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São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2003

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João José Reis relança "Rebelião Escrava no Brasil"

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Em abril de 1835, um periódico norte-americano, atento aos embates que a escravidão vinha provocando no continente, noticiou: "Na manhã de 25 de janeiro, toda a cidade da Bahia (Salvador) e sua vizinhança foi lançada a um estado da maior excitação em consequência de uma insurreição de escravos da nação nagô (....)". A "insurreição" referida pelo jornalista estadunidense tornar-se-ia conhecida como a Revolta dos Malês, e suas causas e desdobramentos mereceram, em solo nacional, não somente a pronta atenção da imprensa e das autoridades coetâneas, como ainda, com o passar do tempo, um número razoável de análises e comentários de um amplo leque de estudiosos da escravidão no Brasil.
Em 1986, em pleno clima de comemorações do centenário da libertação dos escravos -período que se mostrou bastante profícuo para a historiografia da escravidão-, a constantemente lembrada, mas nem sempre bem compreendida, revolta foi objeto de um livro, se não definitivo, pois isso não existe em história, ao menos incontornável para os pesquisadores da questão negra: "Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835", do historiador João José Reis. A obra, que desde 1987 não recebia uma nova edição em língua portuguesa, acaba de ser reeditada pela Companhia das Letras, numa versão muitíssimo ampliada (cerca de 300 páginas a mais), que traz um volume ainda maior de documentação, capítulos novos e alargados, reinterpretações de pontos polêmicos e, sobretudo, como pondera o autor, argumentações mais "calibradas", produto de uma década e meia de reflexão sobre o tema.
Para os que não conheceram a versão anterior, "Rebelião..." procura, lançando mão de uma vasta documentação de arquivos, retraçar a história do levante de 1835 a partir da perspectiva dos seus participantes, os tais malês do título, isto é, escravos africanos islamizados, sobretudo da etnia nagô. Para alcançar tal meta, Reis, além, é claro, de descrever minuciosamente o levante, sua repressão e seus desdobramentos, conduz o leitor por um verdadeiro "passeio etnográfico" pela Salvador das primeiras décadas do Oitocentos, especialmente pelo mundo negro da urbe. Deparamos, ao longo do percurso, com uma cidade submetida a uma rigorosa crise econômica, politicamente abalada pelas tensões que se seguiram à Independência, marcada por enormes desigualdades sociais e com um altíssimo contingente de negros (escravos e libertos) trazidos da África. Deparamos, também, com uma Salvador que foi palco, entre 1807 e 1831, de sucessivas revoltas negras, nas quais os africanos islamizados desempenharam um papel de destaque e colaboraram para criar aquilo que o autor denomina uma "tradição de audácia" do escravo baiano.
Traçado esse cenário de crise e tensão, Reis leva, então, o leitor aos meandros do cotidiano daquela parcela negra da população baiana que participou da revolta, descrevendo seus variados vínculos étnicos -etnias adaptadas ao Novo Mundo-, religiosos -uma religiosidade também moldada pelas condições locais- e sociais. Dessa complexa e múltipla teia de relações, aqui muito sumariamente repassada, o historiador baiano procura detectar o que "deu sentido" à revolta de 1835, uma revolta na qual, como exaustivamente demonstra ao longo do livro, encontramos uma singular convergência de identidades étnica (nagôs), religiosa (muçulmanos) e de classe (trabalhadores urbanos), convergência que acabou por conferir ao movimento uma certa "inclinação predominante".
"Rebelião...", em suma, mais do que narrar magistralmente a história de um levante escravo, oferece-nos um detalhado quadro da sociabilidade negra no período e dos modos inventados por escravos e libertos para sobreviver numa sociedade escravocrata e, ao mesmo tempo, contrapor-se aos seus ditames.


Jean Marcel Carvalho França é professor de história da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca). É autor de, entre outros, "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).


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