São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O TEATRO DA LIBERDADE

TONY KUSHNER, UM DOS PRINCIPAIS DRAMATURGOS NORTE- AMERICANOS DA ATUALIDADE, AFIRMA QUE ARTHUR MILLER -AUTOR DE "A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE", QUE MORREU EM FEVEREIRO- É UM ESCRITOR POLÍTICO POR EXCELÊNCIA, MAS, CONTRA BRECHT, SEU DRAMA É SEMPRE INDIVIDUAL; EM PEÇA "POLÍTICA" RECÉM-DESCOBERTA E PUBLICADA NESTE ANO, TENNESSEE WILLIAMS CONFRONTA UM MANIFESTANTE SOLITÁRIO DISPOSTO A AGIR E UM CONDENADO SEM VONTADE DE ESCAPAR

por Tony Kushner

Arthur Miller morreu no aniversário de Bertolt Brecht. Isso não tem significado algum, de duas maneiras: estou certo de que Arthur não planejou o acontecido, e os dois dramaturgos, além de serem universalmente conhecidos, e de se autodescreverem como "escritores políticos", não têm muita coisa em comum. Mas a diferença entre eles é interessante.
A voz de Arthur Miller tinha importância, era uma das mais importantes a clamar em oposição, a pedir resistência, a oferecer escrutínio crítico e lamentação -em outras palavras, ele era progressista em termos políticos, na melhor das acepções para "politicamente progressista" em nossa era sombria. Exigia que fôssemos capazes de responder, no que tange às nossas peças, nossas empreitadas, nossas vidas, uma pergunta realmente difícil, que, em palavras escritas por Arthur, representa a principal, e em certo sentido a única, razão para escrever e falar: "Qual é sua relevância", pergunta, "para a sobrevivência da raça?". "Não", estipula ele, "a raça norte-americana, ou a raça judaica, ou a raça alemã, mas a raça humana". Ele exigia que nosso trabalho e nossas vidas tivessem alguma relevância para a sobrevivência humana.
A questão implica ansiedade quanto à sobrevivência, uma recusa à complacência, um reconhecimento de que existe uma comunidade humana pela qual cada um de nós porta responsabilidade, e um alerta de que estamos em perigo. Miller nos diz que aquilo que fazemos, as coisas contra as quais escolhemos lutar, na arte e em outras atividades, podem ter um efeito sobre o resultado do processo. Existe uma razão para esperança, em outras palavras, e é possível mudar. Arthur era um pessimista lastimoso, mas quem não o é, entre os progressistas?

