São Paulo, domingo, 24 de junho de 2001

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+ sociedade

Intelectuais como catalisadores de complexidade

Pensamento arriscado

por Hans Ulrich Gumbrecht

No século 18, quando o mundo ainda pensava em francês, os precursores dos "intelectuais" de nossos dias se chamavam "les philosophes". No correspondente artigo da "Encyclopédie" de D'Alembert e Diderot pressupunha-se que tais "philosophes", para poderem pensar meticulosamente e em paz, tinham de guardar distância das tribulações do mundo, sem no entanto "olhar o mundo como um exílio". O que os deve distinguir das "demais pessoas" é a capacidade de "auto-reflexão", ou seja, de identificação e análise dos "fundamentos da ação humana". O filósofo, tal como todas as pessoas, deve "encontrar seu caminho na noite, mas a luz de um facho lhe segue à frente". Com alguma cautela sugere-se aqui que os intelectuais, em virtude de suas conquistas racionais, têm o direito de reclamar o papel de guias e, meio século mais tarde, a imagem universal da Revolução Francesa viria a confirmar e especificar largamente essa pretensão: aos "philosophes", figuras como Voltaire, Helvetius e Condorcet, Diderot, Mablis e Rousseau, foi atribuída a honra (até hoje raramente contestada) de terem inspirado os heróis políticos da revolução, de terem inspirado o público do Iluminismo a seus feitos individuais e coletivos.
Um século mais tarde e de novo na França, no contexto do caso Dreyfus, nasceu o conceito de "intelectual" e o respectivo vocábulo, que se mantiveram até o presente. Após a acusação, condenação e degradação do capitão judeu Alfred Dreyfus nos anos 1894-5 por suposta espionagem para a Alemanha, foi uma minoria de "intelectuais" que negou apoio ao consenso de indignação anti-semita na sociedade francesa.
Mesmo quando o romancista Émile Zola, com uma carta de protesto ao presidente da República publicada pelo diário "Aurore", em janeiro de 1898, desencadeou uma enxurrada de reações e decisões que culminaram numa revisão do veredicto, a família Dreyfus estava convencida de que essa intervenção de uma "elite intelectual" na certa prejudicaria os interesses de seu parente. Mas Zola por fim teve êxito, e sua coragem, a par de seu talento de polemista, por muito tempo dotou intelectuais engajados como ele de uma aura fulgurante.
Outros cem anos mais tarde, dessa aura parece não ter restado mais que a pretensão dos intelectuais de serem ouvidos e levados a sério em todas as questões políticas, embora hoje na verdade só digam ou escrevam o que deles todos esperam. Poucos foram os intelectuais públicos, por exemplo, que não fizeram valer seu prestígio a favor de Al Gore nas últimas eleições presidenciais norte-americanas (e quase nenhum deles aduziu razões mais convincentes que o escárnio pelo concorrente nada intelectual de Gore, George W. Bush). Assim, pareceu um tedioso automatismo quando os intelectuais, no dilema da contagem de votos do Estado da Flórida, que não queria acabar nunca, concederam sua bênção moral a toda iniciativa jurídica -por mais capciosa- que desse esperança a uma maioria de votos para o candidato do partido democrático "deles".

Pensamento ornamental
O que mudou nesse século desde o caso Dreyfus? Como se explica que, de um lado, não poucos intelectuais ainda sonhem em poder sacudir o povo e polarizá-lo politicamente como outrora Zola, enquanto, de outro, suas opiniões possuem, quando muito, um caráter ornamental? O que mudou radicalmente foi sobretudo nosso conceito implícito, não só e nem sequer primordialmente filosófico, de verdade. Tal como os "philosophes" do Iluminismo, Zola tomou ainda a peito, sem hesitação, falar em nome da verdade (aliás, ele descreveu sua campanha pela reabilitação do capitão Dreyfus como "la vérité en marche") porque estava convencido de que os intelectuais, graças à superior força reflexiva, tinham o direito de considerar seus juízos como em princípio superiores, como em princípio próximos da verdade.
Nossas sociedades atuais não têm mais tolerância com essas pretensões globais, pois no seu cotidiano o conceito e o valor da verdade se acham pluralizados e remetidos à competência dos respectivos especialistas. Para a práxis do presente há uma verdade dos juristas e uma verdade dos médicos, provavelmente várias verdades dos filósofos e uma verdade dos engenheiros. Isso vale -por menos que queiram admiti-lo os nostálgicos do Iluminismo- certamente também para a esfera da política. Muitas vezes são precisamente aqueles políticos que, segundo os critérios dos intelectuais, se devem tomar como particularmente inabilitados que se revelam mestres na "arte do possível". Suspeitamos, assim, que deva existir hoje um tipo de inteligência política que nosso conceito global de "inteligência", na prática ainda identificado a "intelectual", mal pode captar.

