o da síntese feita por Lucio Costa e, nesta homenagem que lhe presto, o da recapitulação resumida de outros trabalhos meus sobre sua invenção da Arquitetura Moderna Brasileira, tanto quanto do "esquema" capaz de interpretá-la;
3. Sobre esse conceito de formação, cf. Paulo e Otília Arantes, "O Sentido da "Formação" Hoje", revista "praga", nš 4, SP, Hucitec, 1997;
4. Nesse contraponto o leitor terá sem dúvida reconhecido a chave crítica do ciclo machadiano de Roberto Schwarz. Aliás, tudo o que no meu argumento entronca na tradição crítica que culmina no referido ciclo não cabe obviamente em nota de rodapé.


Otília Beatriz Fiori Arantes é professora de estética no departamento de filosofia da USP. Publicou, entre outros livros, "O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos" e "Urbanismo em Fim de Linha", ambos pela Edusp.


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