|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Antropofagia às avessas
Em diário "terapêutico", a musa do modernismo se mostra vítima
não só de Getúlio mas também de Oswald e do Partido Comunista
JORGE SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Das três grandes mulheres
do modernismo paulista,
Anita Malfatti pagou pela
audácia artística com sua
própria carreira -praticamente
destruída após a primeira exposição
individual em 1917-; Tarsila, de
longe a mais bem-sucedida do trio,
acabou perdendo, com os anos, a
única filha, a única neta, os companheiros e a fortuna. Pagu pagou com
o próprio corpo.
Em 1940, após cinco anos presa e
torturada pelo regime do Estado
Novo getulista, Patrícia Galvão
[1910-1962], aos 30 anos de idade, sai
praticamente destroçada de uma experiência de nada menos que 23 prisões e tenta dar um novo rumo a sua
vida. Casa-se com o escritor Geraldo
Ferraz, a quem escreve este diário,
em forma de carta, fazendo um balanço íntimo dos dez anos mais intensos e dramáticos de sua existência. Embora o interlocutor virtual do
texto seja o novo companheiro, a
carta destina-se, em última instância, a si própria, isto é, a autora busca
encontrar, por meio da escrita, algum sentido em sua vida, auto-representando-se de modo a entender
e explicitar uma das personalidades
mais precoces, intensas e sofridas da
geração modernista.
Assim, esse diário, iniciado nos últimos meses na Casa de Detenção,
sai hoje do ineditismo e da esfera
privada, numa tentativa escritural
de reconstrução de um passado imediato. De todos os textos jornalísticos, ficcionais ou poéticos, esse é o
que mais se aproxima da profundeza labiríntica de uma subjetividade
dilacerada em busca de recomposição. Dessa vez, o texto dispensa
pseudônimo.
"Paixão Pagu - A Autobiografia
Precoce de Patrícia Galvão" oscila
entre a análise e a autocrítica. Revela
uma sexualidade precoce, iniciada
antes de completar 12 anos de idade.
Repulsa, repugnância, "aversão pela
cópula", ausência de amor são termos apenas superados pelo "nojo"
que afirma sentir por Oswald de Andrade, com quem se casa de forma
intempestiva aos 20 anos de idade.
Só conhecerá o prazer, afirma ainda, após o nascimento do primeiro
filho, Rudá; prazer este brutalmente
abafado pelo temperamento desastrado e afetivamente irresponsável
de Oswald. Uma das acusações mais
permanentes do diário é a de que
Oswald não a amava, "não era essencialmente sexual, mas, perseguido
pelo esnobismo casanovista, necessitava encher quantitativamente o
cadastro de conquistas".
A essa afirmação, contrapomos
outra, grafada no caderno escrito a
quatro mãos, no dia de seu casamento com Oswald, em 30 de outubro de 1930. Quase poema, revelador
dos sentimentos dele por Pagu:
"Agora todas as horas de Pagu são
minhas. Eu sou o relógio de Pagu.
Ela gosta e vive do meu ponteiro.
Um ponteiro só (...) Fui primeiro o
minuto, depois as 5 horas, depois a
meia-noite. Quando morrer serei a
noite de Pagu. Hoje sou o dia de Pagu" ("Pagu Vida-Obra", org. Augusto de Campos).
Sacrifício e denúncia
Pagu tenta justificar o abandono
do filho Rudá para se entregar de
corpo e alma à política, ao partido, à
revolução. O texto é uma denúncia
nua e crua, não tanto do Estado Novo, mas da implacável ditadura do
Partido Comunista, que a fez passar
pelas situações mais humilhantes,
até chegar à própria Rússia stalinista, ponto final de seu desapontamento. Só a ingenuidade e a determinação da então adolescente explicam o fanatismo e a fé cega entregues a uma causa, que a obriga até a
renunciar à maternidade.
Esse diário é também revelador de
um extraordinário reencontro de
Pagu com seus dois filhos, por intermédio dos textos introdutórios.
Num belo e amadurecido ensaio,
Rudá de Andrade vislumbra na ausência-presença da amorosa mãe "o
verdadeiro sentido da palavra liberdade". Geraldo Galvão Ferraz, o Kiko, organizador do volume, e do belíssimo site www.pagu.com.br, teve
a coragem de transcrever e tornar
público esse texto que lhe foi entregue de forma confidencial, nos anos
70, pelo pai, Geraldo Ferraz.
O que descobrimos na leitura deste explosivo diário não é uma nova
Pagu, mas as camadas profundas e
as fraturas expostas da "musa antropofágica", assim como os bastidores
de um dos períodos mais inquietantes da cultura e da política brasileiras.
Jorge Schwartz é professor de literatura latino-americana da USP, autor de "Borges no
Brasil" (Unesp) e "Brasil - Da Antropofagia a
Brasília" (Cosacnaify).
Paixão Pagu
164 págs., R$ 29,90
de Patrícia Galvão. Ed. Agir (r. Nova Jerusalém, 345, CEP 21042-230, Rio de Janeiro, RJ,
tel. 0/xx/21/3882-8200).
Texto Anterior: + livros: Crítica da razão esnobe Próximo Texto: Notas Índice
|