"Na Rússia eles não têm nada"
Miller era uma dessas pessoas politizadas que recusam identificação com uma raça, ou nação, ou movimento ou partido específico. Certamente não era comunista tampouco socialista. Durante a Grande Depressão, seu avô, a quem Arthur descreve como "um republicano por toda a vida... [com] bolsões sobre os olhos como Von Hindenburg", chocou a família ao se voltar para seu neto desempregado, certa noite, depois do jantar, e dizer: "Você sabe o que deveria fazer? Deveria ir para a Rússia".
"O silêncio que caiu" sobre a sala de jantar, escreveu Arthur, "pode ser descrito como um vácuo tão poderoso que acarretava o risco de sugar as paredes. Até o meu pai acordou, no sofá. Perguntei [ao meu avô] por que deveria ir para a Rússia".
"Porque", respondeu o avô, "na Rússia eles não têm nada. Aqui, as pessoas têm demais. Não é mais possível vender nada. Indo para a Rússia, você pode abrir uma cadeia de lojas de roupas e ganhar um bom dinheiro; o negócio pode crescer. É um país novo, a Rússia".
"Mas", eu disse, "não se pode fazer isso, lá'".
"Por que não?", perguntou ele, descrente".
"O governo é que é dono das lojas, lá". A cara que ele fez teria apavorado Karl Marx. "Que bastardos", disse, e voltou ao jornal".
O neto acreditava firmemente em democracia, em auto-suficiência e em qualquer coisa conducente a e benéfica para a dignidade e integridade humana individual. Sua dramaturgia era a dramaturgia da integridade, inteireza ou completude humana diante do poder irresponsável -ou talvez se pudesse defini-la como uma dramaturgia do indivíduo versus a história. E uma das formas pelas quais o teatro e a posição política de Arthur Miller diferem de um escritor como Brecht é que Arthur focalizava seu olhar crítico e definia como ponto de sua luta política a arena de uma consciência individual e, em um sentido importante, sua própria consciência individual.
Seria correto dizer que ele não aderia a partidos ou adotava identidades grupais porque, leal apenas à espécie humana, manifestava essa lealdade sendo fiel a si mesmo? Ainda que tivesse claro interesse em história, não se sentia confortável escrevendo sobre ela.
"As Bruxas de Salem" [Ediouro] e "Incident at Vichy" não são, em última análise, peças históricas. Ambas desenvolvem suas tramas como parte de um crime histórico em curso, mas não demora para que o grande dramaturgo que Arthur Miller foi desvie sua inteligência impiedosa, atenta e terna do horror em grande escala para a situação de um único ser humano. Não importa tudo aquilo que existe lá fora, por mais esmagador que seja. Mesmo diante do horror, continua a ser necessário perguntar a si mesmo, e por mais difícil que isso seja você sabe que pode se fazer a pergunta: o que você significa para você mesmo, o que você sabe ser? Em outras palavras, qual é a sua relevância para a sobrevivência da raça?

O drama da integridade
Ele não estava interessado no exame da história como oportunidade para iluminar metateorias sobre a direção definitiva em que a comunidade humana estava se encaminhando. Arthur Miller era uma dessas pessoas raras para quem a política é inseparável do drama da integridade pessoal. Ele administrava seu próprio campo de testes; sentia que seus sucessos e fracassos como ser humano tinham importância para um fim maior do que ele, e por isso os examinava em público; na verdade, em certo sentido, eles eram a única coisa sobre a qual valia a pena falar. Não estava certo de que um indivíduo isolado tivesse relevância para a nossa sobrevivência coletiva, mas não considerava que qualquer outra questão fosse digna de atenção.
Certa vez escreveu que abandonara o estudo de economia, na faculdade, porque economia, como era e continua sendo ensinada, "pode medir os passos do gigante, mas é incapaz de olhá-lo nos olhos". A observação de Miller reflete sua dívida para com a análise política de esquerda -da qual um dos preceitos centrais é a consideração crítica dos significados humanos, éticos e políticos do dinheiro, em lugar do simples prognóstico quanto às suas marés e correntes- e também reflete sua convicção, ou talvez predileção, ou inclinação natural, mesmo quando estudava o gigante, de que é necessário procurar pela verdade olhando-o nos olhos, as janelas da alma.
Arthur Miller sofria da maldição da empatia: era capaz de simpatizar até mesmo com a posição de seu inimigo. Os seres humanos se justificam diante de si mesmos, até os maus seres humanos, e o dramaturgo Arthur sempre queria saber por que, e como. Olhar o gigante nos olhos.
Miller deixou claro em suas peças e ensaios que seu pensamento crítico e consciência social nasceram da política vermelha que era onipresente na era em que ele estava amadurecendo, uma visão política cujo catalisador foi o sofrimento que ele viveu e observou durante a Grande Depressão, uma visão política desenvolvida em resposta à irritante e tóxica valorização permanente da cobiça, que sempre ressurge na história dos Estados Unidos como um dos preceitos essenciais da direita política. Ainda que tivesse recusado o determinismo mecanicista e automático da esquerda marxista, criou na maior de suas peças um drama em que é impossível deixar de pensar sobre a economia -dinheiro- em qualquer tentativa de emprestar coerência à tragédia que se desenrola diante de nossos olhos.


