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Ponto de fuga
Um círculo virtuoso
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A abertura do filme "Manhattan",
dirigido por Woody Allen em 1979,
é de beleza incomparável. No acentuado retângulo do cinemascope,
sucedem-se imagens em preto e branco de
Nova York. São acompanhadas pela música de Gershwin, "Rhapsody in Blue", expandindo-se em felicidade apoteótica. Ao
mesmo tempo, o protagonista, encarnado
pelo próprio diretor, ensaia frases para o
início de um romance, ditas em "off". Correspondem ao que vem mostrado na tela.
Estabelece-se porém, entre elas, uma ligação curiosa. As frases se sucedem, substituindo-se umas às outras, insatisfatórias,
cômicas, meio chochas, meio kitsch, soando falso. Mas sublinham, pelo contraste, a
"verdade" daquilo que se vê, sua convicção
poética, afirmando a intuição de que a cidade, ao mesmo tempo real e mítica, vem exposta ali. As frases pronunciadas por
Woody Allen não são inúteis: pela sua fraqueza, exaltam o visível, mas sugerem ainda significações que parecem se efetivar
graças às vistas, numa plenitude fora dos
conceitos.
Um pequeno livro, que acompanha o nš
600 da revista francesa "Cahiers du Cinéma", de algum modo lembra o exercício
que inicia "Manhattan". Cruza o sentido do
que se vê e o sentido do que se lê. É intitulado "Cine-Mangá". Quem o organizou foi o
diretor japonês Takeshi Kitano, autor de
"Zatôichi" e "Hanna-Bi" (em DVD há seu
"Brother", Paris Filmes, e "Dolls", California Filmes). Kitano selecionou 69 fotos, nada "artísticas", às vezes divertidas, e propôs
um jogo: escolher quatro dentre elas, acrescentar-lhes legendas breves e contar assim
uma pequena história. Ele próprio montou
14; convidou ainda outros cineastas que
puseram mãos à obra.
Ekphrasis
Eis os mecanismos das historinhas inventadas por Kitano: no elo horizontal, já que a
legenda se encontra ao lado da foto, e não
embaixo, há uma dinâmica circular, incessante, de reenvios que alimentam os sentidos mútuos. Na sucessão vertical, os episódios seguem, elípticos, humorísticos, mas
um pouco dolorosos também.
Takeshi Kitano constrói assim a história
"k", no livro "Cine-Mangá": 1) "Menino,
ele sonhou com uma carreira artística e
treinou com entusiasmo" (foto: um adolescente com camiseta preta e toalha à volta do
pescoço, na frente de uma parede de espelhos). 2) "Música", (foto: um teclado visto
de cima, perfeitamente paralelo às margens
da imagem); 3) "Sapateado" (foto: par de
sapatos, o esquerdo virado com a sola para
cima mostrando a chapa de metal na ponta,
contra uma parede clara, um pouco manchada, que corta o enquadramento de modo oblíquo). 4) "Ele se tornou comediante"
(foto: diante de uma parede creme com alguns avisos em japonês, dois personagens
vestindo paletós lilases. O de trás, com cara
concentrada, parece tocar um violão. O da
frente, com uma peruca grotesca e um sorriso estranho, estende a mão direita, como
se quisesse cumprimentar o fotógrafo).
Inútil prosseguir: é impossível ligar texto e
imagem, quando esta se encontra ausente.
A descrição não substitui o olhar.
Ut pictura...
Imagens e palavras viajam em mundos
paralelos. Como Paolo e Francesca, no Inferno, que se amam e não podem se tocar.
Porém o segredo da união eterna está no
vazio entre ambos: dele nasce um ser único
e novo. Os quadros dependem do título; os
títulos dependem do quadro. Os abstratos
tentaram eliminar o sentido das denominações.
Em vão: uma "Composição Nona", por
exemplo, revela tanto! Traz o projeto de
compor, traz o princípio da série, traz a recusa de outro sentido além da forma. "Sem
Nome", também, diz muito. Porque a idéia
de denominação está pressuposta. O artista
decreta: não quero que meu quadro tenha
título. A obra responde: a ausência de título
é o título deste quadro...
Permeio
No livro "Cine-Mangá", alguns cineastas
foram mais prolixos. Gus van Sant escreve
uma história detalhada e paralela às imagens que escolheu. Persiste o mistério. O livro demonstra implicitamente o caráter irredutível de uma à outra. Uma imagem vale mil palavras? Bela vantagem. Mil imagens não valem uma palavra.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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