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Slavoj Zizek
O filósofo estatal
Em janeiro passado, durante o congresso do Partido Popular espanhol, no governo, o primeiro-ministro José María Aznar elogiou o
conceito de Jürgen Habermas de patriotismo-Constituição ("Verfassungspatriotismus"), uma ligação patriótica não
com as raízes étnicas de uma pessoa, mas
com a Constituição democrática do Estado que abrange igualmente todos os cidadãos. Aznar elevou esse conceito a
modelo para a Espanha, com seus problemas separatistas e, talvez zombando,
chegou a propor que o Partido do Povo
declarasse Habermas o filósofo estatal
espanhol.
Em vez de recusar essa referência ao último grande nome da Escola de Frankfurt como um engano ridículo, dever-se-ia identificar o veio de verdade que há
nela: não admira que os "separatistas"
bascos tenham reagido com desconfiança e até designado Habermas como um
"nacionalista alemão"; eles têm a antiga
teoria "leninista" de que, numa situação
de tensões étnicas, a posição aparentemente "neutra" de indiferença para com
a identidade étnica, de reduzir todos os
membros de um Estado a meros cidadãos abstratos, na verdade dá preferência ao grupo étnico mais numeroso.
Na Iugoslávia do final dos anos 80, durante o intenso debate sobre seu futuro,
intelectuais sérvios (exatamente aqueles
que mais tarde optaram por Milosevic)
também defenderam o princípio da "cidadania" abstrata-neutra; talvez, então,
haja mais que uma idiossincrasia ridícula no fato -que é um grande embaraço
para os seguidores ocidentais de Habermas- de que a maioria do grupo Praxis,
constituído de filósofos marxistas sérvios próximos à tradição da Escola de
Frankfurt, tenha se tornado reduto de
nacionalistas sérvios, alguns (como Mihajlo Markovic) até promotores diretos e
importantes ideólogos de Milosevic.
Quando no final dos anos 80 Zoran
Djindjic, hoje primeiro-ministro sérvio,
publicou um livro em que defendia um
papel de unificador mais forte para a Sérvia na Iugoslávia, ele o intitulou "A Iugoslávia como Projeto Inacabado", uma
clara referência ao moto de Habermas da
modernidade como projeto inacabado.
Confrontados com esses fatos, os seguidores da Escola de Frankfurt os rejeitam como um mistério inacreditável, um
princípio de loucura; no entanto vamos
supor que os seguidores de Jacques Lacan tomassem o mesmo caminho. É fácil
imaginar as análises viciosas sobre como
esse compromisso seria um resultado
necessário da teoria lacaniana, segundo
as linhas daqueles que atribuem ao desconstrutivismo a responsabilidade pela
negação do Holocausto.
Em 1990, Habermas também expressou sua opinião de que as repúblicas "separatistas" como a Eslovênia ou a Croácia não possuem substância democrática
suficiente para sobreviver como Estados
modernos soberanos. Assim ele articulou um lugar-comum: não apenas para
os sérvios mas até para a maioria das potências ocidentais a Sérvia evidentemente era considerada o único grupo étnico
com substância suficiente para criar seu
próprio Estado.
Mais tarde, durante os anos 90, até os
críticos democráticos radicais de Milosevic que recusavam o nacionalismo sérvio
agiram segundo a suposição de que, entre as ex-repúblicas iugoslavas, somente
a Sérvia demonstrava um potencial democrático: depois de derrubar Milosevic, somente a Sérvia poderia se tornar
um Estado democrático pujante, enquanto os outros países ex-iugoslavos
seriam "provincianos" demais para sustentar seu próprio Estado democrático.
Ecos de Engels
Isso não é o eco dos
conhecidos comentários exaltados de
Friedrich Engels (1820-1895) sobre os pequenos países balcânicos serem politicamente reacionários, já que sua própria
existência é uma reação, uma sobrevivência do passado? Encontramos aqui
um belo caso de "racismo reflexivo": o
racismo que assume a forma de rejeitar o
outro como racista, intolerante etc.
Esse mesmo viés nacionalista também
é discernível no recente aumento do antiamericanismo na Europa Ocidental.
