São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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O MATADOURO MUNICIPAL

Reprodução
Estudantes franceses protestam em Paris, em 1983


por Tennessee Williams

Calçada de uma rua em uma cidade; a rua propriamente dita não é vista. Atrás da calçada há um muro de concreto cinza no qual estão colados cartazes com fotos de um ditador militar, e na parte inferior dos cartazes há a palavra "Viva!". É verão e está anoitecendo. Uma moça e um rapaz, estudantes universitários, caminham pela calçada, a moça chorando e o rapaz carregando uma bandeira enrolada. À distância ouve-se o som de uma banda de desfile.
 

Moça (Quando o rapaz pára) - É aqui que vai ser?

Rapaz - É. Agora vá embora. Você está chamando a atenção para nós.

Moça - Não dá para você ficar atrás do muro?

Rapaz - É claro que não. Tenho que correr para a rua para ter a certeza de não errar.

(Ele dá um beijo rápido e duro na garota.) Agora vá embora.

Moça - Não precisava ser você!

Rapaz - Pare com isso!

Moça - Poderia ter sido alguém mais velho, alguém feio ou doente.

Rapaz (Tirando relógio de pulso e anel) - Leve essas coisas. Agora vá embora. Há um homem olhando para nós. Atravesse pelo parque na próxima esquina. Vá!

(Ele chuta os pés da moça. Ela sai correndo, em lágrimas. Depois de um ou dois minutos, um funcionário de escritório de meia-idade aparece na calçada e se aproxima do estudante.)
Funcionário -
Com licença, jovem.

Rapaz - O que é?

Funcionário - Você teria a gentileza de me explicar o caminho para o Matadouro Municipal?

Rapaz - O senhor falou o -?

Funcionário - O Matadouro Municipal. Parece que perdi o endereço e já estou atrasado.

Rapaz - O senhor trabalha no Matadouro?

Funcionário - Oh, não, oh, não, eu sou -quero dizer,- eu era até ontem funcionário do Departamento Nacional de Economia, mas fui demitido e hoje fui condenado.

Rapaz - Foi condenado por quê?

Funcionário - Há vários motivos possíveis. Fiz uma coisa tola na semana passada. Passei em frente a uma loja de tabaco e, na vitrine da loja, havia uma engenhoca de arame -uma gaiola de arame que girava. Havia um bichinho lá dentro, um esquilo ou algo assim, que corria, corria sem parar na gaiola e parecia assustado. Ele me pareceu estar em pânico, então eu fui muito tolo: entrei na loja e falei com o proprietário sobre o bichinho naquela gaiola que girava. Perguntei se o animal em algum momento saía daquele eixo giratório ou se ele era obrigado a correr sem parar. O homem da loja, o proprietário, ficou enfurecido com minhas perguntas -ele me pegou pelo casaco, arrancou minha carteira do meu bolso, anotou meu nome, endereço e o lugar onde eu trabalhava e disse que me faria condenar por meter o bedelho em algo que não era de minha conta. Acho que ele deve ter feito isso, já que me mandaram ir ao Matadouro Municipal. Mas há outro motivo possível. Quando minha filha foi convocada para o Prostíbulo Municipal, eu -eu fiz,- eu escrevi um apelo ao...

Rapaz - O senhor recebeu um aviso por escrito?

Funcionário - Não, não, apenas ... Apenas um telefonema.

Rapaz - Pode ter sido apenas uma brincadeira cruel que alguém fez com o senhor. Acho que deve ter sido isso, senão teriam ido até sua casa e o levado preso. Teriam levado o senhor até o Matadouro de caminhão.

Funcionário - Eles nem sempre fazem isso mais. Às vezes a pessoa apenas recebe ordens de estar no Matadouro a tal hora e ela -ela vai lá. Me disseram que, se você chega atrasado, eles tornam as coisas mais difíceis para você lá -eles demoram para acabar com tudo.

Rapaz - O senhor tem uma moeda de dez centavos no bolso?

Funcionário - Não, deixei meu dinheiro todo com minha mulher.

Rapaz - Aqui está uma moeda de dez centavos. Há um bonde na próxima rua que atravessa esta. Pegue aquele bonde até o mais longe que ele for em qualquer direção. Então desça e ande. Não pare de andar.

Funcionário - Esse não deve ser o caminho para o Matadouro Municipal, com certeza. Afinal, o Matadouro não pode estar nas duas direções.

Rapaz - O senhor alguma vez já saiu para caçar? Com arma?

Funcionário - Sim, na época em que faltou carne meu filho e eu fomos caçar coelhos.

Rapaz - O senhor tem mira boa? Numa distância curta?

Funcionário - Tenho, mas-

Rapaz - Eu o aconselho a criar coragem, respeitar a si mesmo como homem, ir o mais longe que puder do Matadouro Municipal com a moeda de dez centavos que lhe dei, e então -sumir.

Funcionário - Você é jovem e pensa assim porque não é funcionário municipal há mais anos do que é capaz de contar.

Rapaz - Seu corpo, cortado e moído por uma máquina de moer e vendido em latas para ser comido por qualquer zé-ninguém, sem falar na sua mulher, seus filhos e seus cachorros.

