São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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Enigmas da carne

Filmes inspirados em roteiros de Alain Robbe-Grillet, morto na segunda passada, representam obsessões eróticas

JEAN-LUC DOUIN

Ela era realista demais, no senso balzaquiano, para interpretar o papel de A.", disse Alain Robbe-Grillet sobre Delphine Seyrig, a heroína de "O Ano Passado em Marienbad", cujo roteiro, diálogos e decupagem ele escreveu e que foi dirigido por Alain Resnais em 1961.
Ele continua até hoje a falar dessa história de uma jovem, "bela prisioneira" em uma gaiola de ouro, como "seu filme" -contestando, ao fazê-lo, certas escolhas de Resnais que tornam o trabalho mais "dele".
Ninguém, hoje, contesta a paternidade de Resnais quanto a "Marienbad", já que foi ele quem tornou passional e surrealista um esquema inicialmente destinado a parecer abstrato, opaco, mas é certo que se trata de um filme de duas cabeças, concebido como reação à lógica e à cronologia do cinema convencional, em osmose com a abordagem adotada pelo "nouveau roman".
É fácil descobrir os elementos que fascinam Robbe-Grillet: o cenário (um palácio) concebido como espaço fechado, como uma ilusão de óptica, como um labirinto povoado de subalternos e criados, câmara de ecos repleta de diálogos incoerentes, um dédalo para os caprichos da memória, confusão de vias afetivas e imaginárias da qual todo raciocínio cartesiano está excluído.

Identidade confusa
E, quando Robbe-Grillet realizou seu primeiro filme, "A Imortal", prêmio Louis-Delluc em 1963, ele retomou o mesmo enigma cerebral, o de um homem que se depara com uma mulher de identidade confusa em Istambul [Turquia], uma história não-linear de inquietude obsessiva, o fantasma de uma sedutora vislumbrada no passado, fantasma nascido de uma empregada, de uma dançarina de cabaré e de uma imagem contemplada na entrada de uma mesquita -um quebra-cabeça mental surgido.
Alain Robbe-Grillet fazia parte do grupo Rive-Gauche, intelectuais que, de Jean Cayrol a Agnes Varda, passando por Marguerite Duras e Chris Marker, eram apaixonados pelos processos mentais, pela memória e pelo esquecimento.
"A mentira é uma questão proposta à verdade", ele afirmou. E, adversário resoluto da narrativa realista, adepto do encantamento, do subjetivo, ele assinaria filmes que bloqueiam toda identificação, avançam por meio de desvios à retaguarda e montagens cíclicas, autocorretivas, dodecafônicas, com pesquisas sonoras próximas da música concreta.
Suas construções maquiavélicas, marcadas por pecados minúsculos: labirintos de espelhos, jovens que se desnudam sob qualquer pretexto, seqüestradas, amarradas, flageladas, declinações do mito da escrava sexual, jogos de sadismo erótico, delírios fantasiosos do protagonista impotente e tentação de incesto.

Títulos reveladores
O narrador (ou um dos protagonistas, envolvido em uma intriga policial) deixa que sua imaginação flua, e os títulos são reveladores: "Trans-Europe-Express" (1966), "L'Homme Qui Ment" (O Homem Que Mente, 1968), "L'Eden et Après" (O Paraíso e Depois, 1971), "Glissements Progressifs du Plaisir" (Deslizamentos Progressivos do Prazer, 1974), "Le Jeu avec le Feu" (O Jogo com o Fogo, 1975), "La Belle Captive" (A Bela Cativa, 1984), "Un Bruit Qui Rend Fou (Um Ruído Que Enlouquece, 1995), "C'Est Gradiva Qui Vous Appelle" (Gradiva Falando, 2007).
Em um deles, um roteirista embarca em um trem e visualiza um traficante de drogas que, folheando uma revista sexy, projeta as imagens de uma jovem amarrada a um leito de ferro: encadeamento de visões em abismo. Em outro, um ator em crise de identidade experimenta variações de Don Juan como modelo. Em outro ainda, quadros vivos mostram corpos ensangüentados, tinta vermelha e dança do ventre, ao som de música árabe. Hipóteses sobre a genealogia de um crime, expostas em forma de jogo visual.
Alguns desses filmes sofreram ataque das feministas francesas, outros foram censurados e queimados na Itália. Sua obra é desigual e, por fim, caricatural, mas sem dúvida merece ser redescoberta, devido às percepções e insinuações perspicazes que oferece.


Este texto saiu no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci .


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