Não admira que esse antiamericanismo
seja mais forte nos "grandes" países europeus, especialmente na França e na
Alemanha: ele faz parte de sua resistência à globalização.
Ouve-se frequentemente a queixa de
que a recente tendência à globalização
ameaça a soberania dos países-Estado;
aqui, porém, é preciso qualificar essa
afirmação: que países estão mais expostos a essa ameaça? Não são os pequenos
países, mas as (ex) potências mundiais
de segunda linha, países como Reino
Unido, Alemanha e França: o que eles temem é que, uma vez imersos no império
global emergente, sejam reduzidos ao
mesmo nível de, por exemplo, Áustria,
Bélgica ou até Luxemburgo.
A recusa da "americanização" na França, compartilhada por muitos nacionalistas de esquerda e de direita, é portanto
em última instância a recusa a aceitar o
fato de que a própria França está perdendo seu papel hegemônico na Europa. O
nivelamento de peso entre países-Estado
maiores e menores deveria assim ser
contado entre os efeitos benéficos da globalização: sob o desprezo pelos novos
países europeus do Leste pós-comunista
é fácil distinguir os contornos do narcisismo ferido das "grandes nações" européias. De onde, então, vem essa perigosa
interpretação de Habermas? Não se deve
acusá-lo de tendências antidemocráticas
secretas; é que sobretudo ele -e, com
ele, a forma predominante de liberalismo de esquerda- esqueceu a lição básica que se deve tirar hoje de Carl Schmitt
(1888-1985), que envolve a divisão política entre amigo e inimigo.
Essa divisão nunca é apenas a constatação de uma diferença factual: o inimigo é
por definição invisível em sua dimensão
crucial, ele se parece com um de nós, não
pode ser diretamente identificado, e é
por isso que o maior problema e a tarefa
da luta política é fornecer/construir a
imagem identificável do inimigo (isso
também deixa claro por que os judeus
são o inimigo "par excellence": não apenas eles escondem sua verdadeira imagem ou contornos mas, em última instância, não há nada sob suas aparências
enganosas. Falta aos judeus a "forma interna" que cabe a qualquer identidade
nacional adequada: eles são uma não-nação entre nações, sua substância nacional reside exatamente na ausência de
substância, numa plasticidade infinita e
amorfa).
Em suma, a "identificação do inimigo"
é sempre um procedimento formativo
que, em contraste com as aparências enganosas, esclarece (constrói) a "verdadeira face" do inimigo. Schmitt refere-se
aqui diretamente à categoria kantiana do
"Einbildungskraft", o poder transcendental da imaginação: para identificar o
inimigo, não basta a subclassificação
conceitual em categorias preexistentes; é
preciso "esquematizar" a figura lógica do
inimigo, dotando-o de feições concretas
tangíveis que o tornem um alvo apropriado de ódio e luta.
Esquematizar o inimigo
Seguindo essas linhas, somos tentados a afirmar
que, depois de 1990, após o colapso dos
países comunistas que forneciam a figura do inimigo na Guerra Fria, o poder de
imaginação ocidental entrou numa década de confusão e ineficácia, procurando "esquematizações" adequadas da figura do inimigo, passando dos chefes
dos cartéis da droga à série de chefes
guerreiros dos chamados "países vilões"
(Saddam, Noriega, Aidid, Milosevic),
sem se definir numa imagem central; somente com o 11 de setembro essa imaginação recuperou sua capacidade, construindo a figura de Bin Laden, o extremista islâmico, e da Al Qaeda, sua rede
"invisível".
O que isso significa é que nossas democracias liberais, pluralistas e tolerantes
continuam profundamente "schmittianas": elas continuam dependendo do
"Einbildungskraft" político para lhes
fornecer a figura adequada que torna visível o inimigo invisível. Longe de cancelar a lógica "binária" amigo/inimigo, o
fato de que esse inimigo é definido como
o adversário extremista da tolerância
pluralista apenas lhe acrescenta um viés
reflexivo -e essa demanda das sociedades ocidentais liberais por uma imagem
adequada do inimigo é o que Habermas
não leva em conta.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana,
autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um
Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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