Funcionário - Você não vê que estou apavorado? Eu poderia ter tentado protestar, apelar, mas, sabe o que é? Quando eu tinha sua idade eu fui pacifista! Então agora, eu não... Não vejo maneira alguma de evitar, de optar por outra coisa. Não tenho outra escolha, realmente, e afinal, agora que estou desempregado e virei indesejado em minha casa, eu-

Rapaz - O senhor tem família?

Funcionário - Sim, tenho mulher e-

Rapaz - O que sua mulher acha de o senhor ir para o Matadouro Municipal?

Funcionário - Ela acha o mesmo que eu -que não tenho escolha possível.

Rapaz - Uma escolha é uma coisa que o senhor precisa inventar por conta própria, então vá até o próximo semáforo, espere o bonde, suba no bonde e fique nele até onde ele for. Já lhe dei esse conselho de graça, já lhe dei o dinheiro para o bonde, e não há mais nada que eu possa lhe dar ou fazer pelo senhor.

Funcionário - Sim, sim, eu sei, obrigado, mas será que você poderia me informar onde fica o Matadouro Municipal?

Rapaz - Sim, eu poderia, mas não vou.

Funcionário - Você é a única pessoa que conheço, se é que posso dizer que o conheço, que não acha que eu devo ir para lá.

Rapaz - Que diabos, então vá para lá, vá, se o senhor já perdeu a capacidade de escolher qualquer coisa por si mesmo. Mas vou lhe dizer uma coisa. O senhor está ouvindo o desfile que está chegando perto?

(Ouve-se música de banda à distância.)

Rapaz - O desfile está vindo para cá, e eu vou interrompê-lo com esse meu pequeno instrumento de interrupção. Sinta-o no meu bolso (ele pega a mão do funcionário e a coloca em seu bolso).

Funcionário - É uma -?

Rapaz - Sim, é um revólver com seis balas.

Funcionário - Não, não, não, jogue atrás do muro. Eles vão matar você a tiros se -!

Rapaz - Que homenzinho assustado o senhor é -e, no entanto, me perguntou o caminho para o Matadouro Municipal.

Funcionário - Eu faço o que me mandam fazer, vou onde me mandam ir, nunca questiono as instruções que recebo.

Rapaz - Bom. Eu vou lhe dar as instruções. Sou seu comandante agora. O senhor é meu escravo.

Funcionário - Como sou seu escravo?

Rapaz - Por ordem recebida, agora mesmo. Olhe nos meus olhos, direto nos olhos, e pense em sua filha no Prostíbulo Municipal, sendo usada por homens doentes e sujos. Ela cobriria o rosto se o senhor algum dia voltasse a vê-la, porque sua pele estaria coberta de-

Funcionário - NÃO, NÃO, NÃO!

Rapaz - Faça o que estou mandando! Pegue esta bandeira ensanguentada em uma mão, este revólver na outra, e tome cuidado para que a bandeira esconda o revólver. O senhor está me entendendo?

Funcionário - Sim, mas-

Rapaz - O senhor vai fazer exatamente o que estou dizendo. O senhor é meu escravo, eu sou seu comandante. Vamos lá. O desfile vai passar por aqui daqui a um minuto, mais ou menos. O carro do general é o primeiro atrás das motocicletas. O senhor entende?

Funcionário - Sim, mas-

Rapaz - Só diga sim. Nada de "mas".

Funcionário - Sim.

Rapaz - Bom. Quando a primeira limusine estiver prestes a passar por aqui, o senhor vai gritar "viva, viva!" e agitar a bandeira, e, ao mesmo tempo, correr para o meio da rua. Antes de lhe pararem, o senhor vai esvaziar este revólver no rosto e no peito do general, bem rápido, o mais rápido que puder. Ok? Entendeu?

Funcionário - Sim.

Rapaz - Será mais rápido e mais fácil para o senhor do que comparecer ao Matadouro Municipal na hora marcada, e seu nome e sua foto vão parar nas primeiras páginas de todos os jornais do mundo. Entendeu?

Funcionário - Sim.

Rapaz - Então o deixarei aqui. Mas lembre-se: meus olhos e os olhos do mundo inteiro estão sobre o senhor. Por acaso, simplesmente por ter feito uma pergunta a um desconhecido na rua, sua vida sem sentido foi escolhida para a glória, e sua morte, para ser a morte de um herói. Adeus. Me dê um abraço.

(Ele puxa o funcionário para seus braços e então o empurra de volta.) Querido escravo, santo imortal, mártir e herói!

(Ele parte, passando sobre o muro baixo atrás da calçada. O desfile se aproxima, ruidoso).

Funcionário (agitando bandeira) - Viva, viva, viva, viva, viva, viva, viva, viva!

(O barulho do desfile desaparece aos poucos).

Funcionário (dirigindo-se à platéia) Será que vocês teriam a gentileza de me indicar o caminho para o Matadouro Municipal? Não quero me atrasar. Eles tornam as coisas mais difíceis para você se você não chega na hora... Oh, está bem. Vou anotar. Obrigado!

(Ele tira uma caderneta de um bolso e anota o endereço, enquanto as luzes se apagam.)
FIM


Este texto foi publicado originalmente na revista "Harper's". A peça também foi publicada no livro "Mister Paradise", uma coletânea das peças em um ato de Tennessee Williams lançada em maio pela "New Directions", pela primeira vez. Acredita-se que Williams tenha concluído a peça no final da década de 1960. Copyright - 2005 University of the South.
Tradução de Clara Allain.


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