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A doença e sua cura
"Tropa de Elite" instala a dúvida, enquanto "Rambo" recorre a músculos
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Primeiro, veio a recepção da imprensa internacional, que tratou o filme quase
unanimemente a pedradas. Depois, a consagração
do júri no Festival de Berlim,
com a escolha de "Tropa de Elite" para receber o Urso de Ouro. Entre os dois, repetiu-se o
mesmo fenômeno midiático
que cercou o lançamento do filme no Brasil e seu conseqüente
ótimo resultado nas bilheterias, numa espécie de confirmação do velho ditado "falem
mal, mas falem de mim".
Já as acusações recorrentes
de "fascismo", que voltaram a
circular nas críticas feitas ao
filme, desta vez pela imprensa
internacional, chamam a atenção por constituir a reação quase universal daqueles que repudiam o filme de José Padilha. Resta saber a que fascismo
se referem.
O retorno iminente de outro
herói, John Rambo, também
considerado em seu tempo um
ícone do fascismo, um portador do pior da América dos
anos Reagan, ajuda a estabelecer algumas nuanças relativas
ao uso indiscriminado dessa
expressão, que faz as vezes de
xingamento.
Fuzil apontado
Quando assisti ao filme de
Padilha pela primeira vez, já
havia lido e relido textos que
atacavam o filme pelo suposto
teor fascista de sua mensagem.
Mas, diante do plano final, com
aquele fuzil apontado contra a
cara de todos na platéia, saí da
sessão a me perguntar se é o filme que é fascista ou se ele traz à
tona, de modo astuto e insidioso, nosso fascismo cotidiano e
inconfessável sob a forma de
desejo de extermínio.
Pelo fato de essa reação comportar a ambigüidade, provocar
esse ruído em sua recepção, fiquei convencido de que "Tropa
de Elite" trazia algo de saudável. O que se confirmou em seguida, com a calorosa e importante discussão social provocada pelo filme.
Por outro lado, é preciso reiterar que o ótimo desempenho
de bilheteria do longa de Padilha se deve em parte às platéias
que cultuam o Capitão Nascimento como uma versão longe
de Hollywood e perto do coração do velho e sempre eficaz
Rambo.
Não à toa seu bordão pegou,
dizem, no meio dos pitboys e
outras espécies de aborígenes.
E paira a dúvida, acima de tudo,
se o filme teria tido tanto sucesso se houvesse algum tipo de
punição às atitudes do Capitão
Nascimento.
Já o retorno do soldado programado para matar, encarnado ainda uma vez pelo agora
sessentão Sylvester Stallone, é
um filme que não provoca nenhum tipo de ambigüidade.
Tudo recomeça com Sly do
seu jeito Rambinho Paz e
Amor, quieto no seu recanto
tailandês enquanto militares
birmaneses abastecidos pelo
tráfico de drogas praticam genocídio na vizinhança.
Basta, porém, que um grupo
de defensores de direitos humanos, obviamente americanos brancos e cristãos, sejam
atacados para que Rambo se
transforme ainda uma vez em
eficaz máquina de extermínio.
À diferença do personagem
de Wagner Moura, o de Stallone não admite opções. Seu funcionamento robótico é o mesmo das máquinas, nas quais, uma vez que seu mecanismo é
posto para funcionar, não há
nada que as controle.
Heróis brutamontes
E só nos resta torcer para que
ele elimine o maior número
possível de inimigos, retratados mais uma vez como uma
sub-espécie de militares do
Terceiro Mundo, todos sem nome, interpretados de modo a
reiterar a animalidade dos tipos, ou seja, banir da tela qualquer resquício de humanidade
ou de valores humanistas, tanto de um lado como de outro
das metralhadoras.
Isso tudo faz lembrar "Cobra", outro filme protagonizado por Stallone nos anos 80,
que provocou reações semelhantes e teve várias cenas cortadas pela censura brasileira
-a distribuidora acabou retirando-o de cartaz às pressas.
Sob o slogan "o crime é uma
doença; eu sou a cura", o tenente Mario Cobretti, vulgo Cobra,
satisfazia os delírios sanguinários de platéias cujo desejo de
diversão rima sem pudores
com destruição.
O que não se vê em toda essa
linhagem de heróis brutamontes é a ação corrosiva da dúvida.
Nenhum deles sofre de pânico
ou assume ter planos de abandonar aquele tipo de vida, como
Nascimento.
Não se trata aqui, obviamente, de encontrar rastros de humanidade para poupar o personagem de Wagner Moura dos
significados negativos que ele
encarna. É inegável que há uma
atitude de eliminação em sua
relação de poder com aqueles
que persegue.
Além disso, a narração do filme em "off" funciona como elemento fortíssimo de identificação. E Padilha certamente levou isso em conta como potencial isca de bilheteria, mesmo
sob o risco de elevar um exterminador ao patamar de herói.
Mas há nele outra força inoculada, que John Rambo trocou pelo exclusivo uso dos
músculos: a dúvida.
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