São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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Novo livro do português José Luís Peixoto, "Nenhum Olhar", parece credor de "Levantado do Chão", mas enquanto em Saramago a decadência do vilarejo é política e social, nele é destino e danação

Inocência e castigo

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O escritor português José Luís Peixoto -que esteve recentemente no Brasil para participar da Flip (Festa Literária de Parati) e para lançar "Nenhum Olhar"- vem sendo apresentado pela imprensa de seu país como uma das principais vozes de renovação na prosa de Portugal. Vista deste lado do Atlântico, entretanto, a escrita densa e compassada de Peixoto parece ser menos um novo começo do que uma conclusão, mais uma síntese do que uma ruptura, sendo possível detectar nele ecos de tendências tão díspares como o neo-realismo italiano, o "nouveau roman" francês ou a literatura fantástica latino-americana.


"Um castigo é a vida, um castigo sem falta ou pecado, um castigo sem salvação"


Num contexto especificamente lusitano, "Nenhum Olhar" parece ser um desdobramento de "Levantado do Chão" (Bertrand Brasil), de Saramago, em chave metafísica -aproximação que se torna mais pertinente se levarmos em conta que esse romance recebeu em 2001 o Prêmio José Saramago, atribuído a jovens autores de língua portuguesa.
A ambiência que serve de ponto de partida para Peixoto é a mesma da narrativa que deu início à série de livros que valeram a Saramago o Nobel de Literatura de 1998. Em ambos, temos uma comunidade do Alentejo cujas vicissitudes vão adquirindo conotações apocalípticas. No caso de Peixoto, porém, o tema do fracasso político despe-se dos ressaibos ideológicos de Saramago (em que a questão agrária ocupa lugar central) e assume conotações cosmológicas, torna-se destino e danação.
"Nenhum Olhar" é estruturado numa série de cenas em que personagens sonâmbulas passeiam suas obsessões (traição, cobiça, procriação, luto) dentro do círculo de fogo de uma terra calcinada pelo sol. "Para quem sabe conhecer, este calor é soturno. Este sol intenso é um afago fúnebre na pele. Esta luz é a vida, ela própria, a consumir-se. Para quem sabe conhecer, este verão imenso é negro: negro atrás da luz, negro atrás do sol, negro atrás do calor."

Sem janelas
A cada capítulo, o foco narrativo se alterna, deslizando de fluxos de consciência e ladainhas populares para um narrador que, ao final, se apresenta como "o homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a escrever" e que é a clausura derradeira desse mundo enclausurado. Daí o fato de que, em "Nenhum Olhar", nenhuma personagem tenha olhar ou voz própria: tudo se engolfa na torrente de uma escrita que faz do "leitmotiv", da repetição de frases e células poéticas, uma "transmutação estética do desespero" -para usar a expressão de Starobinski sobre os moralistas do século 17.
A menção não é gratuita. Peixoto restaura uma técnica narrativa do pessimismo clássico que consiste em criar situações exemplares arrematadas por frases sentenciosas e repetitivas que fazem a anatomia da aflição humana: "Talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros"; "um castigo é a vida, um castigo sem falta ou pecado, um castigo sem salvação".
Ao lado dessas meditações sobre graça e livre-arbítrio, porém, aparecem elementos fantásticos que transformam "Nenhum Olhar" num livro híbrido, saturado por um barroquismo estilístico que na maior parte do tempo é hipnotizante, mas às vezes cai numa verborragia kitsch.
A aldeia alentejana de Peixoto é assombrada por figuras e personagens com nomes e simbolismos bíblicos: a voz de uma arca, um gigante que se insinua por bares e casas, um demônio que celebra os casamentos da comunidade, os irmãos siameses Moisés e Elias etc. Mas o livro se conserva nos limites do verossímil, pois essas presenças fabulosas são como alucinações de pobres-diabos que passam a vida gerando filhos natimortos, comendo pão duro como cortiça, suicidando-se em surtos de desespero que tornam inevitável a lembrança de "A Lua e as Fogueiras" (Berlendis & Vertecchia), livro de 1950 em que Cesare Pavese tinge de colorações míticas o sofrimento dos camponeses italianos.
Entre as duas partes que compõem o livro, passam-se 30 anos, mas pouco acontece. José, pastor perseguido por visões da esposa adúltera, dá lugar a seu filho (também José), que será agente de outro adultério, cuja vítima é seu primo Salomão. Ou seja, há deslocamentos, mas tudo permanece essencialmente o mesmo nesse universo intemporal, que Peixoto só abandona nas últimas páginas, quando anuncia que o mundo acabou e que, com ele, "tinha morrido a memória da morte".

Nenhum Olhar
192 págs., R$ 24,90 de José Luís Peixoto. Ed. Agir (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/3882-8200).



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