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Sem purgatório
Influenciado por Sartre, o existencialismo de Herberto Helder, em livro da década de 60 agora lançado
no Brasil, apresenta absurdo e desespero sem momento de distanciamento, fuga ou epifania
FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No texto "Holanda", Herberto Helder escreve: "Um
poeta deve ser uno. O inferno não o deixa". As
duas frases vão ganhando novos
sentidos à medida que a leitura de
"Os Passos em Volta" avança. O escritor, um dos principais poetas portugueses, apresenta com a prosa
desse livro uma faceta que se mostra
igual e diferente a si mesmo, ao mesmo tempo: então o poeta é uno?
No livro, há muitas indicações autobiográficas, além de sugestões de
lugares estranhos ao escritor, como
a Holanda, em que se tenta manter
coerente, à força, um discurso por
vezes desconexo, impressionista,
que só com muita dificuldade consegue sustentar os seus referenciais. A
geografia em que estão ambientados
alguns textos do livro parece insuperável: seria o inferno do escritor?
Publicado em 1963, é possível encontrar em "Os Passos em Volta" sinais de influência do existencialismo
sartreano, sobretudo aquele que se
divulgou por meio do teatro e da
prosa de ficção. O escritor português
não costuma, porém, discorrer filosoficamente sobre a realidade à volta, mas apresenta como se fosse uma
brusca interrupção o seu desespero
e o sentimento de absurdo como elementos-chave da sua prosa.
Um texto como "Os Comboios
que Vão para Antuérpia" demonstra bem essa filiação: nele encontramos um narrador encerrado dentro
do seu quarto, "numa casa sobre a linha férrea", sem dinheiro, livros,
trabalho, cigarros, desesperado.
"Eu pensava em Deus quando os
comboios trepidavam nos carris e
apitavam tão perto de mim." O texto
inteiro, a seguir, busca conectar as
várias experiências por que passa o
narrador, na tentativa de aproximar
absurdamente comboios e Deus. O
narrador então encontra "uma árvore esquisita", repetindo ao seu modo
a célebre passagem em que Antoine
Roquentin, em "A Náusea" (Nova
Fronteira), também encontra uma
árvore que lhe desvenda o absurdo
da vida humana. Há uma diferença,
no entanto: nos textos de Herberto
Helder, o desespero e a condição absurda se sobrepõem sucessivamente, sem qualquer conclusão ou diretriz; acumulam-se, sem buscarem o
seu sentido final. A visão da árvore
não induz o narrador a uma descoberta ou a um desvelamento, mas a
uma fusão que o converte também
num elemento da paisagem, como a
indicar um processo infinito.
Essa fusão parece um processo típico de "Os Passos em Volta", por
força da prosa poética e de um estilo
que atinge tudo com igual intensidade. Tome-se, por exemplo, um trecho de "O Celacanto", quando se definem as características de um especialista no estudo dos peixes:
"Um ictiologista não age no interior da regra; funda-se fora dela, nessa emoção específica, emoção cruzada por complexidades e perplexidades, vislumbres, descentramentos,
coisas evasivas ou expeditas -inapreensível na sua astúcia: um estilo
antípoda".
Ora, o que existe de específico nesse ictiologista? Troque-se a palavra
por "poeta" e descubra-se como o
texto não indicará qualquer incongruência ou confusão... Isso porque,
no livro, a prosa poética é envolvente
e não está a serviço da precisão: interessa-lhe mesmo apagar fronteiras,
confundir impressões, misturar sensações, iludir e tergiversar.
Além disso, o tema principal dos
textos é o eu do narrador, e não os
lugares e os tempos definidos, ainda
que circunstancialmente. Por isso
mesmo, no texto "Descobrimento",
os trechos "Antuérpia é uma cidade
difícil" e "percebia-se como [a cidade] era difícil", ficarão sem explicação ou justificativa, a menos que se
conheçam as características de
quem os escreveu.
Pois essa é a intransigente missão
de Herberto Helder em "Os Passos
em Volta": fazer ver que tudo é sujeito, e nada persiste de forma inanimada. Mais difícil do que a Antuérpia é decifrar os momentos de hermetismo que são transmitidos ao
leitor como achados da lucidez, como se lê nos diálogos de "O Quarto".
Para tanto, o escritor se vale de uma
prosa tensa e controlada, com mal
disfarçadas confissões, produzindo
com sua intensidade um roteiro do
qual se pode conhecer apenas o ponto de partida, sem qualquer outra esperança.
Felipe Fortuna é mestre em literatura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio, poeta e ensaísta, autor de, entre outros, "Em
Seu Lugar" e "A Próxima Leitura" (ambos pela Francisco Alves)
Os Passos em Volta
152 págs., R$ 36
de Herberto Helder. Ed. Azougue (praça Mahatma Gandhi, 2, salas 208-210, Cinelândia,
Rio de Janeiro, CEP 20031-908, tel. 0/xx/21/
2240-8812).
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