São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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+ brasil 502 d.C.

Gotas de racionalidade

José Arthur Giannotti
É muito intrigante a maneira pela qual a opinião pública muda de rosto. Quando precisou de racionalidade, o Plano Real deu certo. As instabilidades da inflação haviam destruído o ritmo normal do cotidiano, tornando a vida impossível. FHC foi eleito nesse movimento em favor da previsibilidade, mas a racionalidade de seu governo ficou na dependência de sua agilidade em insuflar cada projeto de reforma. O presidente, como déspota esclarecido, agia como artista de circo equilibrando pratos no ar. Esse modo de governar foi posto em xeque pela crise de energia. A necessidade de um presidente malabarista advinha sobretudo da falência da forma de Estado criada durante a era Vargas, por conseguinte, da necessidade de refundá-la em condições peculiares. Mas esse projeto atola no meio do caminho, a aliança política responsável pela nova governabilidade também dificulta que as mudanças formais se efetuem nas pontas concretas da administração. É sintomático que se aponte como um dos motivos da falência do processo de reforma e privatização do sistema energético a ausência de alguém como Sérgio Motta.
Conforme o governo perde o empuxo reformista, ele mesmo se transforma então num Corpo de Bombeiros apagando incêndios imprevistos. Por sua vez, a oposição até agora não conseguiu apresentar uma alternativa racional à crise de Estado, na medida em que, toda ela se organizando em torno da bandeira da moralidade pública, desperta mais paixões do que argumentos. E assim, por todos os lados, desponta a irracionalidade e os pratos se esborracham no chão.
Não há dúvida de que o governo tem grande responsabilidade nisso tudo, mas para todos nós importa corrigir os erros cometidos. Em outras palavras, se o governo FHC decepcionou até um poste, não é pela via das CPIs da corrupção que se vai emendá-lo, cabe encontrar as condições técnicas e políticas para superar o impasse. A população respondeu de maneira irada, mas sábia, à necessidade do racionamento, mas ainda surgem ondas de histerismo. Para isso por certo contribuiu a política de espremer as classes médias sem mesmo lhes conceder compensações simbólicas. E agora, quando a aliança governista entra em crise e a previsibilidade do cotidiano é ameaçada, essas classes de pouco voto, mas de muita voz, passaram a conduzir o coro da irrazão e a tônica da opinião pública. Pensar a crise pela raiz não implica repensar os instrumentos pelos quais ela pode ser superada? Se apostamos na democracia, necessitamos assumir seus pressupostos. Um deles diz respeito à dialética entre política e moralidade.
Meus últimos artigos, ao tocar nesse assunto, tiveram uma ressonância descabida, na medida em que a discussão acadêmica está sendo sobredeterminada pela luta em torno do butim da aliança governista, se é que haverá algum butim. Como não creio que um único partido possa realizar a tarefa de refundar o Estado, como acredito que somente a alternância no poder será capaz de traçar um caminho em ziguezague que nos leve para fora do redemoinho da crise, é melhor continuar minha toada, esperando assim contribuir para iluminar o jogo político como um todo.
Sabemos que sempre foram complicadas as relações entre moral e política. Mas não é preciso escrever um besteirol sobre a amizade na Grécia Antiga para entender a dificuldade. Pelo contrário, convém deixar a política grega no seu lugar, quando o corpo político ainda não estava cindido, e tratar de compreender o modo pelo qual a política se faz hoje em dia enfrentando a luta radical que o atravessa. Importa reconhecer essa fenda, seja qual for a expressão dual pela qual a designamos -"proletários e burgueses", "amigos e inimigos" e assim por diante- e a partir dela examinar como os atores, cujas ações podem levar à concórdia ou à guerra, devam ser julgados do ponto de vista moral.
Sob esse aspecto Kant é bom guia. Não foi ele que trouxe a Revolução Francesa para o nível do pensamento, reformulando conceito de liberdade depois da experiência revolucionária? Além do mais, visto que o rigorismo de sua moral é reconhecido por todos, não se corre o risco de ser acusado de defender a imoralidade e a irresponsabilidade públicas, quando se tiram as consequências de suas teses. Como ninguém salienta o caráter sagrado da lei moral, vê no contrato social um dever ser -reconhece, contudo, que nem todos os indivíduos podem assumi-lo a contento, pois ainda não aprenderam a lidar com suas paixões e sentidos, inseridos como estão em instituições precárias. Somente conseguem formar um ordenamento jurídico, eivado de defeitos. Como devem, pois, o cidadão comum e notadamente o político moralista se comportar diante de uma lei injusta? Simplesmente obedecê-la, responde o filósofo, até que os cidadãos amadureçam e encontrem uma solução republicana para a dificuldade.
Por isso explicita, no primeiro apêndice ao seu "Tratado sobre a Paz Perpétua", que a razão dá seu aval à ação injusta, desde que aja tendo a justiça no horizonte de seu comportamento. Em poucas palavras, para Kant, como aliás para tantos outros, é melhor uma Constituição injusta do que a ausência dela, é melhor o Estado de direito do que uma revolução. Desse modo, é possível agir conforme o dever cometendo de fato uma imoralidade. Aos elementos do corpo político é permitido assim continuar a agir moralmente quando aplicam uma lei imoral.
