São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005 |
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O TEATRO DA LIBERDADE
TONY KUSHNER, UM DOS PRINCIPAIS DRAMATURGOS NORTE-
AMERICANOS DA ATUALIDADE, AFIRMA QUE ARTHUR MILLER
-AUTOR DE "A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE", QUE MORREU EM
FEVEREIRO- É UM ESCRITOR POLÍTICO POR EXCELÊNCIA,
MAS, CONTRA BRECHT, SEU DRAMA É SEMPRE INDIVIDUAL;
EM PEÇA "POLÍTICA" RECÉM-DESCOBERTA E PUBLICADA NESTE ANO,
TENNESSEE WILLIAMS CONFRONTA UM MANIFESTANTE SOLITÁRIO
DISPOSTO A AGIR E UM CONDENADO SEM VONTADE DE ESCAPAR
Considerem os Loman: o que trouxe as trevas à vida dessa família? Os defeitos que eles têm são parte de sua tragédia, mas só parte -todos os defeitos são amplificados, distorcidos e tornados fatais pela, bem, alienação, pelo mercado, onde a pressão é desumana e o ser humano é descartável. Considerem o momento em que o nada da tragédia é enunciado, e anunciado, em "A Morte do Caixeiro-Viajante", a última briga entre Biff e Willy ("Pai, não sou nada! Não sou nada, pai! Você não consegue entender isso? Não há mais desdém. Eu simplesmente sou o que sou, e é só. Pelo amor de Deus, me deixe ir"). É uma negação trágica imensa e esmagadoramente íntima; tudo é aniquilado, e ao mesmo tempo algo de novo está por nascer. É o "nada" das tragédias de Eurípides e Shakespeare, e na obra-prima de mercado escrita por Miller nos anos do pós-guerra é possível encontrar o eco de outro "nada", trágico mas igualmente político, a saber, "vocês não têm nada a perder exceto os grilhões que os aprisionam". Sem cinismo ou acomodação Se o temperamento à maneira de Emerson desenvolvido por Arthur o salvou dos erros terríveis da esquerda doutrinária de sua era, se seus escrúpulos e sua independência o conduziram a um ceticismo saudável e imensamente enérgico, se ele recusa vínculos partidários, Miller jamais deixou de nos lembrar de sua dívida, e na verdade de sua afinidade, para com a esquerda, o pensamento progressista. Jamais se tornou cínico, ou niilista, ou egoanarquista, ou crítico dos utópicos sonhos humanistas, ou neoconservador. Sua grande coragem pessoal e sua graciosa confiança em sua estatura e seus talentos tornavam desnecessário a ele se acomodar às elites poderosas, e permitiam que retivesse sua simpatia e sua afinidade para com os deserdados, os marginalizados e os impotentes. Ele queria que nunca esquecêssemos de que, sem justiça econômica, o conceito de justiça social é um absurdo e, pior, uma mentira. Encontrei-me pela primeira vez com Arthur Miller na cerimônia dos prêmios Tony em 1994, quando meu lugar ficava uma fileira atrás do dele, mas eu estava nervoso demais para me apresentar. Durante toda a noitada, olhei para a parte traseira de sua cabeça, que era muito, muito mais interessante para mim do que qualquer coisa que estivesse se desenrolando no palco. Dentro desse crânio impressionante, no interior desse domo, eu me dizia, Willy Loman foi concebido para um dramaturgo norte-americano, trata-se de um lugar sacrossanto comparável à Arca Sagrada, ou à árvore Bodhi, ou à Manjedoura em Belém. Eu queria tocar aquela cabeça, mas estava preocupado com a possível objeção de seu proprietário.
