São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Alain de Bottom identifica o mal-estar na competição por status; para o jornalista alemão Stefan Klein, a tabela periódica nos salvará

Crítica da razão esnobe

JOEL BIRMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Livros sobre a felicidade se multiplicam na contemporaneidade. Isso se deve à presença nesta de um mal-estar crescente, devido às incertezas que desfazem expectativas estabelecidas há dois séculos. A ideologia da felicidade enunciada pelo Iluminismo, criticada por Freud no "Mal-Estar na Civilização" (Imago), perdeu consistência, mas se reapresenta para o grande público. Os livros de auto-ajuda aqui se salientam, ao lado das obras de divulgação teórica. É neste último tópico que se inserem o "Desejo de Status", do inglês Alain de Bottom, e "A Fórmula da Felicidade", do jornalista alemão Stefan Klein.
Bottom sustenta que o desejo de status tem a potência de provocar um sofrimento excepcional. Assim, ter mais ou menos status se transformaria, para o indivíduo, na conquista triunfal do céu e na descida para o inferno. Isso porque o reconhecimento se fundaria no anseio de "amor do mundo", que seria tão importante para as pessoas como o "amor individual".
Seria nesses registros que se inscreveria a auto-estima dos sujeitos. Procura mostrar então como o tal desejo atravessou a tradição do Ocidente, mas que se incrementou desde o século 19, com a constituição da sociedade industrial. Esta produziu novos signos de status, como o dinheiro e o consumo. Estes passaram a representar o que os indivíduos valiam efetivamente, de maneira a se enunciar o jargão dos vencedores e dos perdedores.
Assim, nas sociedades pré-modernas, todos tinham o amor do mundo, sendo ricos ou pobres, não obstante a rígida hierarquia social. Em contrapartida, a modernidade criou o individualismo e a mobilidade social, de maneira que a meritocracia passou a ser o discurso que aquilatava o valor dos indivíduos. A insegurança se disseminou, provocando rivalidades mortíferas, de maneira a transformar a inveja e o ressentimento nos sentimentos dominantes nas sociedades democráticas.
O esnobismo se constituiu, assim como as expectativas de ascensão social e as dependências espúrias que isso implica, retirando das pessoas sua segurança e provocando a degradação psíquica.
O Ocidente criou também, no entanto, uma série de antídotos contra isso. Da filosofia à arte, passando pela política, o cristianismo e a boêmia, todos procuraram relativizar os fundamentos de status, indicando outros valores para a regulação subjetiva. Com efeito, da racionalidade filosófica à ironia presente nas artes e nas vanguardas, ao lado do culto à igualdade promovido pela moral cristã e os modernos projetos revolucionários, procurou-se sempre desconstruir os sistemas dominantes do status.
Esse livro, portanto, é uma proposta para minimizar a incidência dos valores dominantes sobre os sujeitos, promovendo a sua liberdade de escolha, para que possam se respeitar mesmo que não sejam portadores dos signos de sucesso para serem os vencedores. Ao lado disso, diferentes códigos sociais e históricos são colocados aqui no primeiro plano de análise.

Retórica da ciência
Não é esse o caso do livro de Klein. Este se baseia nos avanços recentes das neurociências para propor uma leitura cientificista da felicidade. O que se destaca aqui é a certeza de que as linguagens dos cérebros e dos neurohormônios constituem uma retórica universal, de maneira que se o usuário souber delas se valer poderia aceder à felicidade. Pode-se disso depreender que o discurso cientificista constitui a retórica do mundo globalizado, no qual as fronteiras sociais e culturais se aboliriam, ao lado das soberanias. No fundo seríamos todos iguais, enfim, no que tange às demandas neurofisiológicas, que -como fluxos sem qualquer semântica- regulariam as nossas paixões e fantasmas. Fazê-los trabalhar a nosso favor nos daria certamente a felicidade.
Duas leituras opostas sobre a contemporaneidade e a felicidade, escritos sem jargão e que propõem caminhos diferentes para os impasses morais da atualidade. A sutileza da proposta de Bottom supera o cientificismo de Klein. Cabe assim ao respeitável público ficar bem atento ao lance, para fazer as suas escolhas e não acreditar que temos aqui um caminho de mão única, apesar das atuais promessas de felicidade da psiquiatria biológica e da psicologia cognitiva.


Joel Birman é psicanalista, psiquiatra e professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Desejo de Status
304 págs., R$ 39,50 de Alain de Bottom. Tradução de Ryta Vinagre. Ed. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2584-3536)
A Fórmula da Felicidade
256 págs., R$ 24,90 de Stefan Klein. Tradução de Kristina Michahellis. Ed. Sextante (rua Voluntários da Pátria, 45, sala 1404, Botafogo, Rio de Janeiro, CEP 22270-000, tel. 0/ xx/21/2286-9944).



Texto Anterior: Lançamentos
Próximo Texto: Antropofagia às avessas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.