São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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A doença e sua cura

"Tropa de Elite" instala a dúvida, enquanto "Rambo" recorre a músculos

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Primeiro, veio a recepção da imprensa internacional, que tratou o filme quase unanimemente a pedradas. Depois, a consagração do júri no Festival de Berlim, com a escolha de "Tropa de Elite" para receber o Urso de Ouro. Entre os dois, repetiu-se o mesmo fenômeno midiático que cercou o lançamento do filme no Brasil e seu conseqüente ótimo resultado nas bilheterias, numa espécie de confirmação do velho ditado "falem mal, mas falem de mim".
Já as acusações recorrentes de "fascismo", que voltaram a circular nas críticas feitas ao filme, desta vez pela imprensa internacional, chamam a atenção por constituir a reação quase universal daqueles que repudiam o filme de José Padilha. Resta saber a que fascismo se referem.
O retorno iminente de outro herói, John Rambo, também considerado em seu tempo um ícone do fascismo, um portador do pior da América dos anos Reagan, ajuda a estabelecer algumas nuanças relativas ao uso indiscriminado dessa expressão, que faz as vezes de xingamento.

Fuzil apontado
Quando assisti ao filme de Padilha pela primeira vez, já havia lido e relido textos que atacavam o filme pelo suposto teor fascista de sua mensagem.
Mas, diante do plano final, com aquele fuzil apontado contra a cara de todos na platéia, saí da sessão a me perguntar se é o filme que é fascista ou se ele traz à tona, de modo astuto e insidioso, nosso fascismo cotidiano e inconfessável sob a forma de desejo de extermínio.
Pelo fato de essa reação comportar a ambigüidade, provocar esse ruído em sua recepção, fiquei convencido de que "Tropa de Elite" trazia algo de saudável. O que se confirmou em seguida, com a calorosa e importante discussão social provocada pelo filme.
Por outro lado, é preciso reiterar que o ótimo desempenho de bilheteria do longa de Padilha se deve em parte às platéias que cultuam o Capitão Nascimento como uma versão longe de Hollywood e perto do coração do velho e sempre eficaz Rambo.
Não à toa seu bordão pegou, dizem, no meio dos pitboys e outras espécies de aborígenes. E paira a dúvida, acima de tudo, se o filme teria tido tanto sucesso se houvesse algum tipo de punição às atitudes do Capitão Nascimento.
Já o retorno do soldado programado para matar, encarnado ainda uma vez pelo agora sessentão Sylvester Stallone, é um filme que não provoca nenhum tipo de ambigüidade.
Tudo recomeça com Sly do seu jeito Rambinho Paz e Amor, quieto no seu recanto tailandês enquanto militares birmaneses abastecidos pelo tráfico de drogas praticam genocídio na vizinhança.
Basta, porém, que um grupo de defensores de direitos humanos, obviamente americanos brancos e cristãos, sejam atacados para que Rambo se transforme ainda uma vez em eficaz máquina de extermínio.
À diferença do personagem de Wagner Moura, o de Stallone não admite opções. Seu funcionamento robótico é o mesmo das máquinas, nas quais, uma vez que seu mecanismo é posto para funcionar, não há nada que as controle.

Heróis brutamontes
E só nos resta torcer para que ele elimine o maior número possível de inimigos, retratados mais uma vez como uma sub-espécie de militares do Terceiro Mundo, todos sem nome, interpretados de modo a reiterar a animalidade dos tipos, ou seja, banir da tela qualquer resquício de humanidade ou de valores humanistas, tanto de um lado como de outro das metralhadoras.
Isso tudo faz lembrar "Cobra", outro filme protagonizado por Stallone nos anos 80, que provocou reações semelhantes e teve várias cenas cortadas pela censura brasileira -a distribuidora acabou retirando-o de cartaz às pressas.
Sob o slogan "o crime é uma doença; eu sou a cura", o tenente Mario Cobretti, vulgo Cobra, satisfazia os delírios sanguinários de platéias cujo desejo de diversão rima sem pudores com destruição.
O que não se vê em toda essa linhagem de heróis brutamontes é a ação corrosiva da dúvida. Nenhum deles sofre de pânico ou assume ter planos de abandonar aquele tipo de vida, como Nascimento.
Não se trata aqui, obviamente, de encontrar rastros de humanidade para poupar o personagem de Wagner Moura dos significados negativos que ele encarna. É inegável que há uma atitude de eliminação em sua relação de poder com aqueles que persegue.
Além disso, a narração do filme em "off" funciona como elemento fortíssimo de identificação. E Padilha certamente levou isso em conta como potencial isca de bilheteria, mesmo sob o risco de elevar um exterminador ao patamar de herói.
Mas há nele outra força inoculada, que John Rambo trocou pelo exclusivo uso dos músculos: a dúvida.


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