As cerimônias se encerraram, e perdi a oportunidade de fazer contato com a presa da qual provinha um dos pilares sobre os quais a dramaturgia norte-americana séria do pós-guerra repousa. Graças ao meu amigo Oskar Eustis, fui apresentado a Arthur anos mais tarde, em Providence, Rhode Island, quando lhe entreguei um prêmio. Naquela ocasião, tive a oportunidade de agradecer pessoalmente, e disse: "Sr. Miller, sua carreira e sua obra causam inveja a todos os dramaturgos, que desejariam ter escrito cada uma de suas peças. A sua criação é o difícil padrão contra o qual somos medidos e nos medimos. Eu gostaria de agradecer calorosamente pelas muitas noites insones e dias desesperados, e por partir e inflamar meu coração vezes sem conta, desde a noite -eu tinha seis anos- em que vi minha mãe interpretar Linda Loman em uma produção de "Morte do Caixeiro-Viajante" em um teatro comunitário da Louisiana, e decidi, creio que naquele exato momento, ser dramaturgo". "Vendo "Incident at Vichy" na televisão, anos mais tarde, admiti a mim mesmo a decisão que havia tomado. Assistindo a esplêndidas montagens recentes de "View From the Bridge", "Morte do Caixeiro-Viajante" e "As Bruxas de Salem", voltei para casa para reconsiderar humildemente todas as minhas suposições quanto ao que é dramaturgia, e como se deve proceder ao trabalhar nesse campo. E por sempre estar lá, em minha estante, quando as pessoas dizem que a verdadeira arte não pode ser política, ou que um verdadeiro artista não pode ser também um ativista político; sua vida e obra servem como lembrete de o quanto essas distorções são insultuosas -por tudo isso, eu gostaria de agradecer muito ao senhor." Dívida e silêncio Para os dramaturgos norte-americanos que surgiram depois de Arthur Miller, existe evidentemente uma dívida impossível de saldar. Aqueles dentre nós que procuram o domínio da narrativa dramática realista têm suas peças como exemplo e inspiração. Cena após cena, elas representam possivelmente as nossas mais bem construídas peças, obras de um mestre de carpintaria perfeita. Aqueles de nós que não procuram o domínio de uma forma, mas novas maneiras de fazer teatro, deveriam emular sua recusa de repousar confortavelmente no trono que o "Caixeiro-Viajante" propiciou. Arthur certa feita elogiou Tennessee Williams "por um desconsolo incansável quanto às suas soluções, inevitável em um genuíno escritor" e por "conduzir um ataque ao seu próprio ponto de vista em uma tentativa de dissolvê-lo e reformá-lo em circunferência mais ampla". E os dramaturgos norte-americanos têm muito a aprender com o som da voz de Arthur Miller. Humildade, decência, generosidade eram suas marcas registradas. Abandonem os bramidos do ego, ela nos diz, reduzam o volume do entretenimento, o zurro da sensualidade pornográfica e lúrida, abandonem a prática de promulgar juízos como uma expressão de isolamento, superstição e terror e procurem por um juízo mais profundo, a espécie de juízo que conduz uma pessoa além de seu alcance esperado, em direção de algo maior do que um animal humano isolado seria capaz em direção de algo compartilhado, comunitário, talvez até mesmo de algo universal, quem sabe, até, de Deus. Esse é o caminho para o conhecimento que cabe como direito aos dramaturgos e aos "escritores genuínos". Parece-me uma estrada difícil porque é uma estrada solitária, e judaica em sua introspecção exigente. É igualmente judaica em sua fé de que as palavras têm um poder, força, peso espantosos, quase sagrados. Deus, ou o mundo, está ouvindo; nos lembra Arthur Miller, e quando você fala, quando você escreve, Deus, ou o mundo, também está falando e escrevendo. "Um grande drama é uma grande jurisprudência", escreveu Arthur. "O equilíbrio é tudo. E nos escapará até que possamos uma vez mais ver o homem como um todo, até que sensibilidade e poder, justiça e necessidade estejam face a face inexoravelmente, até que as justificativas da autoridade, como também as da rebelião, sejam acompanhadas até mesmo às alturas onde a respiração falha, onde -porque o mais amplo e também o mais modesto dos pontos de vista tenham falado- efetivamente só reste o silêncio." Este texto, um discurso proferido por Tony Kushner em cerimônia para celebrar a memória de Arthur Miller, no Majestic Theater, em Nova York, foi publicado originalmente na revista "The Nation". Copyright - 2005 The Nation. Tradução de Paulo Migliacci. Texto Anterior: + cinema: Santo Antônio, padroeiro da América Próximo Texto: O matadouro municipal Índice |
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