São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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Antropofagia às avessas

Em diário "terapêutico", a musa do modernismo se mostra vítima não só de Getúlio mas também de Oswald e do Partido Comunista

JORGE SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Das três grandes mulheres do modernismo paulista, Anita Malfatti pagou pela audácia artística com sua própria carreira -praticamente destruída após a primeira exposição individual em 1917-; Tarsila, de longe a mais bem-sucedida do trio, acabou perdendo, com os anos, a única filha, a única neta, os companheiros e a fortuna. Pagu pagou com o próprio corpo.
Em 1940, após cinco anos presa e torturada pelo regime do Estado Novo getulista, Patrícia Galvão [1910-1962], aos 30 anos de idade, sai praticamente destroçada de uma experiência de nada menos que 23 prisões e tenta dar um novo rumo a sua vida. Casa-se com o escritor Geraldo Ferraz, a quem escreve este diário, em forma de carta, fazendo um balanço íntimo dos dez anos mais intensos e dramáticos de sua existência. Embora o interlocutor virtual do texto seja o novo companheiro, a carta destina-se, em última instância, a si própria, isto é, a autora busca encontrar, por meio da escrita, algum sentido em sua vida, auto-representando-se de modo a entender e explicitar uma das personalidades mais precoces, intensas e sofridas da geração modernista.
Assim, esse diário, iniciado nos últimos meses na Casa de Detenção, sai hoje do ineditismo e da esfera privada, numa tentativa escritural de reconstrução de um passado imediato. De todos os textos jornalísticos, ficcionais ou poéticos, esse é o que mais se aproxima da profundeza labiríntica de uma subjetividade dilacerada em busca de recomposição. Dessa vez, o texto dispensa pseudônimo.
"Paixão Pagu - A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão" oscila entre a análise e a autocrítica. Revela uma sexualidade precoce, iniciada antes de completar 12 anos de idade. Repulsa, repugnância, "aversão pela cópula", ausência de amor são termos apenas superados pelo "nojo" que afirma sentir por Oswald de Andrade, com quem se casa de forma intempestiva aos 20 anos de idade.
Só conhecerá o prazer, afirma ainda, após o nascimento do primeiro filho, Rudá; prazer este brutalmente abafado pelo temperamento desastrado e afetivamente irresponsável de Oswald. Uma das acusações mais permanentes do diário é a de que Oswald não a amava, "não era essencialmente sexual, mas, perseguido pelo esnobismo casanovista, necessitava encher quantitativamente o cadastro de conquistas".
A essa afirmação, contrapomos outra, grafada no caderno escrito a quatro mãos, no dia de seu casamento com Oswald, em 30 de outubro de 1930. Quase poema, revelador dos sentimentos dele por Pagu: "Agora todas as horas de Pagu são minhas. Eu sou o relógio de Pagu. Ela gosta e vive do meu ponteiro. Um ponteiro só (...) Fui primeiro o minuto, depois as 5 horas, depois a meia-noite. Quando morrer serei a noite de Pagu. Hoje sou o dia de Pagu" ("Pagu Vida-Obra", org. Augusto de Campos).

Sacrifício e denúncia
Pagu tenta justificar o abandono do filho Rudá para se entregar de corpo e alma à política, ao partido, à revolução. O texto é uma denúncia nua e crua, não tanto do Estado Novo, mas da implacável ditadura do Partido Comunista, que a fez passar pelas situações mais humilhantes, até chegar à própria Rússia stalinista, ponto final de seu desapontamento. Só a ingenuidade e a determinação da então adolescente explicam o fanatismo e a fé cega entregues a uma causa, que a obriga até a renunciar à maternidade.
Esse diário é também revelador de um extraordinário reencontro de Pagu com seus dois filhos, por intermédio dos textos introdutórios. Num belo e amadurecido ensaio, Rudá de Andrade vislumbra na ausência-presença da amorosa mãe "o verdadeiro sentido da palavra liberdade". Geraldo Galvão Ferraz, o Kiko, organizador do volume, e do belíssimo site www.pagu.com.br, teve a coragem de transcrever e tornar público esse texto que lhe foi entregue de forma confidencial, nos anos 70, pelo pai, Geraldo Ferraz.
O que descobrimos na leitura deste explosivo diário não é uma nova Pagu, mas as camadas profundas e as fraturas expostas da "musa antropofágica", assim como os bastidores de um dos períodos mais inquietantes da cultura e da política brasileiras.


Jorge Schwartz é professor de literatura latino-americana da USP, autor de "Borges no Brasil" (Unesp) e "Brasil - Da Antropofagia a Brasília" (Cosacnaify).

Paixão Pagu
164 págs., R$ 29,90 de Patrícia Galvão. Ed. Agir (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/3882-8200).



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