São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sem purgatório

Influenciado por Sartre, o existencialismo de Herberto Helder, em livro da década de 60 agora lançado no Brasil, apresenta absurdo e desespero sem momento de distanciamento, fuga ou epifania

FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No texto "Holanda", Herberto Helder escreve: "Um poeta deve ser uno. O inferno não o deixa". As duas frases vão ganhando novos sentidos à medida que a leitura de "Os Passos em Volta" avança. O escritor, um dos principais poetas portugueses, apresenta com a prosa desse livro uma faceta que se mostra igual e diferente a si mesmo, ao mesmo tempo: então o poeta é uno?
No livro, há muitas indicações autobiográficas, além de sugestões de lugares estranhos ao escritor, como a Holanda, em que se tenta manter coerente, à força, um discurso por vezes desconexo, impressionista, que só com muita dificuldade consegue sustentar os seus referenciais. A geografia em que estão ambientados alguns textos do livro parece insuperável: seria o inferno do escritor?
Publicado em 1963, é possível encontrar em "Os Passos em Volta" sinais de influência do existencialismo sartreano, sobretudo aquele que se divulgou por meio do teatro e da prosa de ficção. O escritor português não costuma, porém, discorrer filosoficamente sobre a realidade à volta, mas apresenta como se fosse uma brusca interrupção o seu desespero e o sentimento de absurdo como elementos-chave da sua prosa.
Um texto como "Os Comboios que Vão para Antuérpia" demonstra bem essa filiação: nele encontramos um narrador encerrado dentro do seu quarto, "numa casa sobre a linha férrea", sem dinheiro, livros, trabalho, cigarros, desesperado.
"Eu pensava em Deus quando os comboios trepidavam nos carris e apitavam tão perto de mim." O texto inteiro, a seguir, busca conectar as várias experiências por que passa o narrador, na tentativa de aproximar absurdamente comboios e Deus. O narrador então encontra "uma árvore esquisita", repetindo ao seu modo a célebre passagem em que Antoine Roquentin, em "A Náusea" (Nova Fronteira), também encontra uma árvore que lhe desvenda o absurdo da vida humana. Há uma diferença, no entanto: nos textos de Herberto Helder, o desespero e a condição absurda se sobrepõem sucessivamente, sem qualquer conclusão ou diretriz; acumulam-se, sem buscarem o seu sentido final. A visão da árvore não induz o narrador a uma descoberta ou a um desvelamento, mas a uma fusão que o converte também num elemento da paisagem, como a indicar um processo infinito.
Essa fusão parece um processo típico de "Os Passos em Volta", por força da prosa poética e de um estilo que atinge tudo com igual intensidade. Tome-se, por exemplo, um trecho de "O Celacanto", quando se definem as características de um especialista no estudo dos peixes:
"Um ictiologista não age no interior da regra; funda-se fora dela, nessa emoção específica, emoção cruzada por complexidades e perplexidades, vislumbres, descentramentos, coisas evasivas ou expeditas -inapreensível na sua astúcia: um estilo antípoda".
Ora, o que existe de específico nesse ictiologista? Troque-se a palavra por "poeta" e descubra-se como o texto não indicará qualquer incongruência ou confusão... Isso porque, no livro, a prosa poética é envolvente e não está a serviço da precisão: interessa-lhe mesmo apagar fronteiras, confundir impressões, misturar sensações, iludir e tergiversar.
Além disso, o tema principal dos textos é o eu do narrador, e não os lugares e os tempos definidos, ainda que circunstancialmente. Por isso mesmo, no texto "Descobrimento", os trechos "Antuérpia é uma cidade difícil" e "percebia-se como [a cidade] era difícil", ficarão sem explicação ou justificativa, a menos que se conheçam as características de quem os escreveu.
Pois essa é a intransigente missão de Herberto Helder em "Os Passos em Volta": fazer ver que tudo é sujeito, e nada persiste de forma inanimada. Mais difícil do que a Antuérpia é decifrar os momentos de hermetismo que são transmitidos ao leitor como achados da lucidez, como se lê nos diálogos de "O Quarto". Para tanto, o escritor se vale de uma prosa tensa e controlada, com mal disfarçadas confissões, produzindo com sua intensidade um roteiro do qual se pode conhecer apenas o ponto de partida, sem qualquer outra esperança.


Felipe Fortuna é mestre em literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio, poeta e ensaísta, autor de, entre outros, "Em Seu Lugar" e "A Próxima Leitura" (ambos pela Francisco Alves)

Os Passos em Volta
152 págs., R$ 36 de Herberto Helder. Ed. Azougue (praça Mahatma Gandhi, 2, salas 208-210, Cinelândia, Rio de Janeiro, CEP 20031-908, tel. 0/xx/21/ 2240-8812).



Texto Anterior: + livros: Inocência e castigo
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.