São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005 |
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O MATADOURO MUNICIPAL
por Tennessee Williams Calçada de uma rua em uma cidade; a rua propriamente dita não é vista. Atrás da calçada há um muro de concreto cinza no qual estão colados cartazes com fotos de um ditador militar, e na parte inferior dos cartazes há a palavra "Viva!". É verão e está anoitecendo. Uma moça e um rapaz, estudantes universitários, caminham pela calçada, a moça chorando e o rapaz carregando uma bandeira enrolada. À distância ouve-se o som de uma banda de desfile. Moça (Quando o rapaz pára) - É aqui
que vai ser? Rapaz - É. Agora vá embora. Você
está chamando a atenção para nós. Moça - Não dá para você ficar atrás
do muro? Rapaz - É claro que não. Tenho que
correr para a rua para ter a certeza de
não errar. (Ele dá um beijo rápido e duro na garota.) Agora vá embora. Moça - Não precisava ser você! Rapaz - Pare com isso! Moça - Poderia ter sido alguém
mais velho, alguém feio ou doente. Rapaz (Tirando relógio de pulso e
anel) - Leve essas coisas. Agora vá
embora. Há um homem olhando
para nós. Atravesse pelo parque na
próxima esquina. Vá! (Ele chuta os pés da moça. Ela sai
correndo, em lágrimas. Depois de um
ou dois minutos, um funcionário de
escritório de meia-idade aparece na
calçada e se aproxima do estudante.) Rapaz - O que é? Funcionário - Você teria a gentileza
de me explicar o caminho para o
Matadouro Municipal? Rapaz - O senhor falou o -? Funcionário - O Matadouro Municipal. Parece que perdi o endereço e
já estou atrasado. Rapaz - O senhor trabalha no Matadouro? Funcionário - Oh, não, oh, não, eu
sou -quero dizer,- eu era até ontem funcionário do Departamento
Nacional de Economia, mas fui demitido e hoje fui condenado. Rapaz - Foi condenado por quê? Funcionário - Há vários motivos
possíveis. Fiz uma coisa tola na semana passada. Passei em frente a
uma loja de tabaco e, na vitrine da
loja, havia uma engenhoca de arame
-uma gaiola de arame que girava.
Havia um bichinho lá dentro, um esquilo ou algo assim, que corria, corria sem parar na gaiola e parecia assustado. Ele me pareceu estar em pânico, então eu fui muito tolo: entrei
na loja e falei com o proprietário sobre o bichinho naquela gaiola que
girava. Perguntei se o animal em algum momento saía daquele eixo giratório ou se ele era obrigado a correr sem parar. O homem da loja, o
proprietário, ficou enfurecido com
minhas perguntas -ele me pegou
pelo casaco, arrancou minha carteira do meu bolso, anotou meu nome,
endereço e o lugar onde eu trabalhava e disse que me faria condenar por
meter o bedelho em algo que não era
de minha conta. Acho que ele deve
ter feito isso, já que me mandaram ir
ao Matadouro Municipal. Mas há
outro motivo possível. Quando minha filha foi convocada para o Prostíbulo Municipal, eu -eu fiz,- eu
escrevi um apelo ao... Rapaz - O senhor recebeu um aviso
por escrito? Funcionário - Não, não, apenas ...
Apenas um telefonema. Rapaz - Pode ter sido apenas uma
brincadeira cruel que alguém fez
com o senhor. Acho que deve ter sido isso, senão teriam ido até sua casa
e o levado preso. Teriam levado o senhor até o Matadouro de caminhão. Funcionário - Eles nem sempre fazem isso mais. Às vezes a pessoa apenas recebe ordens de estar no Matadouro a tal hora e ela -ela vai lá. Me
disseram que, se você chega atrasado, eles tornam as coisas mais difíceis para você lá -eles demoram
para acabar com tudo. Rapaz - O senhor tem uma moeda
de dez centavos no bolso? Funcionário - Não, deixei meu dinheiro todo com minha mulher. Rapaz - Aqui está uma moeda de
dez centavos. Há um bonde na próxima rua que atravessa esta. Pegue
aquele bonde até o mais longe que
ele for em qualquer direção. Então
desça e ande. Não pare de andar. Funcionário - Esse não deve ser o
caminho para o Matadouro Municipal, com certeza. Afinal, o Matadouro não pode estar nas duas direções. Rapaz - O senhor alguma vez já saiu
para caçar? Com arma? Funcionário - Sim, na época em que
faltou carne meu filho e eu fomos caçar coelhos. Rapaz - O senhor tem mira boa?