Arthur Miller era uma dessas pessoas raras para quem a política é inseparável do drama da integridade pessoal


Considerem os Loman: o que trouxe as trevas à vida dessa família? Os defeitos que eles têm são parte de sua tragédia, mas só parte -todos os defeitos são amplificados, distorcidos e tornados fatais pela, bem, alienação, pelo mercado, onde a pressão é desumana e o ser humano é descartável. Considerem o momento em que o nada da tragédia é enunciado, e anunciado, em "A Morte do Caixeiro-Viajante", a última briga entre Biff e Willy ("Pai, não sou nada! Não sou nada, pai! Você não consegue entender isso? Não há mais desdém. Eu simplesmente sou o que sou, e é só. Pelo amor de Deus, me deixe ir").
É uma negação trágica imensa e esmagadoramente íntima; tudo é aniquilado, e ao mesmo tempo algo de novo está por nascer. É o "nada" das tragédias de Eurípides e Shakespeare, e na obra-prima de mercado escrita por Miller nos anos do pós-guerra é possível encontrar o eco de outro "nada", trágico mas igualmente político, a saber, "vocês não têm nada a perder exceto os grilhões que os aprisionam".

Sem cinismo ou acomodação
Se o temperamento à maneira de Emerson desenvolvido por Arthur o salvou dos erros terríveis da esquerda doutrinária de sua era, se seus escrúpulos e sua independência o conduziram a um ceticismo saudável e imensamente enérgico, se ele recusa vínculos partidários, Miller jamais deixou de nos lembrar de sua dívida, e na verdade de sua afinidade, para com a esquerda, o pensamento progressista.
Jamais se tornou cínico, ou niilista, ou egoanarquista, ou crítico dos utópicos sonhos humanistas, ou neoconservador. Sua grande coragem pessoal e sua graciosa confiança em sua estatura e seus talentos tornavam desnecessário a ele se acomodar às elites poderosas, e permitiam que retivesse sua simpatia e sua afinidade para com os deserdados, os marginalizados e os impotentes. Ele queria que nunca esquecêssemos de que, sem justiça econômica, o conceito de justiça social é um absurdo e, pior, uma mentira.
Encontrei-me pela primeira vez com Arthur Miller na cerimônia dos prêmios Tony em 1994, quando meu lugar ficava uma fileira atrás do dele, mas eu estava nervoso demais para me apresentar. Durante toda a noitada, olhei para a parte traseira de sua cabeça, que era muito, muito mais interessante para mim do que qualquer coisa que estivesse se desenrolando no palco. Dentro desse crânio impressionante, no interior desse domo, eu me dizia, Willy Loman foi concebido para um dramaturgo norte-americano, trata-se de um lugar sacrossanto comparável à Arca Sagrada, ou à árvore Bodhi, ou à Manjedoura em Belém. Eu queria tocar aquela cabeça, mas estava preocupado com a possível objeção de seu proprietário.


Sua graciosa confiança em sua estatura e seus talentos tornavam desnecessário a ele se acomodar às elites