É para evitar esse constrangimento que recuso o princípio kantiano de que todas as ações estejam subordinadas à lei moral. Deixo de lado esse princípio da determinação completa das ações, além do mais, porque a toda hora experimentamos regras morais conflitantes, impossíveis de serem situadas num único sistema da razão. Por isso separo aqueles casos que podem ser ditos morais ou imorais daqueles outros nos quais o critério da moralidade não se aplica.
Não estou afirmando que esses casos excepcionais não possam ser julgados de outras perspectivas, por exemplo, de como no final das contas se mostram necessários ao bem público. Não estou com isso defendendo que os fins justificam todos os meios, mas simplesmente lançando a idéia de que há certos fins que também se constituem contemporaneamente com esses meios, que o perfil de tais fins se desenha conforme se exercita a exploração das veredas que levam a eles. Em suma, algumas vezes se age e depois se descobre a racionalidade do ato, a revolução se faz para que o futuro se faça presente. Mas, se a razão encontra sua própria razão no meio do caminho, a invenção e a revolta igualmente não descobrem seu abrigo no meio do percurso?
Desse modo, se minha tese é mais fraca do que aquela defendida por Kant, creio que ela se mostra mais adequada para entender uma forma de sociabilidade em que o risco espreita a cada passo e o ato de decisão soberana se dispersa na multiplicidade de atos sem lugar, como acontece na sociedade democrática.
Não é tão estranho ir além da bipolaridade do bem e do mal. Costumamos dizer que uma pessoa tem bom ou mau caráter, mas às vezes que não tem caráter algum. Queremos então dizer que ela não é má, mas se comporta como "maria-vai-com-as-outras", flutuando ao sabor das circunstâncias. Se a linguagem, de um lado, distingue o bom, o mau e o sem-caráter, de outro, o moral, o imoral e o amoral, qualquer indivíduo alfabetizado não tem a obrigação de usar essas expressões adequadamente? Mas, quando um professor emérito ou um emérito professor pronuncia "imoral" todas as vezes que encontra a palavra "amoral" para fazer de conta que está pensando e sacar acusações pessoais, não é porque passou a ter mau caráter?
Por fim, ao abrir o espaço para a amoralidade na política, nossos instrumentos de análise se tornam mais finos. Cabe dizer, por exemplo, que um político A age amoralmente quando se alia a um político corrupto B para implementar um projeto de modernização do país. Isso porque B, tendo poder, pode inibir a execução desse projeto. Por certo A será prejudicado pela aliança, mas, se com isso diminuir a base do poder de B, firmada na corrupção, termina por engrossar o movimento pela moralidade na política. Se isso de fato acontecer, se o ato inicialmente amoral contribuir para que a política passe a funcionar num nível mais rigoroso de moralidade, o risco, de sua inteira responsabilidade, valeu a pena e legitimou a aventura.
Essa dialética, entretanto, não ocorre no caso de um político A se aliar a um político corrupto B se A transformar a moralidade em sua bandeira principal. Ao se aliar com B, está conferindo a ele certificado de moralidade, de sorte que o risco incorporado em seu ato confirma o status quo, em vez de gerar efeitos negativos para B, pôr em xeque sua representatividade social. A aliança é imoral desde o início, pois não contém nenhuma negatividade em si mesma.
No entanto, se uma conduta foge da bipolaridade do bem e do mal, não é por isso que tudo é permitido. Apenas é preciso ter o cuidado de examinar como cada passo no processo de racionalização dos comportamentos cria igualmente formas correspondentes de infração. Não há pênalti no jogo de baralho. Do mesmo modo, a corrupção que solapa a democracia é muito diferente daquela outra que viceja na monarquia absoluta, quando o rei dispensa benesses enfiando a mão no tesouro como se fosse propriedade sua, indiferente à distinção posterior entre o público e o privado.
A corrupção que infringe as regras democráticas depende do funcionamento de uma burocracia anônima, na qual a responsabilidade se dissolve nos meandros de uma autoridade que não se concentra num ponto do sistema político. Daí a conivência entre o burocrata e o corrupto. Cabe à opinião pública denunciá-la, mas tomando o devido cuidado para que não se inviabilize uma forma de administração pública em que o processo de racionalizar as demandas da vida cotidiana se exercita pelo jogo de pressões. Para que haja esse jogo e seus agentes, para que a administração se torne pública e o agente, um funcionário responsável, é preciso proteger o espaço de atuação do cargo, com seus riscos de bom ou mau êxito.
Se então uma política da transparência total inviabiliza a democracia, é preciso montar um sistema eficaz para corrigir os erros cometidos, separando erro e infração intencional. Sob esse aspecto, a possibilidade de certas formas específicas de corrupção precisa ser mantida pelo processo de condenar cada um de seus casos. De outro modo, a transparência total será equivalente à opacidade total do sistema totalitário. É preciso conviver com a contradição entre democracia e corrupção para que se saiba o bom lado da opção.


José Arthur Giannotti é filósofo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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