São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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REVOLUCIONÁRIO À MARGEM DA VIDA

NELSON DE SÁ
COLUNISTA DA FOLHA

Na primeira e, ao que se sabe, única encenação de "O Matadouro Municipal", no ano passado em Washington, a peça abria o segundo ato de um espetáculo com outros quatro textos curtos de Tennessee Williams recém-revelados e datados dos anos 30 aos 70. Para costurar a diversidade de gêneros, temas e qualidade, breves passagens das memórias do dramaturgo, morto em 1983, aos 71 anos. No caso de "Matadouro", uma frase: "Artista é sinônimo de revolucionário".
"O Matadouro Municipal" é o que Williams produziu de mais próximo do "agitprop", do teatro de agitação e propaganda que os brasileiros conheceram, naqueles mesmos anos 60, com o Centro Popular de Cultura. A peça foi escrita entre o final da década e o início da seguinte, num momento em que o dramaturgo, sem contar mais com aprovação de público e crítica, arriscava novas formas, mais afinadas ao tempo.
Registre-se que ele chegou a seus anos derradeiros de produção, diferentemente do que fazia no auge, citando não só Anton Tchekhov mas também Bertolt Brecht entre os seus modelos -e "Mãe Coragem" entre os seus textos favoritos.


Rapaz não entra em cena para qualquer alegoria brechtiana de justiça: está ali para um atentado


Não que fosse novato no teatro político. "Camino Real", de 53, guarda relação próxima com "Matadouro", a começar do cenário de ditadura em algum país "latino", onde se amontoam personagens em desencanto, de Byron a Casanova -e aos quais se une Kilroy, jovem americano cheio de esperança, mas que termina como os outros.
Em "Matadouro", Kilroy começa como Rapaz, o "estudante universitário" disposto à ação, bandeira em punho e revólver no bolso, e termina como o resignado funcionário público à procura do "Matadouro" do regime.
"Five by Tenn", a encenação de Washington, ressurgiu em Nova York na virada do ano com outra peça curta no lugar de "O Matadouro Municipal". O revolucionário em Tennessee Williams, entende-se logo, é um "outcast", como sempre.
Rapaz não entra em cena para uma greve ou qualquer alegoria brechtiana de justiça social: está ali para um atentado, para matar a tiros o "ditador militar" de um país ao que parece latino-americano, como indica a rubrica. Em termos de hoje, ele é um terrorista.
Com modelos ultra-românticos como Casanova ou o poeta suicida Hart Crane, não seria de esperar outra coisa de Williams, em sua face política. Sobretudo não naquele final dos 60, início dos 70, quando o Weather Underground explodia bomba no Capitólio e Che Guevara morto era a imagem da América Latina para o mundo -e Carlos Marighela era a do Brasil.
Quando, por outro lado, após anos de depressão, ele era internado num hospital psiquiátrico por seu irmão, em 1969.
A angústia niilista daqueles tempos é distante de outra, sensual e mais individualista, de suas três obras maiores, "À Margem da Vida", "Um Bonde Chamado Desejo" e "Gata em Teto de Zinco Quente".
Autor compulsivo de dezenas de peças, com outras sendo descobertas a todo momento, Williams é lembrado -e encenado- sobretudo pelas três. Mas sua maior produção no teatro é de textos curtos, assim como é de contos, na prosa.
Seis anos atrás, São Paulo passou por uma febre rápida do dramaturgo, com Regina Braga como Amanda em "À Margem da Vida", e Vera Fischer como Maggie em "Gata em Teto de Zinco Quente". Mas foi Helena Albergaria, hoje na Cia. do Latão, que roubou a cena como Willie, protagonista adolescente da pequena e delicada "Esta Propriedade Está Condenada".
"O Matadouro Municipal", como aquela, não é obra-prima, mas é uma das pequenas jóias mal lapidadas de Tennessee Williams.


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