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+ brasil 502 d.C.
Gotas de racionalidade
José Arthur Giannotti
É muito intrigante a maneira pela
qual a opinião pública muda de
rosto. Quando precisou de racionalidade, o Plano Real deu certo.
As instabilidades da inflação haviam
destruído o ritmo normal do cotidiano,
tornando a vida impossível. FHC foi eleito nesse movimento em favor da previsibilidade, mas a racionalidade de seu governo ficou na dependência de sua agilidade em insuflar cada projeto de reforma. O presidente, como déspota esclarecido, agia como artista de circo equilibrando pratos no ar. Esse modo de governar foi posto em xeque pela crise de
energia. A necessidade de um presidente
malabarista advinha sobretudo da falência da forma de Estado criada durante a
era Vargas, por conseguinte, da necessidade de refundá-la em condições peculiares. Mas esse projeto atola no meio do
caminho, a aliança política responsável
pela nova governabilidade também dificulta que as mudanças formais se efetuem nas pontas concretas da administração. É sintomático que se aponte como um dos motivos da falência do processo de reforma e privatização do sistema energético a ausência de alguém como Sérgio Motta.
Conforme o governo perde o empuxo
reformista, ele mesmo se transforma então num Corpo de Bombeiros apagando
incêndios imprevistos. Por sua vez, a
oposição até agora não conseguiu apresentar uma alternativa racional à crise de
Estado, na medida em que, toda ela se organizando em torno da bandeira da moralidade pública, desperta mais paixões
do que argumentos. E assim, por todos
os lados, desponta a irracionalidade e os
pratos se esborracham no chão.
Não há dúvida de que o governo tem
grande responsabilidade nisso tudo, mas
para todos nós importa corrigir os erros
cometidos. Em outras palavras, se o governo FHC decepcionou até um poste,
não é pela via das CPIs da corrupção que
se vai emendá-lo, cabe encontrar as condições técnicas e políticas para superar o
impasse. A população respondeu de maneira irada, mas sábia, à necessidade do
racionamento, mas ainda surgem ondas
de histerismo. Para isso por certo contribuiu a política de espremer as classes
médias sem mesmo lhes conceder compensações simbólicas. E agora, quando a
aliança governista entra em crise e a previsibilidade do cotidiano é ameaçada, essas classes de pouco voto, mas de muita
voz, passaram a conduzir o coro da irrazão e a tônica da opinião pública. Pensar
a crise pela raiz não implica repensar os
instrumentos pelos quais ela pode ser superada? Se apostamos na democracia,
necessitamos assumir seus pressupostos. Um deles diz respeito à dialética entre política e moralidade.
Meus últimos artigos, ao tocar nesse
assunto, tiveram uma ressonância descabida, na medida em que a discussão
acadêmica está sendo sobredeterminada
pela luta em torno do butim da aliança
governista, se é que haverá algum butim.
Como não creio que um único partido
possa realizar a tarefa de refundar o Estado, como acredito que somente a alternância no poder será capaz de traçar um
caminho em ziguezague que nos leve para fora do redemoinho da crise, é melhor
continuar minha toada, esperando assim
contribuir para iluminar o jogo político
como um todo.
Sabemos que sempre foram complicadas as relações entre moral e política.
Mas não é preciso escrever um besteirol
sobre a amizade na Grécia Antiga para
entender a dificuldade. Pelo contrário,
convém deixar a política grega no seu lugar, quando o corpo político ainda não
estava cindido, e tratar de compreender
o modo pelo qual a política se faz hoje em
dia enfrentando a luta radical que o atravessa. Importa reconhecer essa fenda, seja qual for a expressão dual pela qual a
designamos -"proletários e burgueses", "amigos e inimigos" e assim por
diante- e a partir dela examinar como
os atores, cujas ações podem levar à concórdia ou à guerra, devam ser julgados
do ponto de vista moral.
Sob esse aspecto Kant é bom guia. Não
foi ele que trouxe a Revolução Francesa
para o nível do pensamento, reformulando conceito de liberdade depois da
experiência revolucionária? Além do
mais, visto que o rigorismo de sua moral
é reconhecido por todos, não se corre o
risco de ser acusado de defender a imoralidade e a irresponsabilidade públicas,
quando se tiram as consequências de
suas teses. Como ninguém salienta o caráter sagrado da lei moral, vê no contrato
social um dever ser -reconhece, contudo, que nem todos os indivíduos podem
assumi-lo a contento, pois ainda não
aprenderam a lidar com suas paixões e
sentidos, inseridos como estão em instituições precárias. Somente conseguem
formar um ordenamento jurídico, eivado de defeitos. Como devem, pois, o cidadão comum e notadamente o político
moralista se comportar diante de uma lei
injusta? Simplesmente obedecê-la, responde o filósofo, até que os cidadãos
amadureçam e encontrem uma solução
republicana para a dificuldade.
Por isso explicita, no primeiro apêndice ao seu "Tratado sobre a Paz Perpétua", que a razão dá seu aval à ação injusta, desde que aja tendo a justiça no horizonte de seu comportamento. Em poucas palavras, para Kant, como aliás para
tantos outros, é melhor uma Constituição injusta do que a ausência dela, é melhor o Estado de direito do que uma revolução. Desse modo, é possível agir
conforme o dever cometendo de fato
uma imoralidade. Aos elementos do corpo político é permitido assim continuar
a agir moralmente quando aplicam uma
lei imoral.
