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Enigmas da carne
Filmes inspirados em roteiros de Alain Robbe-Grillet, morto na segunda passada, representam obsessões eróticas
JEAN-LUC DOUIN
Ela era realista demais,
no senso balzaquiano,
para interpretar o papel de A.", disse Alain
Robbe-Grillet sobre
Delphine Seyrig, a heroína de
"O Ano Passado em Marienbad", cujo roteiro, diálogos e
decupagem ele escreveu e que
foi dirigido por Alain Resnais
em 1961.
Ele continua até hoje a falar
dessa história de uma jovem,
"bela prisioneira" em uma
gaiola de ouro, como "seu filme" -contestando, ao fazê-lo,
certas escolhas de Resnais que
tornam o trabalho mais "dele".
Ninguém, hoje, contesta a
paternidade de Resnais quanto
a "Marienbad", já que foi ele
quem tornou passional e surrealista um esquema inicialmente destinado a parecer abstrato, opaco, mas é certo que se trata de um filme de duas cabeças, concebido como reação à
lógica e à cronologia do cinema
convencional, em osmose com
a abordagem adotada pelo
"nouveau roman".
É fácil descobrir os elementos que fascinam Robbe-Grillet: o cenário (um palácio)
concebido como espaço fechado, como uma ilusão de óptica,
como um labirinto povoado de
subalternos e criados, câmara
de ecos repleta de diálogos incoerentes, um dédalo para os
caprichos da memória, confusão de vias afetivas e imaginárias da qual todo raciocínio cartesiano está excluído.
Identidade confusa
E, quando Robbe-Grillet realizou seu primeiro filme, "A
Imortal", prêmio Louis-Delluc
em 1963, ele retomou o mesmo
enigma cerebral, o de um homem que se depara com uma
mulher de identidade confusa
em Istambul [Turquia], uma
história não-linear de inquietude obsessiva, o fantasma de
uma sedutora vislumbrada no
passado, fantasma nascido de
uma empregada, de uma dançarina de cabaré e de uma imagem contemplada na entrada
de uma mesquita -um quebra-cabeça mental surgido.
Alain Robbe-Grillet fazia
parte do grupo Rive-Gauche,
intelectuais que, de Jean Cayrol a Agnes Varda, passando
por Marguerite Duras e Chris
Marker, eram apaixonados pelos processos mentais, pela memória e pelo esquecimento.
"A mentira é uma questão
proposta à verdade", ele afirmou. E, adversário resoluto da
narrativa realista, adepto do
encantamento, do subjetivo,
ele assinaria filmes que bloqueiam toda identificação,
avançam por meio de desvios à
retaguarda e montagens cíclicas, autocorretivas, dodecafônicas, com pesquisas sonoras
próximas da música concreta.
Suas construções maquiavélicas, marcadas por pecados
minúsculos: labirintos de espelhos, jovens que se desnudam
sob qualquer pretexto, seqüestradas, amarradas, flageladas,
declinações do mito da escrava
sexual, jogos de sadismo erótico, delírios fantasiosos do protagonista impotente e tentação
de incesto.
Títulos reveladores
O narrador (ou um dos protagonistas, envolvido em uma intriga policial) deixa que sua
imaginação flua, e os títulos são
reveladores: "Trans-Europe-Express" (1966), "L'Homme
Qui Ment" (O Homem Que
Mente, 1968), "L'Eden et
Après" (O Paraíso e Depois,
1971), "Glissements Progressifs
du Plaisir" (Deslizamentos
Progressivos do Prazer, 1974),
"Le Jeu avec le Feu" (O Jogo
com o Fogo, 1975), "La Belle
Captive" (A Bela Cativa, 1984),
"Un Bruit Qui Rend Fou (Um
Ruído Que Enlouquece, 1995),
"C'Est Gradiva Qui Vous Appelle" (Gradiva Falando, 2007).
Em um deles, um roteirista
embarca em um trem e visualiza um traficante de drogas que,
folheando uma revista sexy,
projeta as imagens de uma jovem amarrada a um leito de ferro: encadeamento de visões em
abismo. Em outro, um ator em
crise de identidade experimenta variações de Don Juan como
modelo. Em outro ainda, quadros vivos mostram corpos ensangüentados, tinta vermelha e
dança do ventre, ao som de música árabe. Hipóteses sobre a
genealogia de um crime, expostas em forma de jogo visual.
Alguns desses filmes sofreram ataque das feministas
francesas, outros foram censurados e queimados na Itália.
Sua obra é desigual e, por fim,
caricatural, mas sem dúvida
merece ser redescoberta, devido às percepções e insinuações
perspicazes que oferece.
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci .
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