O fascínio do extremo
No século 20, por outro lado, inúmeros intelectuais de profissão desqualificaram-se politicamente pelo seu fascínio por idéias de natureza absoluta ou, em termos políticos, pelas posições extremas sobretudo de esquerda, mas também de direita. Na "revolução conservadora" e intelectual dos anos 20 houve uma claque favorável ao nacional-socialismo, e somente o definitivo colapso do socialismo e do comunismo ao final do século 20 levou a maioria dos intelectuais de esquerda a pelo menos refletir sobre seu compromisso de longo prazo.
Além disso, fora do mundo intelectual quase ninguém parece esperar da parte dos intelectuais regras universais de comportamento ou preceitos gerais de ação - e, se acaso ainda houvesse essa expectativa, a história recente com certeza não poderia confiar à classe dos intelectuais a suprema competência. Saber se as sociedades "em geral" são viáveis sem um conceito abrangente de verdade e sem uma ética abrangente é outra questão -uma questão, porém, que não se deve levantar sem antes discutir se não são essas próprias pretensões monolíticas do eticamente "correto" que tantas vezes envenenam desnecessariamente a vida.

Sistema de segunda ordem
Mas o que podem fazer os intelectuais, que fim podem dar as sociedades à escória de seus intelectuais, se deles ninguém mais aceita a pretensão de desvendar a verdade em geral, de um lado, e, de outro, se eles perderam a chance de adquirir a competência mais específica para a verdade exigida no presente? O problema é resolvido em termos políticos e sociais na medida em que hoje, mais do que nunca, boa parte dos intelectuais encontra seu sustento e suas incumbências (de hábito muito vagas) nas universidades e nas instituições de ensino secundárias. Assim, a questão sobre o "papel dos intelectuais" virou uma questão sobre a "imagem que os acadêmicos profissionais fazem de si mesmos". Como os acadêmicos profissionais, para além da tarefa de transmitir competências cada vez mais específicas, devem hoje entender a si próprios, depois de um século de fracassos dos intelectuais?
A melhor resposta que conheço está num pensamento (significativamente?) pouco discutido de Niklas Luhmann. Ele imaginou as universidades como um sistema social de "segunda ordem", um sistema cuja tarefa específica, ao contrário da redução de complexidade do ambiente de todos os outros sistemas sociais, residiria precisamente na produção de complexidade. Trocando em miúdos: especialistas da práxis encontram soluções e assim reduzem a complexidade, enquanto a nova consciência da universidade e dos intelectuais poderia vir a ser produzir potenciais alternativas e modelos contrários às já institucionalizadas cosmovisões e formas da práxis "para estocar", por assim dizer, e orientados pelo princípio do pensamento "contra-intuitivo".
Com isso as teorias não seriam mais modelos de mundo ou de realidade a um nível de abstração singular, e sim dispositivos para produção de idéias e conceitos contra-intuitivos (o desenvolvimento por Luhmann de uma teoria social que abre livre espaço ao foro do sujeito poderia servir de eminente ilustração a esse outro conceito de "teoria"). Em vez de "condutores de facho na noite", os novos intelectuais seriam catalisadores de complexidade numa cultura sempre ameaçada por estrutura demais, por organização demais, por uma falta de entropia antes que pela ausência de orientação.