Numa distância curta? Funcionário - Tenho, mas- Rapaz - Eu o aconselho a criar coragem, respeitar a si mesmo como homem, ir o mais longe que puder do
Matadouro Municipal com a moeda
de dez centavos que lhe dei, e então
-sumir. Funcionário - Você é jovem e pensa
assim porque não é funcionário municipal há mais anos do que é capaz
de contar. Rapaz - Seu corpo, cortado e moído
por uma máquina de moer e vendido em latas para ser comido por
qualquer zé-ninguém, sem falar na
sua mulher, seus filhos e seus cachorros. Funcionário - Você não vê que estou apavorado? Eu poderia ter tentado protestar, apelar, mas, sabe o que
é? Quando eu tinha sua idade eu fui
pacifista! Então agora, eu não... Não
vejo maneira alguma de evitar, de
optar por outra coisa. Não tenho outra escolha, realmente, e afinal, agora que estou desempregado e virei
indesejado em minha casa, eu- Rapaz - O senhor tem família? Funcionário - Sim, tenho mulher
e- Rapaz - O que sua mulher acha de o
senhor ir para o Matadouro Municipal? Funcionário - Ela acha o mesmo
que eu -que não tenho escolha
possível. Rapaz - Uma escolha é uma coisa
que o senhor precisa inventar por
conta própria, então vá até o próximo semáforo, espere o bonde, suba
no bonde e fique nele até onde ele
for. Já lhe dei esse conselho de graça,
já lhe dei o dinheiro para o bonde, e
não há mais nada que eu possa lhe
dar ou fazer pelo senhor. Funcionário - Sim, sim, eu sei, obrigado, mas será que você poderia me
informar onde fica o Matadouro
Municipal? Rapaz - Sim, eu poderia, mas não
vou. Funcionário - Você é a única pessoa
que conheço, se é que posso dizer
que o conheço, que não acha que eu
devo ir para lá. Rapaz - Que diabos, então vá para
lá, vá, se o senhor já perdeu a capacidade de escolher qualquer coisa por
si mesmo. Mas vou lhe dizer uma
coisa. O senhor está ouvindo o desfile que está chegando perto? (Ouve-se música de banda à distância.) Rapaz - O desfile está vindo para cá,
e eu vou interrompê-lo com esse
meu pequeno instrumento de interrupção. Sinta-o no meu bolso (ele
pega a mão do funcionário e a coloca
em seu bolso). Funcionário - É uma -? Rapaz - Sim, é um revólver com seis
balas. Funcionário - Não, não, não, jogue
atrás do muro. Eles vão matar você a
tiros se -! Rapaz - Que homenzinho assustado o senhor é -e, no entanto, me
perguntou o caminho para o Matadouro Municipal. Funcionário - Eu faço o que me
mandam fazer, vou onde me mandam ir, nunca questiono as instruções que recebo. Rapaz - Bom. Eu vou lhe dar as instruções. Sou seu comandante agora.
O senhor é meu escravo. Funcionário - Como sou seu escravo? Rapaz - Por ordem recebida, agora
mesmo. Olhe nos meus olhos, direto
nos olhos, e pense em sua filha no
Prostíbulo Municipal, sendo usada
por homens doentes e sujos. Ela cobriria o rosto se o senhor algum dia
voltasse a vê-la, porque sua pele estaria coberta de- Funcionário - NÃO, NÃO, NÃO! Rapaz - Faça o que estou mandando! Pegue esta bandeira ensanguentada em uma mão, este revólver na
outra, e tome cuidado para que a
bandeira esconda o revólver. O senhor está me entendendo? Funcionário - Sim, mas- Rapaz - O senhor vai fazer exatamente o que estou dizendo. O senhor é meu escravo, eu sou seu comandante. Vamos lá. O desfile vai
passar por aqui daqui a um minuto,
mais ou menos. O carro do general é
o primeiro atrás das motocicletas. O
senhor entende? Funcionário - Sim, mas- Rapaz - Só diga sim. Nada de
"mas". Funcionário - Sim. Rapaz - Bom. Quando a primeira limusine estiver prestes a passar por
aqui, o senhor vai gritar "viva, viva!"
e agitar a bandeira, e, ao mesmo
tempo, correr para o meio da rua.
Antes de lhe pararem, o senhor vai
esvaziar este revólver no rosto e no
peito do general, bem rápido, o mais
rápido que puder. Ok? Entendeu? Funcionário - Sim. Rapaz - Será mais rápido e mais fácil para o senhor do que comparecer
ao Matadouro Municipal na hora
marcada, e seu nome e sua foto vão
parar nas primeiras páginas de todos os jornais do mundo. Entendeu? Funcionário - Sim. Rapaz - Então o deixarei aqui. Mas lembre-se: meus olhos e os olhos do mundo inteiro estão sobre o senhor. Por acaso, simplesmente por ter feito uma pergunta a um desconhecido na rua, sua vida sem sentido foi escolhida para a glória, e sua morte, para ser a morte de um herói. Adeus. Me dê um abraço. (Ele puxa o funcionário para seus braços e então o empurra de volta.) Querido escravo, santo
imortal, mártir e herói! (Ele parte, passando sobre o muro
baixo atrás da calçada. O desfile se
aproxima, ruidoso). Funcionário (agitando bandeira) -
Viva, viva, viva, viva, viva, viva, viva,
viva! (O barulho do desfile desaparece
aos poucos). Funcionário (dirigindo-se à platéia)
Será que vocês teriam a gentileza de
me indicar o caminho para o Matadouro Municipal? Não quero me
atrasar. Eles tornam as coisas mais
difíceis para você se você não chega
na hora... Oh, está bem. Vou anotar.
Obrigado! (Ele tira uma caderneta de um bolso
e anota o endereço, enquanto as luzes
se apagam.) Este texto foi publicado originalmente na revista "Harper's". A peça também foi publicada no livro "Mister Paradise", uma coletânea das peças em um ato de Tennessee Williams lançada em maio pela "New Directions", pela primeira vez. Acredita-se que Williams tenha concluído a peça no final da década de 1960. Copyright - 2005 University of the South. Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: O teatro da liberdade Próximo Texto: Os dramaturgos Índice |
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