São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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Ponto de fuga

Um círculo virtuoso

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A abertura do filme "Manhattan", dirigido por Woody Allen em 1979, é de beleza incomparável. No acentuado retângulo do cinemascope, sucedem-se imagens em preto e branco de Nova York. São acompanhadas pela música de Gershwin, "Rhapsody in Blue", expandindo-se em felicidade apoteótica. Ao mesmo tempo, o protagonista, encarnado pelo próprio diretor, ensaia frases para o início de um romance, ditas em "off". Correspondem ao que vem mostrado na tela.
Estabelece-se porém, entre elas, uma ligação curiosa. As frases se sucedem, substituindo-se umas às outras, insatisfatórias, cômicas, meio chochas, meio kitsch, soando falso. Mas sublinham, pelo contraste, a "verdade" daquilo que se vê, sua convicção poética, afirmando a intuição de que a cidade, ao mesmo tempo real e mítica, vem exposta ali. As frases pronunciadas por Woody Allen não são inúteis: pela sua fraqueza, exaltam o visível, mas sugerem ainda significações que parecem se efetivar graças às vistas, numa plenitude fora dos conceitos.
Um pequeno livro, que acompanha o nš 600 da revista francesa "Cahiers du Cinéma", de algum modo lembra o exercício que inicia "Manhattan". Cruza o sentido do que se vê e o sentido do que se lê. É intitulado "Cine-Mangá". Quem o organizou foi o diretor japonês Takeshi Kitano, autor de "Zatôichi" e "Hanna-Bi" (em DVD há seu "Brother", Paris Filmes, e "Dolls", California Filmes). Kitano selecionou 69 fotos, nada "artísticas", às vezes divertidas, e propôs um jogo: escolher quatro dentre elas, acrescentar-lhes legendas breves e contar assim uma pequena história. Ele próprio montou 14; convidou ainda outros cineastas que puseram mãos à obra.

Ekphrasis
Eis os mecanismos das historinhas inventadas por Kitano: no elo horizontal, já que a legenda se encontra ao lado da foto, e não embaixo, há uma dinâmica circular, incessante, de reenvios que alimentam os sentidos mútuos. Na sucessão vertical, os episódios seguem, elípticos, humorísticos, mas um pouco dolorosos também.
Takeshi Kitano constrói assim a história "k", no livro "Cine-Mangá": 1) "Menino, ele sonhou com uma carreira artística e treinou com entusiasmo" (foto: um adolescente com camiseta preta e toalha à volta do pescoço, na frente de uma parede de espelhos). 2) "Música", (foto: um teclado visto de cima, perfeitamente paralelo às margens da imagem); 3) "Sapateado" (foto: par de sapatos, o esquerdo virado com a sola para cima mostrando a chapa de metal na ponta, contra uma parede clara, um pouco manchada, que corta o enquadramento de modo oblíquo). 4) "Ele se tornou comediante" (foto: diante de uma parede creme com alguns avisos em japonês, dois personagens vestindo paletós lilases. O de trás, com cara concentrada, parece tocar um violão. O da frente, com uma peruca grotesca e um sorriso estranho, estende a mão direita, como se quisesse cumprimentar o fotógrafo). Inútil prosseguir: é impossível ligar texto e imagem, quando esta se encontra ausente. A descrição não substitui o olhar.

Ut pictura...
Imagens e palavras viajam em mundos paralelos. Como Paolo e Francesca, no Inferno, que se amam e não podem se tocar. Porém o segredo da união eterna está no vazio entre ambos: dele nasce um ser único e novo. Os quadros dependem do título; os títulos dependem do quadro. Os abstratos tentaram eliminar o sentido das denominações.
Em vão: uma "Composição Nona", por exemplo, revela tanto! Traz o projeto de compor, traz o princípio da série, traz a recusa de outro sentido além da forma. "Sem Nome", também, diz muito. Porque a idéia de denominação está pressuposta. O artista decreta: não quero que meu quadro tenha título. A obra responde: a ausência de título é o título deste quadro...

Permeio
No livro "Cine-Mangá", alguns cineastas foram mais prolixos. Gus van Sant escreve uma história detalhada e paralela às imagens que escolheu. Persiste o mistério. O livro demonstra implicitamente o caráter irredutível de uma à outra. Uma imagem vale mil palavras? Bela vantagem. Mil imagens não valem uma palavra.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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