É para evitar esse constrangimento que
recuso o princípio kantiano de que todas
as ações estejam subordinadas à lei moral. Deixo de lado esse princípio da determinação completa das ações, além do
mais, porque a toda hora experimentamos regras morais conflitantes, impossíveis de serem situadas num único sistema da razão. Por isso separo aqueles casos que podem ser ditos morais ou imorais daqueles outros nos quais o critério
da moralidade não se aplica.
Não estou afirmando que esses casos
excepcionais não possam ser julgados de
outras perspectivas, por exemplo, de como no final das contas se mostram necessários ao bem público. Não estou com
isso defendendo que os fins justificam
todos os meios, mas simplesmente lançando a idéia de que há certos fins que
também se constituem contemporaneamente com esses meios, que o perfil de
tais fins se desenha conforme se exercita
a exploração das veredas que levam a
eles. Em suma, algumas vezes se age e depois se descobre a racionalidade do ato, a
revolução se faz para que o futuro se faça
presente. Mas, se a razão encontra sua
própria razão no meio do caminho, a invenção e a revolta igualmente não descobrem seu abrigo no meio do percurso?
Desse modo, se minha tese é mais fraca
do que aquela defendida por Kant, creio
que ela se mostra mais adequada para
entender uma forma de sociabilidade em
que o risco espreita a cada passo e o ato
de decisão soberana se dispersa na multiplicidade de atos sem lugar, como
acontece na sociedade democrática.
Não é tão estranho ir além da bipolaridade do bem e do mal. Costumamos dizer que uma pessoa tem bom ou mau caráter, mas às vezes que não tem caráter
algum. Queremos então dizer que ela
não é má, mas se comporta como "maria-vai-com-as-outras", flutuando ao sabor das circunstâncias. Se a linguagem,
de um lado, distingue o bom, o mau e o
sem-caráter, de outro, o moral, o imoral
e o amoral, qualquer indivíduo alfabetizado não tem a obrigação de usar essas
expressões adequadamente? Mas, quando um professor emérito ou um emérito
professor pronuncia "imoral" todas as
vezes que encontra a palavra "amoral"
para fazer de conta que está pensando e
sacar acusações pessoais, não é porque
passou a ter mau caráter?
Por fim, ao abrir o espaço para a amoralidade na política, nossos instrumentos de análise se tornam mais finos. Cabe
dizer, por exemplo, que um político A
age amoralmente quando se alia a um
político corrupto B para implementar
um projeto de modernização do país. Isso porque B, tendo poder, pode inibir a
execução desse projeto. Por certo A será
prejudicado pela aliança, mas, se com isso diminuir a base do poder de B, firmada na corrupção, termina por engrossar
o movimento pela moralidade na política. Se isso de fato acontecer, se o ato inicialmente amoral contribuir para que a
política passe a funcionar num nível
mais rigoroso de moralidade, o risco, de
sua inteira responsabilidade, valeu a pena e legitimou a aventura.
Essa dialética, entretanto, não ocorre
no caso de um político A se aliar a um
político corrupto B se A transformar a
moralidade em sua bandeira principal.
Ao se aliar com B, está conferindo a ele
certificado de moralidade, de sorte que o
risco incorporado em seu ato confirma o
status quo, em vez de gerar efeitos negativos para B, pôr em xeque sua representatividade social. A aliança é imoral desde o início, pois não contém nenhuma
negatividade em si mesma.
No entanto, se uma conduta foge da
bipolaridade do bem e do mal, não é
por isso que tudo é permitido. Apenas
é preciso ter o cuidado de examinar
como cada passo no processo de racionalização dos comportamentos
cria igualmente formas correspondentes de infração. Não há pênalti no
jogo de baralho. Do mesmo modo, a
corrupção que solapa a democracia é
muito diferente daquela outra que viceja na monarquia absoluta, quando
o rei dispensa benesses enfiando a
mão no tesouro como se fosse propriedade sua, indiferente à distinção
posterior entre o público e o privado.
A corrupção que infringe as regras
democráticas depende do funcionamento de uma burocracia anônima,
na qual a responsabilidade se dissolve
nos meandros de uma autoridade que
não se concentra num ponto do sistema político. Daí a conivência entre o
burocrata e o corrupto. Cabe à opinião pública denunciá-la, mas tomando o devido cuidado para que não se
inviabilize uma forma de administração pública em que o processo de racionalizar as demandas da vida cotidiana se exercita pelo jogo de pressões. Para que haja esse jogo e seus
agentes, para que a administração se
torne pública e o agente, um funcionário responsável, é preciso proteger
o espaço de atuação do cargo, com
seus riscos de bom ou mau êxito.
Se então uma política da transparência total inviabiliza a democracia, é
preciso montar um sistema eficaz para corrigir os erros cometidos, separando erro e infração intencional. Sob
esse aspecto, a possibilidade de certas
formas específicas de corrupção precisa ser mantida pelo processo de
condenar cada um de seus casos. De
outro modo, a transparência total será equivalente à opacidade total do
sistema totalitário. É preciso conviver
com a contradição entre democracia e
corrupção para que se saiba o bom lado da opção.
José Arthur Giannotti é filósofo e professor
emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia
das Letras). Ele escreve mensalmente na seção
"Brasil 502 d.C.".
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