Novos perigos
Significará isso que se devem reconhecer todas as idéias alternativas, todas as idéias contra-intuitivas, como igualmente boas? Uma possibilidade de diferenciação de qualidade está no conceito de "pensamento arriscado". Quem queira mudanças que possam resultar em melhoras deve ter claro para si que, no mais das vezes, as mudanças imediatas da práxis institucionalizada e assim, no comum dos casos, da práxis de bons resultados em restrita medida acarretam sempre perigos específicos. Avanços na cirurgia não devem ser obtidos em experimentos humanos no horizonte da práxis médica corrente. Potencialidades da tecnologia genética não devem ser aplicadas diretamente à procriação humana.
Ninguém contestará essas negações. Mas delas se segue que o mundo acadêmico -o mundo atual dos intelectuais- deve conquistar sobretudo aqueles horizontes e possibilidades do pensamento arriscado que nos são propostos pelo avanço tecnológico e pelas mudanças sociais, embora por boas razões tomemos como muito perigosa sua imediata aplicação na práxis. Temos de pensar sobretudo o que do contrário -ou seja, fora dos muros do mundo acadêmico- permanece impensado, por ser arriscado demais nas condições da práxis atual. Nesse sentido tem razão Peter Sloterdijk ao pôr em marcha, atrás justamente dos muros da torre de marfim acadêmica, uma discussão aberta sobre oportunidades e consequências da tecnologia genética.
Nesse sentido aproveitou Jacques Derrida a peculiar liberdade dos intelectuais acadêmicos ao observar, no tocante à obra de Heidegger, que a questão central não era simplesmente se o filósofo da Floresta Negra fora fascinado pela ideologia do nacional-socialismo, mas se sua filosofia, sem a provocação desse fascínio, teria chegado a suas questões centrais e para nós significativas. E talvez os intelectuais norte-americanos, após o dilema eleitoral recente, mais bem teriam feito em se preocupar se haveria procedimentos alternativos para apurar a vontade da população em vez de acompanhar cada lance político da facção democrática com estrondoso aplauso. Quem lançar problemas de risco atrás dos muros do mundo intelectual deve estar protegido contra a censura de ser porta-voz da purificação genética, da reabilitação da ideologia nazista ou da negligência de princípios democráticos fundamentais.

Discussão como trauma
Todavia deve-se contar ainda com as reações indignadas daqueles que insistem em não distinguir a práxis institucionalizada da discussão intelectual, pois experimentam a distância entre a práxis institucionalizada e sua própria discussão intelectual como um trauma. Quem formula questões arriscadas -isso também cabe ser ressaltado- não logra necessariamente propostas de melhora diante da práxis corrente. A questão dos procedimentos alternativos para apurar a vontade da população, por exemplo, poderia muito bem chegar ao resultado de que tais alternativas não se sustentam. Uma tal resposta só seria tida em princípio infrutífera por aqueles que se sentem obrigados a ser sempre "críticos", no sentido de "negativos" e "subversores da sociedade". Vez por outra, ao contrário, pode ser um dever sublinhar justamente a ausência de soluções ou estratégias de melhora viáveis.
A caracterização de um novo papel intelectual mediante conceitos como "catalisador de complexidade" ou "pensamento arriscado" inclui, em convergência com a observação sensata de que hoje o mundo dos intelectuais é na essência o mundo das universidades, os cientistas "clássicos", os físicos, químicos, biólogos -quer tais cientistas se tenham por intelectuais ou não. Pois não foi a questão das aplicações práticas que originou os "avanços" decisivos -o ganho de complexidade- nas ciências naturais modernas, mas sim a disposição do pesquisador em tomar cada nova observação experimental como desafio para a reformulação de teorias. E, afinal, equivaleria a uma antecipada sentença de morte se "o intelectual do futuro" permanecesse um intelectual de perfil exclusivamente artístico e humanista. Pois então seria lícito temer que esse intelectual estaria para sempre fixado ao hábito da "crítica social", à sociedade como seu único tema e à tradicional retórica da compaixão, que nunca se poderia evitar fosse convertida em autocompaixão filosoficamente induzida. Certamente o pensamento do futuro tem assuntos mais importantes que as lamúrias sobre aumentos salariais atrasados no mundo acadêmico.
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Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA), autor de, entre outros, "Em 1926 - Vivendo no Limite do Tempo" (Record) e "Modernização dos Sentidos" (Ed. 34).

Tradução de José Marcos Macedo.



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