As cerimônias se encerraram, e perdi a oportunidade de fazer contato com a presa da qual provinha um dos pilares sobre os quais a dramaturgia norte-americana séria do pós-guerra repousa.
Graças ao meu amigo Oskar Eustis, fui apresentado a Arthur anos mais tarde, em Providence, Rhode Island, quando lhe entreguei um prêmio. Naquela ocasião, tive a oportunidade de agradecer pessoalmente, e disse: "Sr. Miller, sua carreira e sua obra causam inveja a todos os dramaturgos, que desejariam ter escrito cada uma de suas peças. A sua criação é o difícil padrão contra o qual somos medidos e nos medimos. Eu gostaria de agradecer calorosamente pelas muitas noites insones e dias desesperados, e por partir e inflamar meu coração vezes sem conta, desde a noite -eu tinha seis anos- em que vi minha mãe interpretar Linda Loman em uma produção de "Morte do Caixeiro-Viajante" em um teatro comunitário da Louisiana, e decidi, creio que naquele exato momento, ser dramaturgo".
"Vendo "Incident at Vichy" na televisão, anos mais tarde, admiti a mim mesmo a decisão que havia tomado. Assistindo a esplêndidas montagens recentes de "View From the Bridge", "Morte do Caixeiro-Viajante" e "As Bruxas de Salem", voltei para casa para reconsiderar humildemente todas as minhas suposições quanto ao que é dramaturgia, e como se deve proceder ao trabalhar nesse campo. E por sempre estar lá, em minha estante, quando as pessoas dizem que a verdadeira arte não pode ser política, ou que um verdadeiro artista não pode ser também um ativista político; sua vida e obra servem como lembrete de o quanto essas distorções são insultuosas -por tudo isso, eu gostaria de agradecer muito ao senhor."

Dívida e silêncio
Para os dramaturgos norte-americanos que surgiram depois de Arthur Miller, existe evidentemente uma dívida impossível de saldar. Aqueles dentre nós que procuram o domínio da narrativa dramática realista têm suas peças como exemplo e inspiração. Cena após cena, elas representam possivelmente as nossas mais bem construídas peças, obras de um mestre de carpintaria perfeita. Aqueles de nós que não procuram o domínio de uma forma, mas novas maneiras de fazer teatro, deveriam emular sua recusa de repousar confortavelmente no trono que o "Caixeiro-Viajante" propiciou.
Arthur certa feita elogiou Tennessee Williams "por um desconsolo incansável quanto às suas soluções, inevitável em um genuíno escritor" e por "conduzir um ataque ao seu próprio ponto de vista em uma tentativa de dissolvê-lo e reformá-lo em circunferência mais ampla".
E os dramaturgos norte-americanos têm muito a aprender com o som da voz de Arthur Miller. Humildade, decência, generosidade eram suas marcas registradas. Abandonem os bramidos do ego, ela nos diz, reduzam o volume do entretenimento, o zurro da sensualidade pornográfica e lúrida, abandonem a prática de promulgar juízos como uma expressão de isolamento, superstição e terror e procurem por um juízo mais profundo, a espécie de juízo que conduz uma pessoa além de seu alcance esperado, em direção de algo maior do que um animal humano isolado seria capaz em direção de algo compartilhado, comunitário, talvez até mesmo de algo universal, quem sabe, até, de Deus.
Esse é o caminho para o conhecimento que cabe como direito aos dramaturgos e aos "escritores genuínos". Parece-me uma estrada difícil porque é uma estrada solitária, e judaica em sua introspecção exigente. É igualmente judaica em sua fé de que as palavras têm um poder, força, peso espantosos, quase sagrados. Deus, ou o mundo, está ouvindo; nos lembra Arthur Miller, e quando você fala, quando você escreve, Deus, ou o mundo, também está falando e escrevendo. "Um grande drama é uma grande jurisprudência", escreveu Arthur.
"O equilíbrio é tudo. E nos escapará até que possamos uma vez mais ver o homem como um todo, até que sensibilidade e poder, justiça e necessidade estejam face a face inexoravelmente, até que as justificativas da autoridade, como também as da rebelião, sejam acompanhadas até mesmo às alturas onde a respiração falha, onde -porque o mais amplo e também o mais modesto dos pontos de vista tenham falado- efetivamente só reste o silêncio."

Este texto, um discurso proferido por Tony Kushner em cerimônia para celebrar a memória de Arthur Miller, no Majestic Theater, em Nova York, foi publicado originalmente na revista "The Nation". Copyright - 2005 The Nation.
Tradução de Paulo Migliacci.


Texto Anterior: + cinema: Santo Antônio, padroeiro da América
Próximo Texto: O matadouro municipal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.